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			Oton Lustosa 
   
			O chute
 
 
			Enquanto os filhos brincam nas 
			gangorras da praça, despreocupado, caminha à toa pelas ruas da 
			cidade. Vai ter-se no campo de futebol. Percorre a lateral, fica um 
			instantinho por trás do gol; dirige-se à outra margem. Contra o sol, 
			de longe as gotas de suor, como pedrinhas de brilhante, enfeitam-lhe 
			o rosto moreno. Na fronte o siso caricatural: paralelas, duas rugas 
			cavadas na testa. À sua frente o campinho pinóia: de uma trave à 
			outra o capim-de-burro maltratado, aqui acolá um descalvado, de 
			ponta a ponta, comendo a terra da lateral oeste a vereda erosiva do 
			enxurro. Este o lado ruim do campo. Correr por ali a bola é a 
			certeza da derrapagem e da raladura dos que correm atrás dela. Caem 
			em cima da pelota, que cai no chão desnivelado e pula de banda, 
			traiçoeira, como gata-pintada. O jogador, que tem uma perna no ar e 
			outra na terra, de repente não tem mais a da terra. O outro, sem 
			freio, cabeça virada, vem e tromba. Sobe a poeira. No chão os dois 
			caídos. Mereja o sangue nos cotovelos. Talvez por isso que o doutor 
			prefira a outra margem do campo: cheio de nós pelas costas, com a 
			mania de ver as coisas com o seu olho literário, artístico... Quem 
			sabe aprecie as quedas espetaculares dos atletas pernas-de-pau de 
			Pereira da Rocha. Dentre eles, um é o seu preferido. Sempre discreto 
			em ambiente adverso, sai da sisudez e cai na gandaia quando o Gambá 
			domina a bola. Torce eufórico. Braços no ar, vibra, altivo e sedento 
			de gol.  
			Naquela tarde a competição é especial. 
			Jogam Pereira da Rocha e Riachão. Pelas cinco horas, o sol ainda 
			encandeia e queima. Quem está lá, na outra lateral do campo? - Dr. 
			Dionísio Trajano de Mendonça Abreu!  
			Perfilado, a mão espalmada lá na 
			frente do rosto atalhando o sol. Em toda a extensão da linha 
			perimetral do campo grande quantidade de povo. Ali rostos conhecidos 
			da juventude e até da velha guarda pereirense. Torcida barulhenta. 
			Cantam, gritam, assobiam. Sem exageros, sem palavrões indecorosos, 
			sem violência... Mas o pior: sem gol! Os jogadores correndo para lá 
			e para cá, a bola pelos ares como balão. Ataque que é bom, em busca 
			do gol... Qual nada. É bola para fora, é tiro de meta, é lateral, é 
			escanteio, é barreira... É chute!  
			- Puf!  
			Volta a bola depois de explodir nos 
			homens da barreira. Ganha terreno em direção contrária, invade o 
			campo pereirense. A grota é a valência. Resvala a bola na vala, 
			caminha no leito seco e sai redondinha pela lateral. Atrás, ficam 
			três jogadores escarrapachados na piçarra. Dois deles vestem as 
			cores de Riachão, trocavam passes buscando o caminho do gol.  
			O juiz Dionísio não está ali para 
			julgar. Os estragos erosivos no campo depõem contra as ações 
			administrativas do prefeito, que não valoriza o esporte. Mas... O 
			que tem a ver o julgador com isso? Quer ele, para espairecer, é 
			contemplar o jogo, seja ele feito de derrapagens, de corridas 
			atarantadas, chutes perdidos no ar, cambapés e cabriolas, 
			escorregões e quedas espetaculares. Muitas vezes leu e releu o texto 
			de Graciliano Ramos sobre o futebol, o esporte dos gringos que o 
			Brasil copiou. O Velho Graça, pessimista, ranzinza, não acreditava 
			que a rapaziada do sertão pudesse um dia ter o traquejo da bola; tão 
			acostumada até então com “o murro, o cacete, a faca de ponta” e “a 
			rasteira”. Agora, o dr. Dionísio, que é feliz, experimenta a 
			sensação de ver com os próprios olhos a prova contrária da profecia 
			graciliânea. Fosse ainda vivo, bem que merecia o grande autor de 
			São Bernardo sair de Palmeira dos Índios e vir a Pereira da 
			Rocha assistir a uma partida de futebol! Quem sabe nunca mais 
			escreveria Traços a Esmo, que o nordestino não é só bom na 
			rasteira... No chute, também.  
			Dr. Dionísio curte indizível emoção. 
			Diante de si o grande cenário, sob os raios fulvos do sol. Em seu 
			juízo misturam-se a arte e o esporte: a literatura e o jogo. 
			Caboclos atarracados, de lado a lado, adversários, correm atrás da 
			bola, correm com ela. Desembestados, confiantes na força bruta, 
			despacham balões para as alturas, chutam de bico e lá vai o monte de 
			barro no papo do pé, ficando o buraco no solo. Sobe a poeira. Gritos 
			ecoam. O alarido é geral. Dentre os jogadores da equipe pereirense, 
			um deles, rouba toda a atenção do espectador, literato, que por 
			acaso é julgador. Dr. Dionísio, contorcendo-se, acompanha o gingado 
			de Ildo Gambá. O apelido é este mesmo, que “a voz do povo é a voz de 
			Deus” e o cristão não poderia se livrar dele sem cometer crime de 
			sangue. Aceitou, resignado. É visto na rua, na praça, na porta do 
			bar, nas esquinas. Figura conhecidíssima na cidade. Jeito cômico de 
			ser: alegre, brincalhão, irreverente, loroteiro. Certa vez, na 
			calçada do fórum, caçoou de dr. Dionísio:  
			- O doutor não bate uma bolinha... Só 
			na leitura... 
			Gambá queria mesmo era dizer que o dr. 
			Dionísio estava alquebrado, os braços finos e as pernas estropiadas. 
			Precisava correr, suar, desgrudar a bunda da cadeira e tirar os 
			olhos do livro, que leitura demais faz o sujeito amarelar, perder o 
			vigor e até o tesão. Gambá não conhece o que é leitura. Vota e 
			assenta o nome nos recibos da Prefeitura quando capina as sarjetas e 
			lava o carro do prefeito. O peito estufado, os muques rasgando as 
			mangas, o fôlego correndo livre e farto nas ventas. Na mulher fez um 
			despropósito de filhos, a escadinha, e se deixou a esposa de parir 
			foi por obra de dr. Fredinho, que na última campanha lhe arranjou 
			ligadura de graça. Vive da vendinha na feira, do biscate, do rolo. 
			Sua arte, entretanto, é na bola. Dr. Dionísio, que é um astuto 
			pescador de personagens, já tinha reparado em Gambá. O nome lhe era 
			familiar. Lembrava-se do cheiro do bicho. Nunca esqueceu de quando 
			menino: na estradinha da vizinhança, com a lua bonita, voltando da 
			casa do padrinho com a corriola dos primos. Afoito, seguiu os 
			rompantes do Piloto e do Rompe-nuvem. Varou a 
			macambira e recebeu na cara, de chofre, a boa mijada. Mijo azulado, 
			fosforescente, como faísca de relâmpago sob a luz prateada da lua. 
			Os cachorros largaram a caça e acuaram o menino Dionísio. Os primos 
			morreram de rir... Ralharam os cães. Em casa a gozação foi geral. Os 
			bichos domésticos passavam à distância de pêlos eriçados. Custou 
			acabar a fedentina.  
			Por isso o Gambá lhe soa simpático. 
			Grita a turba o nome dele. Xingam-no, amaldiçoam-no, que ele ainda 
			não fez o gol tão esperado, garantidor da vitória pereirense.  
			- Perneta! 
			Os intolerantes, de fora do campo, na 
			exigência do gol a qualquer custo, gritam a injúria, que soa hilária 
			e até motivadora: 
			- Corre, aleijado! 
			Gambá se esfalfa. A perna curta e 
			fina, seqüela da poliomielite, trabalha muito mais que a perna 
			comprida. O centroavante, na porta do gol adversário, é oportunista, 
			é perigoso. Mela um, mela dois, mela três... Entra desengonçado na 
			pequena área, troca de perna na hora agá e despacha bolinha mansa, 
			rasteira, traiçoeira, por entre as pernas do goleiro, garantindo o 
			frangaço e o grito histérico da torcida. O canto de meio minuto do 
			narrador ao microfone da Rádio Pereirense eleva às alturas o nome de 
			Ildo Gambá, o goleador. Dr. Dionísio já tinha presenciado a façanha. 
			Quer ver outra vez. 
			Olha o relógio, pouco mais de dez 
			minutos faltam para o fim do jogo. O empate tortura a todos. A 
			equipe pereirense como que acabrunha-se e já corre sem graça. A 
			torcida açula, xinga, injuria. Mas o time parece peado. Na retranca, 
			com medo de gol, não parte pro ataque. Aquilo impacienta a todos. Um 
			dentre os espectadores não se contém: 
			- Passem a bola! Olhem o Gambá 
			sozinho! 
			Dr. Dionísio tange o time. É chegada a 
			hora. Lançassem a bola, corressem para o apoio, obstruir a investida 
			dos beques adversários. 
			De repente, a grande jogada. Ildo 
			Gambá com a pelota enorme, redonda, pintada de branco e preto. Lá 
			vai ele, pé dentro pé fora. Mela um, mela dois, mela três... Mela 
			quatro! Passa dos limites, demora demais... Parado, na boca do gol. 
			Minutos finais... O árbitro consulta o relógio. O povo já dentro do 
			campo, pronto para linchar o azarão do Ildo Gambá, que vai perder 
			aquele gol, não tem jeito. 
			- Chuta, infeliz! - brada o dr. 
			Dionísio. 
			Ecoa um urro de dor. Um menino, sem 
			camisa, pés descalços, quebrado o espinhaço, contorcendo-se, corre 
			espavorido pelo meio do campo. O juiz Dionísio Trajano corre atrás, 
			pega não pega. Espanta-se. Estaca. Ouve o grito: 
			- Gooooooooooooooooooooool!!!!!! 
			Ildo Gambá tinha chutado, finalmente. 
			Dr. Dionísio, preocupado, procura um 
			garoto assim-assim, pequerrucho, sem camisa, perninhas cambotas, 
			cabelinho de fogo. Quer ver o estrago do chute nas costelas do 
			pequeno. Vai pedir-lhe desculpas, ampará-lo; levá-lo para o 
			hospital, quem sabe dar emprego de vigia ao pai e de lavadeira à 
			mãe. Tomará maiores cuidados quando for assistir às partidas de 
			futebol nas tardes domingueiras de Pereira da Rocha. Procurará local 
			descampado, longe da molecada pequena, acocorada no beiço do campo. 
			Na hora da aflição, do chuta-não-chuta, não chutará quem esteja à 
			sua frente. 
 
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