Na manhã clara, música de vento e pássaros, o sol
espargindo o ouro aquecedor sobre o telhado da igrejinha branca de Juazeirinho,
beijando a asa dos pombos, o poeta Antônio Barbosa de Moraes apertava
a mão de Severino Marinheiro na calçada da Prefeitura, o
velho patriarca ajeitando o vinco do linho branco, acenando aos correligionários.
O ônibus já estava buzinando no outro lado da pracinha, de
saída para Campina Grande. Barbosa toma sua cadeira e planta
o olhar na paisagem bucólica, o veículo levantando poeira
no rumo da Rainha da Borborema , sacolejando nas reticências de "boca-de-pilão,
derrapando nas curvas sucessivas, coleando sobre os camaleões da
estrada precária, buzinando, buzinando...
Quando o coletivo fez a sua costumeira parada na calçada do Bar
Sertanejo, em Soledade, Antônio Barbosa avistou José Alves
Sobrinho que tomava café, entre amigos. Sobrinho quer notícia
de Zé Limeira e o colega informa:
— Deixei agora mesmo em Juazeirinho, dizendo que viaja de tarde para o
Teixeira.
José Alves tinha necessidade de encontrar Zé Limeira.
Estava ,revendo muito, tinha que cantar com ele para ganhar o com que resgatar
suas dívidas. Barbosa orienta-o:
— Se quiser vê-lo, vá correndo, antes que ele pegue embalagem
com suas pernas automáticas e desapareça na estrada.
Barbosa retoma sua cadeira no ônibus e ruma para Campina Grande,
ao mesmo tempo em que José Alves Sobrinho também deixa a
terra de Dom Delgado, com destino a Juazeirinho. Vai pensando nas
suas eternas dificuldades financeiras, nos títulos vencidos, no
numerário para a próxima feira, na prestação
do gringo.
Nenhum repentista era mais bem pago do que o Poeta do Absurdo nem mais
compreendido e amado. José Alves sabia que, sejam quais forem
as circunstâncias da cantoria, nenhum profissional do pinho viola
esta lei: o resultado financeiro é dividido com os dois participantes,
em partes iguais, e, se os protagonistas forem dez, não se faz caso
porque a distribuição é eqüitativa. Só
Zé Limeira, portanto, salvaria a situação
do poeta angustiado.
José Alves foi encontrar o Poeta do Absurdo no "Salão Juazeirinho",
aguardando sua vez, distribuindo bombons e sorrisos com uma
infinidade de meninos.
Sobrinho abraça o velho colega e o calor do amplexo parece transmitir
o sentido do apelo íntimo. Limeira sabia sentir, como ninguém,
quando o próximo queria ser ajudado. Para ele as palavras,
nessas ocasiões, eram desnecessárias. Parecia apalpar
o interior do amigo:
— Foi de Deus eu encontrá o mestre, por modo que eu tenho um trato
pra cantá em Cajazeiras, na Fazenda Melancias, e tava sem companheiro.
O mestre quer ir mais eu?
José Alves Sobrinho ganha, de repente, a fisionomia de um náufrago
que pisasse terra firme, os olhos iluminando o "Salão Juazeirinho".
Informa-se de Zé Limeira sobre o horário do transporte e
sugere irem no primeiro ônibus da tarde:
—Gostaria de viajar às treze horas?
— O mestre pega a sopa que quisé, mais pega só, por modo
que eu vou a pé.
— Limeira, você não acha uma estupidez a gente caminhar trezentos
quilômetros a pé?
— Acho não, mestre. Vosmicês pegue a sua sopa e me espere
lá que com cinco dia eu chego. É a continha!
Caminhada sessenta quilômetros diários, calculou rápido.
Sobrinho ainda relutou, mas não conseguiu demover o velho bardo.
Aceitou, finalmente, a condição, e pegou a condução,
deixando a terra de Severino Marinheiro sob os dardejos do sol-a-pino,
os olhos repousando na paisagem adusta.
Zé Limeira ajeita o matulão cheio de rapadura, farinha, camisas,
queijo, carne-de-sol, fumo, cuecas, papel de cigarro, jaca, cordas de violão,
garrafa de "zinebra", feixe de pena de codorniz para curar mordida de cobra,
mel de uruçu, seus apetrechos de viagem. Coloca o matulão
no ombro esquerdo, ajeita a viola do lado oposto, agarra a bengala de aroeira
e, da porta da barbearia, toma a direção do sertão.
Larga-se estràda adentro, com sua inabalável fé em
Deus e em si, rompendo as distâncias, afrontando a solidão
dos caminhos.
Não fraquejava, não conhecia adversidades. Era ele
o sertanejo forte, Euclides da Cunha já o dissera. "Quatro,
cinco vela acesa/ Não faz eu temê a morte", já afirmara
ele mesmo. Dormia dentro do mato com uma tranqüilidade absoluta.
O rosário que lhe ofertara o Padre Cícero Romão, seu
padrinho, afugentava feras e malfeitores. Não temia assombrações.
A única coisa que lhe despertava certo temor era o apito do trem.
Aceitava o monstrengo a resfolegar nos seus solavancos, mas não
podia nem imaginar no "grito de Satanás" que emitia o "imbuá
de ferro".
Despertava com os pássaros e mal a barra quebrava já ele
estava na estrada, os dentes escovados com espuma de juá, andando,
fumando, assoviando, alegre, sempre amanhecendo. Era dono de si e
do seu tempo. O sol e a lua davam-lhe a orientação
do tempo e isso lhe bastava, homem livre que era. Quando o estômago
reivindicava, não havia dificuldades: deixava a estrada e no mato
acendia o fogo, assava carne seca, fazia café. O queijo, a
farinha e a rapadura estavam no matulão, a água corria no
riacho, a viola e a rede do Ceará tinha-as ao lado. A vida
estava toda ali. Em vez da sesta, o desafio da distância, o
cumprimento do dever. Seu dever era cantar, obrigação
dos pássaros, destino das fontes, religião de Zé Limeira.
Cantar, que o canto é vida, e ele precisava vencer distâncias
para viver. Prosseguia na sua solitária e feliz peregrinação,
numa cruzada sem atropelo de relógio, de nenhum planejamento, de
nada convencional . Uma alma eternamente aurorescendo nas estradas, tocada
de ventos e árvores.
Zé Limeira caminha em direção a Cajazeiras.
Seus passos de puro-sangue, testemunhados pelo sol, pelas estrelas, desviando
"bocas-de-pilão", subtraem as lonjuras.
Aos poucos o viajor começa a divisar, muito ao longe, retalhos do
casario antigo da cidade do Padre Rolim . O cruzeiro, a torrezinha da igreja,
o frontespírio da Coletoria, o telhado da Estação,
outro telhado, muitos telhados, numa paulatina gradação.
As casas vão tomando corpo, arrumadinhas, e na óptica do
Poeta a cidade vem vindo, toda, na sua opulência sertaneja, aproximando-se
de quem a procura. No quinto dia as aipargatas-de-estaio de Zé
Limeira pisam a terra do Padre Rolim. Eram infalíveis os cálculos
do andarilho.
O poeta foi encontrar José Alves Sobrinho na sala de estar do Hotel
Oriente. Incrivelmente, trazia a fisionomia mais repousada do que
a do jovem colega. Já conhecia a cidade. Por várias
vezes ali havia passado, a pé, destinando-se a Juazeiro do Norte.
Ia pedir a bênção do padrinho Padre Cícero.
Nunca, todavia, parara na cidade que "ensinou a Paraíba a ler e
a rezar".
A hospitalidade de Pedro Rolim aliada à sua imensa admiração
pelos poetas, não deixou que Zé Limeira e Sobrinho continuassem
hóspedes do Hotel Oriente. Seguiriam, no outro dia, para a
Fazenda Melancias, de um irmão do saudoso Mecenas sertanejo, a trinta
quilômetros, onde já era familiar a sextilha limeiriana:
"Na casa de pulistrico
Meu repente filupeia,
Na casa de fulustreco,
Fulubdga e fulubeia,
Na casa de maribondo
A gente dorme sem ceia."
A difusora local registrou a presença dos poetas na cidade, anunciando
a peleja que se faria na Fazenda Melancias. A notícia correu
célere pelos quatro cantos da urbe, despertando o interesse da gente
simples que se deslocaria do centro urbano para ouvir o repente cintilando
no nascedouro, vestindo-se de beleza e imortalidades através de
José Aives Sobrinho, um gênio à beira da loucura, e
de Zé Limeira, um louco à beira da genialidade.
Os cantadores partiriam com o canto do galo para as Melancias. Limeira
criou um problema sério para seu anfitrião: só iria
a pé. Por mais que Pedro Rolim insistisse em oferecer automóvel,
jipe, caminhão, camioneta, charrete, o Poeta continuava decidido,
inflexível. Só iria a pé. Era um sertanejo destemido,
sincero, fiel à memória de seus ancestrais que andaram com
os pés que Deus lhes deu. Fez uma ponderação:
se não fosse a pé, concordaria em ir de carro-de-boi, transporte
abençoado.
O primitivo veículo deixou a centenária cidade paraibana
quando o sol, vermelho e glorioso, despontava por entre os serrotes, acordando
o sertão. Conduzia os poetas, um estudante e o carreiro, embevecidos
com o fascínio da paisagem soberba. O carro-de-boi, moroso
e gemebundo, vencia, altaneiro, com os seus violinos desafinados, a variante
acidentada, curvilínea, ornamentada por velhos angicos, baraúnas
e oiticicas, a afugentar as lépidas seriemas assustadas que se refugiavam
na espessa vegetação à margem de pequenas lagoas.
O gemido saudoso do carro velho misturava-se à música dos
pintassilgos, ecoava nos vaiados e na crista da serra, enquanto o roufenho
choramingado dos cocões, das rodas de caviúna triturando
o pedregulho, pareciam súplicas selvagens tragadas pelo barro duro.
Saltava à memória dos viandantes a trova do poeta sertanejo
Nô Gomes Filho:
"Boi-de-carro, vida amarga,
Como é dura a tua lida!
Bem maior que a tua carga
É o fardo da minha vida!"
A junta de bois mansos, como que reclamando contra a canga, fungava e avançava,
avançava e vencia o caminho, de curva em curva, de quebrada em quebrada,
acordando os ecos das grotas onde mocós espantados amoquecavam-se
nas lascas de pedras, tímidos e bárbaros. De vez em
quando os bois cismavam com os vôos rasos, desorientados dos espanta-boiadas
que espirravam das moitas próximas. Havia, aqui e acolá,
vestígios de caborés que se recolhiam à fronde dos
juazeiros, cantando o seu nostálgico "foi-foi-foi"... E a ternura
do canto do carão anunciava bom inverno.
O dia já andava pelo mundo e o carro-de-boi prosseguia na sua lentidão
desafiando carrascais, escarpas e lombadas, com os pacientes animais, lerdos
e heróicos, protestando com resmungos a cada açoite da macaca
impiedosa no lombo grosso ou no cangote sofrido. E o caminho quase
todo por percorrer.
Zé Limeira e José Alves Sobrinho aboiavam versejando, uma
forma de encurtar a caminhada monótona, estafante. A toada
saudosa dos aboios parecia estimular a junta de bois cujos cascos fincavam-se
na terra vermelha, levantando espirais de poeira, no rumo das Melancias
de Raimundo Rolim. Perdia-se nos longes do sertão, confundindo-se
com os arrulhos soluçantes das arapongas, a voz dos cantadores:
"Anda à frente, boi mansinho,
Anda à frente sem parar!
Obedece ao teu carreiro
Que te ordena a caminhar!
Bem cedo nas Melancias
Hoje eu desejo chegar!!!
Êh êh êh êh êh êh êh...
Êh lá êh boooi....
êh lá, êhhh..."
A junta arrastava-se morosa, capenga, estropiada, sob a chibata do sol
escaldante, fazendo ligeiras paradas às proximidades das porteiras.
A viagem se fazia agora por uma longa faixa de tabuleiros e carrascais,
onde somente havia pedras, raízes de cansanção, chocalhos
de cascavel e caveiras de boi—uma paisagem desoladora em que só
se via, muito à distância, como sinais de vegetação,
o verde agressivo dos juazeiros, árvore que resiste ao castigo das
grandes estiagens, retalhos de esperança enfeitando um sertão
desiludido—cenário desconcertante que a sensibilidade do poeta Eilzo
Mattos pintou nos quatorze versos de "A Seca":
"Tudo é silêncio e calma. Sopra quente
A brisa outrora ciciante e amena!
A terra, que era ubérrima e serena
Jaz calcinada pelo sol ardente!"
Eis a caatinga dantes tão virente:
Moitas sem folhas, secas — triste cena
Que nos invade o coração de pena
De uma cigarra ao estalar ingente!
O céu azul, azul, mira a paisagem
Desoladora, lúgubre, ardendo
Aos incruentos raios do sol alto...
E lá ao longe, qual uma miragem,
Um juazeiro a solidão rompendo
Na fronde abriga uma ave em sobressalto!"
Os violinos desafinados do carro velho executavam, ininterruptamente, a
canção da paciência, a melopéia triste da resignação
sertaneja, do heroísmo de uma gente que acredita em Frei Damião
e vê a grandeza de Deus em cada pingo de chuva; a canção
de um bravo povo esquecido que trabalha, matando-se, para fazer a opulência
das metrópoles.
Os violinos bárbaros vencem a tarde. Os viajores avistam,
já sob as lamínulas de extasiante crepúsculo, o acolhedor
verde-azul da vazante das Melancias, extremando, ao nascente, com o hotel
balneário do Brejo das Freiras e, ao poente, com o primeiro município
cearense.
Havia ficado para trás a paisagem de marmeleiros, mandacarus, juazeiros,
oiticicas, escarpas e lombadas. Não mais os tabuleiros e carrascais
de raízes de cansanção, chocalhos de cascavel e caveiras
de boi. O carro gemia sobre a fertilidade da Fazenda Melancias, uma
Suíça em miniatura, onde não se fala em miséria.
O olhar dos poetas perde-se no panorama de floridos laranjais, mangueiras
amigas, frondosas jaqueiras, gameleiras seculares e uma interminável
faixa de capim-santo, dando a impressão de imenso tapete verde.
O canto das jaçanãs à margem do açude era a
saudação das Melancias à Musa do Absurdo. Havia
revoadas de concrizes, bem-te-vis, graúnas e pombas-rola que se
iam agasalhar nos arvoredos, em trinados de amor que o homem não
compreende.
A junta de bois mansos, trôpega , arquejante , esbarra no terreiro
da Casa Grande, libertando-se, por fim, da macaca e da canga, a noite já
podendo mais do que o dia. As ovelhas mansas atravessavam o pátio
largo, enfileiradas, pulando, balindo, chocalhando, indo para o curral
de pedra. Os trabalhadores do eito deixavam seus enxadecos no pé
da barreira, ao lado da pedra de amolar.
Zé Limeira, José Alves Sobrinho e o estudante Nestor Rolim
recebem, penetrando a alpendrada, as boas-vindas do fazendeiro Raimundo
Rolim e de seu irmão Pedro que na cidade de Cajazeiras hospedara
os cantadores.
Limeira dirige-se ao proprietário e pergunta, abraçando-o:
— O mestre aprecia repente de Fílanlumía?
O tranqüilo fazendeiro diz que sim, que a cantoria é o único
divertimento do sertão.
— Apois o mestre hoje vai se impanziná de versos com esse caboco
véio e o meu camarada.
Por aqui — atalha Raimundo Rolim — é muito popular uma sextilha
que o senhor teria improvisado em Patos, há muitos anos, se não
me falha a memória:
"Nessa vida de viola
Vivo pra diante e pra trás,
Nunca mais tive alegria
Depois que perdi meus pais,
Minha vida é de caboco,
Quatro é muito, cinco é pouco,
Dez não dá, sete é demais.
Foi isso mesmo, mestre, é tudo bonito assim. O povo gosta
de butá meus verso na cachola mais não sei por modo que o
jorná não fala no meu nome, quando até a rádio
de Pemambuco já falou — lamenta o Poeta do Absurdo, uma reclamação
justa porque a imprensa pouca atenção tem dado aos poetas.
Não era sem razão que Cesário Verde formulava queixas
contra a imprensa européia, como denuncia o poema Contrariedades:
"O obstáculo estimula, toma-nos perversos,
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa de um jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos."
Ora, se em 1875, época de grande efervescência literária
na Europa, os jornais lisboetas, com seu romantismo anacrônico, fechavam-se
para Cesário, Quental e Castilho, que diriam os contemporâneos
de Zé Limeira, numa época de sérias transições
sociais, quando a imprensa reserva todo seu espaço quase que exclusivamente
para os temas econômicos, faia por indústria e cala por conveniência?
O poeta não tinha consciência do problema, mas estranhava
a indiferença dos jornais quanto à sua existência,
o que era perfeitamente humano. Queixava-se ao fazendeiro das Melancias,
que, nos confins da Paraíba, surpreendia-o com a récita de
uma sextilha sua.
Apois é, mestre, um dia os filósofo bota eu no livro, por
modo já botar o João Benedito, Pinto do Monteiro, Louro Batista,
e um magote de camarada que canta que nem eu.
A noite é clara, estrelada, grande. Depois do jantar vão
chegando os convidados e não convidados, em grupos, às dezenas,
para ouvir um cantador de fama. No terreiro os poetas contemplam
a paisagem enluarada, a lua abençoando o rebanho bovino ao longo
da várzea verde, os pingos de orvalho se fazendo pérolas,
salpicando a ramada. O batuque descompassado dos chocalhos dá
um ar bucólico ao prenúncio da festa.
Não pára de chegar gente a pé, em montarias, de caminhão,
de charrete, de todos os lados, principalmente das bandas do Brejo das
Freiras. Não pára de chegar gente. Às vinte
horas a mansão das Melancias comporta com problemas a multidão
ávida de poesia.
As moças da casa passam a servir uísque em abundância,
mas Limeira prefere tomar "zinebra". Não quer sair da sua
simplicidade de caboclo que não anda em transporte motorizado.
Possantes candeeiros a carbureto iluminam a sala espaçosa pintada
a óleo, refletindo a luz forte nas lentes escuras que protegem os
grandes olhos firmes do poeta, sob as grossas pestanas negras.
Ali está Zé Limeira em carne e osso, centro de todos os olhares,
com a inseparável flanela cor de sangue-de-boi enrolada ao pescoço,
um nó volumoso à altura da laringe, um anelão azul
encravado no nó. Ali está Zé Limeira, ele mesmo.
"O cantadô malhó/Que a Paraíba criô-lo", os dedos
apinhados de anéis a tanger as cordas da viola enfeitada, companheira
maior de suas glórias, testemunha eterna de suas batalhas.
Ali está o Poeta do Absurdo, o bardo rústico, o aedo soberbo,
os olhos a dançar nos quatro cantos da sala, as mãos extraindo
sons diferentes da viola festiva. Ali está Zé Limeira,
o cantador favorito, a vedeta da noite.
Os cantadores sentam-se, as violas já afinadas, os espectadores
tomando seus lugares. Sobrinho sabia que Limeira era endeusado no
sertão, um mito, um pedestal incólume. Sabia de tudo,
por isso estava inseguro, apreensivo. Cantaria para um povo rude
que gostava dos versos de Zé Limeira, "o major cantador do sertão".
— Minha gente, vamos ouvir poesia, já são nove horas da noite,
já devia ter começado a festa-diz o fazendeiro Raimundo Rolim,
em voz alta, para estimular os repentistas. E grita:
Viva as patativas do sertão!
O povo aplaude calorosamente os donos da noite que já estão
ponteando nas violas o ritmo nordestiníssimo do baião.
Sobrinho ingere uma dose forte de uísque, Limeira agarra meio copo
de "zinebra". O baião ganha seu compasso e o Poeta do Absurdo
elimina a expectativa:
"Mestre Raimundo Rolim,
Capataz das Melancia,
Eu posso até lhe ensinar
Repente e pilogamia,
Abeia tem a ciência,
A lua é quem alumia".
Sobrinho acompanha:
"Nesta noite a poesia
Vai cintilar no sertão.
Na voz deste pobre bardo
E Limeira, meu irmão,
Dois poetas que se uniram
Na mais santa comunhão."
Limeira:
"Macho de abeia é zangão
E feme de homem é muié
Quem quisé vá no cortiço,
Chegue lá e beba o mé,
Cachorro vai pelo faro,
Quem tem linha é carrité."
A platéia ovaciona delirantemente o poeta, desnorteando o seu parceiro
que, não compreendendo Zé Limeira, assim fala da "camisa
de onze varas' em que está metido:
"Deus, como é que com Zé
Limeira aqui cantarei?
Um cantador diferente
De quantos já enfrentei:
O que eu digo ele não sabe,
O que ele diz eu não sei."
Limeira
"Home nasce pra ser rei,
A muié pra ser rainha,
Tá na Sagrada Escritura
O som dessa violinha
E depois de Deus querer
Água do pote é meizinha."
Há um verdadeiro vivório. As palmas não descontinuam
e Sobrinho pensa em desistir, mas não pode se dar a esse luxo, pela
necessidade financeira:
"Ó meu Deus, que sorte a minha,
Nesta noite brasileira
Eu sei que não canto ruim,
Minha voz é prazenteira,
Mas todos negam-me a palma,
Só aplaudem Zé Limeira."
Soam algumas palmas convencionais, aplauso amarelo de misericórdia.
E o Poeta do Absurdo, na sua alegria própria dos vencedores, com
a paz do mundo nos olhos de carvão:
"Lá na serra do Teixeira
Zé Limeira é o meu nome,
Eurico Dutra é um grande
Mas vive passando fome,
Ainda antonte eu peguei
Na perna dum lubisome."
Sobrinho:
"Eu mudo até o meu nome
Se esse bicho apareceu!
Porém não vou afirmar
Que isso não ocorreu
Que é capaz de aqui dizerem
Que o mentiroso sou eu."
Limeira:
"Getúlio Vargas morreu
Foi com saudade da esposa,
Lampião inda tá vivo
Morando perto de Sousa
Por detrás do Sete-Estrelo
Tem um casal de raposa."
Em breve intervalo, Nestor Rolim redige o primeiro mote da cantoria:
"Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar."
Limeira inicia a glosação:
"Quando o carão tá cantando
É sinal que vem inverno,
Eu sou um nego moderno,
Foi não foi eu tou pensando.
Amanhã tô viajando
Pru sertão de Bogotá
Tico-tico no fubá,
Padre, juiz e doutor,
Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar."
Sobrinho glosa:
"Minha vida é esta cantiga,
Meu amor é esta viola...
Deus me botou nesta escola
Egrégia, sublime e antiga.
Se minha viola amiga,
Quiser um dia parar,
A dor não vou suportar
Porque ordena Nestor:
Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar"
O povo silencia, indiferente ao improviso. Irrompe, de momento, numa aclamação
espalhafatosa:
— Agora lá vai fogo!
— Zé Limeira agora vai "desmoralizar a Medicina"
— É o Castro Alves da viola! - Sapeca, Zé Limeira!...
O Poeta não se torna enfatuado. Sente-se feliz, agradece com
um
sorriso largo o estímulo dos admiradores, para, tranqüilo,
fazer valer a música da alma:
"Numa berada de serra
Dom Pedro ficou de coca,
Começou tirá taboca
Do cabeceira da terra,
Veio a febre berra-berra
Pru dentro dum caçuá,
Comendo o tamanduá
Da filha do Promotor,
Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar."
Sobrinho:
"Este tema deslumbrante
Que nos deu Nestor Rolim,
Despertou dentro de mim
Um sentimento gigante!
Por isso eu canto perante
O povo deste lugar,
Já fazendo despertar
A musa do sonhador..
Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar."
Um dos candeeiros apaga-se, por excesso de vento, e Limeira firma-se na
motivação:
"Se apagou-se a lamparina
Prumode o vento assoprou,
Me adiscurpe, seu Nestor,
Caboco da Palestina.
Joguei minha lazarina
No tronco do jatobá,
Fiz Lampião avuá
Na baixa do corredor,
Canta, canta, cantador,
Que teu destino é cantar."
O estudante redige um novo tema:
"Quem sabe o que sou, sou eu,
Sou eu quem sabe o que sou.
Sobrinho:
"Eu sei que dentro de mim
Há sentimento demais:
Alma e coração leais
Vão comigo até o fim,
Pois eu sei que sou assim
Desde que Deus me criou,
Por isso cantando vou
Sabendo o destino meu...
Quem sabe o que sou, sou eu,
Sou eu quem sabe o que sou."
A declaração de autoconfiança não mereceu dos
presentes tantas palmas quantas foram dirigidas à glosa limeiriana:
"Um dia eu passei pru dentro
Duma cancela deserta,
Tava a lua toda aberta
Debaixo dum pé-de-vento...
No terreiro do convento
Um canário me chamou,
Daí o Juiz chegou
Prá prendê João Elizeu...
Quem sabe o que sou, sou eu,
Sou eu quem sabe o que sou."
Por coincidência, o homem que se encontrava mais próximo a
Zé Limeira, de braços cruzados, roupa de mescla, cigarro-de-palha,
chamava-se exatamente João Eliseu e estava sendo processado na Comarca
de Antenor Navarro por haver atentado contra a vida de um vaqueiro da Fazenda
Liberdade. Coincidiu, ainda, que no exato momento em que Limeira
terminava de fechar a glosa, entrava na sala um cidadão de fisionomia
sóbria, austera, bem vestido, com ares de Juiz de Direito, olhando
ligeiramente para o "réu". João Elizeu não teve
tempo para hesitar: saiu correndo em direção ao terreiro,
derrubando pessoas, cadeiras, candeeiros — um autêntico pandemônio
— embrenhou-se num fechado de jurubeba, indo sair no Brejo das Freiras,
cerca de doze quilômetros das Melancias. Uma inquietação
estabeleceu-se por minutos, até que, esclarecida a coincidência,
os poetas puderam recomeçar a peleja. João Eliseu demandou
ao Sul e nunca mais voltou à Paraíba.
— Já vi um caboco mufino! Só sendo brejeiro' Como é
que um home tem sobrosso do verso desse nego véio? Mais é
isso mesmo, vaqueiro pra escutá Zé Limeira é preciso
ter fôigo de sete gato!...
As violas voltam a gemer na grande noite sertaneja. Nestor Rolim lembra
aos cantadores um mote de Raymundo Asfora, de textura oriental:
"Trago nalma as tatuagens
Da minha origem cigana"
Sobrinho:
"Já varei muitos desertos,
Fui senhor de muitas lendas,
Já povoei muitas tendas,
Vi muitos braços abertos,
Já cruzei caminhos certos
À frente de caravana,
Já vivi numa cabana
De onde avistava miragens,
Trago nalma as tatuagens,
Da minha origem cigana."
Referindo-se a desertos, lendas, tendas, caravana, miragens, o violeiro
demonstrou assimilar o sentido oriental do mote, fazendo Limeira exatamente
o inverso:
"Sou caboco do Tauá,
Quem quiser me dissimú-lio,
Lampião matou Getúlio
No sertão do Ceará...
Viola, banjo e ganzá
Eu toco toda sumana,
O vento da palagana
Me açoita toda viage,
Trago na alma as tatuagens
Da minha origem cigana"
Com certa descortesia, Sobrinho admoesta o colega:
"Limeira, você agora
Fez verdadeiro flagelo;
Botou a perder o belo
Mote de Raymundo Asfóra.
Tudo que disse foi fora
Daquela trilha bacana...
Dissipou a caravana,
Interrompeu as viagens...
Trago nalma as tatuagens
Da minha origem cigana."
Limeira, ligeiramente ressentido:
"O que eu dixé você note
No caderno do futuro:
Limeira canta seguro
E sabe acochá o mote.
Cascavé que não dá bote,
Guachinin chupando cana,
Já passei uma sumana
Só vendendo catrevage,
Trago naíma as tatuagens
Da minha origem cigana " |