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Nelly Novaes Coelho

 

Do Ermo à Urbe: “As Fugas do Sol”
 

 

O recente lançamento do CD-libreto As Fugas do Sol, de José Nêumanne Pinto, vem confirmar a garra de poeta maior que, em seus livros, há muito já se revelara. Nêumanne é dos raros poetas em que o popular e o culto, o rudimentar e o burilado, o “ermo e a urbe”, a seriedade e o ludismo se fundem em força e beleza. Agora, ampliada pelo impressionante contraponto musical, composto por Marcus Vinicius de Andrade, a fala poética vai revelando essas diferentes facetas do poeta, que (como o definiu Ivan Junqueira) é dono de “dons e virtudes que se diriam antes irremediáveis (...) como entre outros, a intuição secreta do ritmo, a vocação da economia verbal, o poder demiúrgico da organização estrutural, o sentido encantatório da palavra e um certo humor que se confunde com amor”.

A atual voga dos CDs-libretos de poesia é, sem dúvida, um dos eloqüentes índices de que, nestes anos 90, vem aprofundando a ruptura de fronteiras, tradicionalmente existentes entre os fenômenos naturais e culturais; entre os tempos passado-presente-futuro; entre os gêneros literários, etc., etc. Já não há como ignorar que estamos entrando na era do multiculturalismo.

As múltiplas linguagens, antes irredutíveis umas às outras, passam a dialogar entre si. E principalmente a poesia se transforma em espaço de convergência das multilinguagens que transitam por este nosso mundo cibernético.

Nessa ordem de idéias, podemos dizer que essa criação híbrida obedece à mesma busca de totalidade presente na série de livros publicados recentemente, nos quais a poesia é engendrada em contraponto com a pintura, fotografia, escultura, colagem, recursos gráficos especiais, etc.

Trata-se de diferentes linguagens que se fundem e se iluminam reciprocamente, tal como acontece nos diálogos entre poesia e música, registrados nos CDs. Diálogo que, neste As Fugas do Sol, atinge uma rara gama de significações, devido à perfeita sintonia – palavra/sonoridades – alcançada pela invenção musical de Marcus Vinicius.

Embora seja difícil detectarmos as causas exatas dessa nova diretriz criadora, arriscamos apontar algumas que parecem evidentes: – a incessante necessidade de renovação do processo criador; – a atual busca de totalidade (para neutralizar a fragmentação do mundo atual); - a crescente preocupação com a possível/impossível comunicação da poesia com o leitor “trabalho” pelos mass-midia e – a necessidade de resgate-reinvenção do passado ou das origens históricas ou míticas (como força-resistência à inevitável “globalização” que avança sobre os “quatro cantos do mundo” e ameaça diluir a identidade cultural de cada povo). E lembrando que a poesia nasceu vinculada à música (lembramos que a poesia grega-fonte originária da poesia ocidental, era cantada ao som da lira), certamente podemos ver nessa fusão poesia/música, difundida nos CDs, um intencional propósito de resgate-invenção das origens.

Nesta breve resenha do CD-libreto, As Fugas do Sol, do paraibano-paulistano José Nêumanne Pinto, nos limitaremos a esse enfoque, – o da redescoberta das origens ou heranças arcaicas, cujas raízes o poeta vislumbra, de repente (na Barcelona de Gaudi), mergulhadas no outro lado do Atlântico, no húmus ibérico (como é revelado nos emocionantes poemas, Barcelona, Borborema, a nosso ver, um dos pontos altos do universo poético criado pelo autor).
Poeta visceralmente ligado às suas raízes nordestinas e altamente consciente de sua funda relação com o multiforme aqui-e-agora, onde lhe cumpre atuar, Nêumanne comparece, neste CD, de corpo inteiro: com suas paixões, bom humor irreverente ou meio moleque, calor humano, agudo senso crítico temperado de ludismo, fraternal comunhão com a vida, em suas mil formas de manifestação e, at last but not the least, com a profunda sensibilidade musical que energiza toda sua ensolarada poesia, por vezes mergulhada em zonas de sombra.

Fácil notarmos que, ao selecionar os poemas para este CD (escolhidos nos livros Tábuas do Sol, 1986 a Barcelona e Barcelona, Borborema, 1992, – ambos reunidos em Solos do Silêncio, 1996), Nêumanne optou por aqueles que expressam mais fundo sua ligação visceral com o Nordeste de origem, – a Campina Grande que ele deixou há anos, para se radicar nesta “Paulicéia Desvairada”.

É, pois, transfigurada pela memória, que toda sua aprendizagem-de-vida é novamente vivenciada através a poesia. Inclusive Borborema, em contraponto com Barcelona, ultrapassa sua realidade concreta para se transformar em mito. O próprio poeta o reconhece: “A memória não imita / a cidade construída: / inventa a cidade mítica / e a funda novamente, / pedra sobre pedra / sonho sobre sonho”. (Barcelona 9). Talvez esse possa ser considerado o poema-síntese da concepção-de-mundo ou de vida que está nas raízes de sua poética.

Poesia dialogante, cuja linguagem obedece mais ao ritmo do que à melodia, a de Nêumanne encontrou na sensibilidade e talento de Marcus Vinicius o contraponto musical exato. Poesia e música se fundam numa encantatória mescla de linguagens, cuja mágica atmosfera resulta de uma essencial simbiose entre palavra, sons e ritmos, produzidos por uma complexa combinação de instrumentos de corda, sopro e percussão (viola nordestina, violoncelo, baixo acústico, flauta, teclado, gaita, surdo, ruídos onomatopêicos...). Hábil combinação harmônica que aprofunda o significado da fala poética e nos lembra, ao mesmo tempo, os ritmos populares dos violeiros e cantadores do Nordeste e os estranhos e dissonantes ritmos da música instrumental moderna.

Excelente introdução ao conhecimento e fruiçção da arte maior do poeta, este As Fugas do Sol, sem dúvida, levará os ouvintes a se quererem leitores... pois na verdade, só a leitura (o corpo-a-corpo com o texto) nos permite conviver longamente com o poema, sentir-lhe o pulso e o peso de cada palavra, respirar sua atmosfera. Para além do encantamento com que este CD nos fascina, é de se desejar que ele crie novos leitores de poesia...
 

Leia José Nêumanne Pinto

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Paulo Franchetti, 2003