Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Ronaldo Cagiano




Testemunho de uma época, espelho de uma geração

(in Estado de Minas, 22.07.2005)



 

Quem não tem saudade dos antológicos anos da década de 1960 em que pontificaram os Beatles e os Rollings Stones? Época em que Paris era uma festa para a resistência política às ditaduras e os movimentos sociais arrastavam multidões. Anos em que uma nova linguagem expressava o descontentamento e a indignação, em que as superpotências ensaiavam um confronto nuclear, surgia uma vanguarda no cinema, na arquitetura, na música, na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Uma inspirada geração de criadores, pensadores, filósofos e intelectuais, desafiava os cânones e se impulsionava para abalar as estruturas estéticas, políticas, conceituais e morais.

Estava em voga a Guerra Fria, motivada pelo auge do comunismo, com o Vietnã e Cuba impondo dura humilhação aos Estados Unidos. A música de protesto em marcha, os Beatles empunhando a bandeira do pacifismo, 1968 na França e no Brasil, Woodstock e a liberdade de expressão, o culto ao prazer e às drogas e as palavras de ordem do "make love, not war". Cultuavam-se o cinema de Fellini, Truffatu, Godard, Glauber Rocha e Buñuel, o teatro de Nelson Rodrigues e Augusto Boal, os grandes festivais de música e a crença na revolução armada, em Che, Fidel e outros camaradas. O homem invade a lua, a bossa nova traz um novo alento à música brasileira; o AI-5, um balde d'água na liberdade e nas garantias individuais; a censura recrudesce, o mundo em ebulição, o existencialismo em moda, filosofias vicejando em todo o canto, o mundo acreditando numa saída.

Os ingredientes desses anos de rebeldia, insubmissão e efervescência estão mapeados no livro "O silêncio do delator" (Ed. A Girafa, 2005, SP, 544 pgs.), do jornalista e escritor José Nêumane Pinto, numa obra que funde memória político-social e ficção. Romance testamentário de quem viveu os legendários últimos anos de um século em agonia e desencanto, época de veloz escalonamento de valores, mudança de comportamento, debates ideológicos e implosão das velhas estruturas de pensamento, que deram origem a uma cultura que influenciaria definitivamente as décadas seguintes.
Com um texto que funde a linguagem ágil do jornalismo com a densidade de um texto ficcional, o paraibano José Nêumane Pinto, cuja bibliografia inclui livros de poesia, reportagem, romance e crônicas, faz um preci(o)so trajeto por um período que é um divisor de águas na história do Brasil e do mundo, um tempo profético, antecipador do próprio caos e dissolução por que passa o mundo de hoje, globalizado e tecnológico, mas menos poético e provocativo que aquele.

O livro, fiel aos acontecimentos, tem um vezo fragmentário, à luz de um ritmo e uma harmonia que perpassam todo a narrativa, com freqüentes alusões às musicas daquela época, em que os diversos tempos, lugares e acontecimentos se correlacionam, num plano simbiótico.

Personagem principal da história, um certo Marco Antônio, tratado pela alcunha de Coelho, tem nos discos que fazem a cabeça da galera naquele momento o pretexto para introduzir os seus amigos no círculo das grandes novidades e discussões. Sujeito enigmático, coloca-se como um certo guru, incorporando a atmosfera instigante do período. Outro cenário se intercala: o velório de um desiludido professor universitário, João Miguel, em que ele narra as utopias e frustrações de uma geração que sonhava em mudar o mundo, pelas armas ou pelas drogas, e que se vê enterrada com ele.

Um fluxo de consciência e de memória entremeia todo o romance, na cabeça do morto e na lembrança dos amigos nos momentos que antecedem ao sepultamento. Os fatos se sucedem como numa película e numa espécie de trânsito onírico entre o finado e os presentes, é aquele acaba conduzindo o fio da narrativa interferindo na elucidação dos fatos, na ordenação dos pensamentos, no encadeamento das referências e lembranças. As situações nos remetem ao ambiente nostálgico e delicado do filme "As invasões bárbaras", em que um professor, acometido de um câncer em estágio terminal, reúne-se com os amigos dos tempos de faculdade e passa em revista aos seus anos e às suas ilusões, numa espécie de encontro de contas com a própria vida.

Nêumane saiu-se bem ao fazer o balanço crítico de uma época, sem cair na clicheria ou no lugar-comum, evitando o panfletarismo, a exacerbação saudosista ou o viés sentimental muito comuns em literatura que visa resgatar a história a partir da vivência de quem as conta. É o registro sincero sobre um tempo que não se reproduzirá, um tempo em que a consciência se aliava a uma causa e se sabia por que empunhar bandeiras e lançar os gritos, algo de que carecem os que tentam levantar a batuta para comandar a orquestra da história atual.
No plano da construção formal, o autor concede uma inovação ao dar aos vários personagens o nome de versos de uma canção de Caetano Veloso, tais como Voz do morto, Pés do torto, Cais do porto, Vez de louco, A paz do mundo, Atrás do muro, numa sutil referência a uma visão polifônica representada por uma época multifacética e conturbada.

O silêncio do delator é um romance metafórico, formidável referencial para os que querem compreender a recente história do Brasil e do mundo. Uma obra que nos fala de uma realidade nua e crua: o enterro das utopias, a decrepitude dos sonhos, o fim das ilusões e o estabelecimento de uma nova ordem, impondo o reinado do alheamento e da passividade, a prevalência de uma época de coisificação e etiqueta, em que o mercado é o grande deus, com seu terrorismo e seus fundamentalistas econômicos, que afastam toda a possibilidade de retorno ás utopias.



"O silêncio do delator", de José Nêumanne, lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.
 



José Nêumanne Pinto
Leia a obra de José Nêumanne


 

 

 

 

02/08/2005