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Miguel Sanches Neto


Moedas fora de circulação


Gazeta do Povo
20.10.97

 

Três momentos históricos da poesia brasileira estão sendo exumados com edições que, de uma certa maneira, negam o momento em que foram escritos. Tendo optado por não publicar Magma (Nova Fronteira, 1997), livro detentor de prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1936, Guimarães Rosa não só recusou sua condição de poeta como não reconheceu o filho nascido de uma aventura juvenil. O reconhecimento, feito agora por terceiros, traz à cena um livro anacrônico, que tem mais a dizer para os estudiosos do que para o leitor não-especializado. O livro é uma demarcação de fronteiras, ainda com traços toscos. Esta demarcação das fronteiras temáticas e lingüísticas do escritor é acompanhada por uma outra demarcação, a das suas influências juvenis. Wilson Martins já cantou as pedras: "Na leitura dos poemas escolhidos para esta edição, percebe-se que Guimarães Rosa via o Brasil pelo prisma de poetas que o haviam precedido: o [...] Guilherme de Almeida de Raça (1925), o Ronald de Carvalho de Toda a América (1926), o Raul Bopp de Cobra Norato (1931) e, para as composições sentimentais, o Ribeiro Couto dos Poemetos de Ternura e Melancolia (1924). Em outras palavras, era um poeta derivado e reflexo"(República, set. 1997).

Por suas fontes poéticas, é possível ver que o jovem Rosa se
encontrava em uma encruzilhada entre o lirismo sentimental e a
necessidade expressiva de escrever Brasil. É aí que parece residir o valor do livro, não só por cifrar um dilema de expressão poética, que uma década depois tomará o caminho inverso, retornando às fontes líricas, mas por desvelar um poeta fronteiriço que não quer (ou não consegue) optar por uma das duas correntes.

Há uma nítida divergência de direções em Magma, que reúne
poemas mais líricos (entre eles, alguns belíssimos haicais) e poemas narrativos que são antecipações de seus textos em prosa. Poderíamos dizer que em Magma é o olhar de ficcionista, de pervagante interiorano, que interfere no discurso poético. O livro marca o convívio entre o "ritmo selvagem" e a "melodia sentimental", entre a reportagem e a efusão lírica. Nesta mistura, no entanto, o que sobressai é uma poesia que investe numa abertura para a exterioridade. Deixando o universo fechado, claustrofóbico, do lirismo, o poeta expressa uma afetividade plasmada no reconhecimento da paisagem. Os poemas intitulados "No Araguaia" são a melhor condensação deste desejo de fazer uma poesia fundada na reportagem. A poesia que viaja realisticamente por nossa geografia convive com uma espécie de "Turismo sentimental", título do haicai que segue: "Viajei toda a Ásia / ao alisar o dorso / de minha gata angorá"(p.34). É este mesmo antagonismo que encontramos em peças como "Reportagem" e "Madrigal".

Abandonar a poesia e abraçar a prosa não foi propriamente
resolver o dilema entre duas formas de ver o mundo, entre duas maneiras de recortar a realidade. O que houve foi uma mudança de perspectiva. Se em Magma o poeta convive com o ficcionista, no resto da obra de Rosa, o ficcionista cultivará sua vocação poética. Magma assume sua real estatura por deixar claro que o regionalismo estilizado do autor deriva de uma experiência lírica, devendo ele ser pensado sempre a partir desta estréia, ou seja, como um prosador lírico. Isso marca com precisão o abismo que há entre ele e um Graciliano Ramos, que, significativamente, na adolescência cometeu alguns sonetos parnasianos - o tipo de poesia mais adequado à sua aridez.

Também praticamente inédito é o volume de um outro mineiro, Affonso Ávila, que somente agora teve o seu Código de Minas (Sette Letras, 1997) publicado na íntegra, embora, como admite o próprio autor, seja um livro dos anos 60. Na verdade, trata-se de um anticódigo na medida em que desconstrói os discursos fundadores da identidade mineira. Como toda poesia experimental, o livro chega ao leitor de hoje muito sem sabor. Seja pela repetição de seu processo construtivo, seja pela ortodoxia poética.

Os poemas são sempre derivativos. Eles nascem como implosão de uma frase ou de um conceito. Para cada poema, há sempre uma epígrafe que vai ser glosada com o intuito de romper com os clichês que fundam a mineiridade. Na luta contra a sociedade cristalizada, ele usa uma poesia contraventora, cuja significação está na desorganização das palavras, na sua metamorfose. Ao princípio da ossificação o poeta opõe o princípio da variação. Às frases feitas ele opõe o verso em progresso:

terra do lume e do pão
terra do lucro e do não
terra do luxo e do não
terra do urso e do não
terra da usura e DO NÃO

 

Adepto da pedagogia do não, Ávila opera uma negação recorrente que faz da forma o veículo de contestação da paralisação política do seu estado e, por extensão, do país. Este seu livro deve ser pensado dentro do salto participativo da poesia concreta. Explorando as semelhanças gráficas e sonoras das palavras, os poemas revelam uma dessemelhança semântica que mexe com o discurso endurecido - como pode ser visto em um dos melhores momentos do livro,
"Antifamília". Nele, o poeta cria fundo falso através de versos subterrâneos que contestam o oficial ao fundar um suporte irônico:

Com seus responsos
(com seus esconsos
de missa e beatismo
de omisso batismo
de sons velados e glórias
de sonegada história
as filhas de Maria
os filhos de Marília)

 

Código de Minas é livro para aparecer parcialmente, em antologias. Não existe nisto nenhuma perseguição política, como insinua o autor na nota liminar: "ao ser convidado a integrar, em 1978, uma coleção de antologias poéticas da Summus Editorial, de São Paulo, alguns dos textos do Código foram selecionados, a seu gosto, pelo poeta-editor encarregado: patrulhamento outra vez" (p.8). Não se trata de patrulhamento (como herói da resistência, o poeta sofre da neurose da perseguição), mas de um caso de recorrência maçante de procedimentos. Quando na íntegra, a repetição de recursos, o excesso de citações e a sua idéia fixa construtiva tornam-no monótono - o que intensifica ainda mais a sua condição documental. É inegável, todavia, que estamos diante do mais significativo caso de investimento no conteúdo político da forma.

Nos antípodas desta concepção de literatura, mas também fora de seu tempo, está o livrinho Muito prazer (Sette Letras, 1997), de Chacal, que aparece agora para marcar o 25o aniversário da estréia do poeta que foi um dos expoentes da poesia marginal.

Muito prazer, publicado em 1971, é um livro descontraído, dionisíaco por natureza, nascido contra a tendência apolínea que marcou as experimentações concretistas emuladas por Affonso Ávila. O autor aparecia naqueles idos como o enfant terrible, contestando através da descontração.

É uma poesia falada, não só pela presença de diálogos nos poemas mas principalmente pela condição de gasto imediato do discurso poético. Não é uma poesia feita para durar, muito mais do que isso, ela não é uma poesia feita, mas anotada. Este imediatismo da anotação poética ficava representado pela própria natureza física dos livros, toscamente mimeografados e distribuídos pelo próprio autor.

primeiro eu quero falar de amor

meu amor se esparrama na grama
meu amor se esparrama na cama
meu amor se espreguiça
meu amor deita e rola no planeta

 

Esta poética erotizada distingue-se por uma aversão a toda forma de contenção. Viver esparramado, deixar o poema rolar na página, escrever como uma forma de espreguiçar é uma proposta mais existencial do que poética. A relevância semântica desta poesia está no seu exercício do prazer. O livro de Chacal retrata com grande felicidade o período da ditadura, em que a poesia se confundia com a própria postura do poeta.

Também pertence ao passado este livro que, tendo sido criado com a intenção de servir para um aqui agora distante, chega ao leitor de hoje como uma moeda já tirada de circulação.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Ademir Demarchi