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Marigê Quirino Marchini

 

Salomão

 

Soares Feitosa: um poeta trágico, em "Salomão", mas cuja poesia, indo além da tragédia, ao encontro da esperança, transforma-se em lírica, numa ode ao povo negro.

Nas tarefas do sonho e do acordar trabalha o poeta. Não só de sonho o poeta vive, mas da vigília do dia. e assim sua poesia ultrapassa o sonho para ser a poesia da história.

Soares Feitosa congraçando vários fatos colhidos nos noticiários dos jornais contemporâneos, em simultaneidade de tempo e numa intercomunicação desses acontecimentos com outros fatos da história passada, dando-lhes a argamassa áurea da poesia, constrói o edifício novo de sua poética.

Jamil Almansur Hadddad, outro excelente poeta brasileiro, em Aviso aos Navegantes", empreendera um monumental painel histórico, com comportamento algo similar - essa intertextualidade das noticias em sincronidade com o curso poético.

Mas em Soares Feitosa essa disponibilidade à história suplanta, ultrapassa qualquer visão política ou ideológica, para transformar-se simplesmente em humanismo denso e universal.

Eis, pois, Soares Feitosa, poeta cristão, no que o cristianismo tem dessa visão humanista de vida-morte, alegria-dor, terra-céu.

E o Menino invocando em Salomão tanto pode ser Castro Alves, como quer o autor, homenageando-o no ano de seu sesquicentenário, como, por extensão de sua poética, pode ser Cristo, Ésquilo, ou o menino comido pelos abutres conforme reportagem ali mencionada.

Soares Feitosa usa também em seu livro o testemunho de fotos, com texto legenda; eles estão no livro muitas vezes como "ícones poéticos", aumentando a força trágica das palavras. (Essa expressão é do próprio Soares Feitosa, que referindo-se ao belo livro de Luís Antonio Cajazeiras Ramos, "Fiat Breu", doado a um presidiário, classifica-o nessa doação como um "ícone poético").

A vivência do autor é usada também como suporte de toda essa visão cristã de um mundo que está se construindo tantas vezes às custas do sofrimento, do desespero e desesperança de quanta gente.

Desse livro "Salomão" queremos ressaltar a transposição e desenvolvimento de verso de Castro ales, ’Stamos em pleno mar para ’Stamos em pleno morro" (mencionando também a interpretação criativa e fonética de "Stamos"), "no Século Cem, de Ésquilo" - como um dos movimentos de grande força trágica do livro.

A tragédia das moradias que desabam a cada chuva maior, neste Brasil de morros, soterrando quantos - e todo o livro é isso, a consciência do poeta aberta não só à beleza mas às dores do mundo, e que dores! - e clamando pelo seu conserto.

Assim temos a vivência pessoal e a vida do povo - principalmente o de raça negra, se entrelaçando nos melhores caminhos de uma história poética, que resgata essa mesma vida de cada um, não isolada, mas imersa nesse caudal de acontecimentos, que nos transporta todos juntos, para algum porto, quiçá de esperança - ou que seja pelo menos o da grande poesia de Soares Feitosa, ao mesmo tempo particular e universal.
 

in jornal Linguagem Viva, 07.11.97

 


Soares Feitosa

Leia obra poética de Soares Feitosa

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Paulo Franchetti, 2003