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Jornal do Conto

 

 

Mirna Gleich


 


Primeiro amor
 

 

Ele tinha três, ela quatro anos e pela primeira vez se viam ali. Ela loira, rosadinha, os cabelos cacheados, ele quase o contrário: cabelos pretos, bem lisos, a pele branca, branquíssima, realçando os olhos redondos e pretos, negros, enormes.

Ela, uma sábia. Conhecia de olhos fechados todos os meandros daquela escola. A sala de aula de paredes muito altas, o quadro-negro colocado muito acima de seus braços, o banheiro das meninas com vaso sem tampo, a secretaria com suas paredes forradas de pastas, a sala dos professores com a imensa mesa lascada e as cadeiras bambas...ah, sabia muito muito mais. Sabia o nome de quase todas as professoras. A sua, dona Márcia, que mandaram chamar de tia Márcia e depois mandaram chamar de Márcia, e depois disseram para chamar do jeito que quisesse. A do maternal, a Valentina. A do pré-um, a do pré-dois e também a do mini-maternal. Além disso, conhecia muito bem o jardim. Atrás do caquizeiro tinha um esconderijo fantástico, com banquinho e tudo, dava até pra fazer piquenique, jogar bolinha de gude, deitar e dormir. Nunca tinha feito nada disso, mas para se sentir sábia, forte e corajosa não precisava fazer as coisas, bastava que pudesse.

Já ele, demorava a desabrochar. Não por preguiça, nem por descaso: é que se via rodeado de espantos. Quando chegou à escola, trazido pela mão do diretor, seu pai, assustou-se de não ver ali a extensão de sua casa. A estranha moça que levou-o para o quintal tinha cheiro de limão e não lembrava, nem remotamente, a mãe. Sentado atrás da escrivaninha dourada, seu pai era o senhor diretor que atendia telefonemas, examinava gordas pastas e lia cartas e mais cartas. Ali, sozinho, desaprumado em seus suaves três anos, esqueceu as poucas palavras que dominava e só não chorou porque chamaria mais atenção. Fingiu que não via a cabeça de cabelos claros, um pouquinho acima da sua, o cavalinho de pau feito de cabo de vassoura. Mas dos olhos, ah dos olhos não conseguiu fugir: azuis e tão claros e feitos de céu que se ele tivesse um lápis...ah e se ele soubesse pintar e se ele não estivesse atado à mão da nova professora...que pena que ele ainda não tinha tido tempo de crescer!

Valéria sondava. Uma sábia menina de quatro anos pode brincar com um mudinho de apenas três? Sacudia o cavalinho de pau, rondando o menino. Tão espantosamente lindo, descompensava tudo que já tinha conquistado. Antes sabia contar de um até dez, pra frente e pra trás, mas agora já tinha esquecido. Tinha esquecido o caminho da sala de aula e o nome da professora. Só queria que o mudinho, que se chamava Davi, montasse no cavalinho com ela e juntos fingissem que sabiam galopar. Porque o dia tinha ficado tão longo que dava tempo de ir e voltar da lua, visitar a Cinderela, fugir do lobo-mau.

Davi largava a moça perfumada de limão e começava a percorrer o novo reino. Não é que as outras crianças também sabiam correr? Não ‚ que as outras crianças também sabiam chorar? Não é que tinha um menino quase igualzinho a ele segurando a outra mão da moça? E de repente não ‚ que a mãe parou de doer dentro dele?

Aderiu ao trepa-trepa, as palmilhas dos sapatos incomodando. Se chegasse lá no alto...se chegasse lá no alto teria se superado um pouco e haveria menos inimigos. Sim, porque fora Valéria que continuava tentando-o com o cavalinho, todos tinham abandonado seus brinquedos para acompanhar seu completo desconforto. Lá de cima, lá do alto, seriam todos definitivamente pequenos e ele, quase rei. Portanto largou a mão da moça perfumada e empurrou-se para cima. Seu primeiro ato de liberdade.

Valéria extasiava-se: os contornos e as cores de Davi. Os gestos, os olhos, o desamparo, as botas; a pele acetinada, a boca bem desenhada, o nariz arrebitado: o rosto mais que perfeito que a inundava. Impossível retomar antigas seguranças. Até os medos tinham se alterado. Na porta da escola, a mãe se afastando, não se detinha mais no abandono. Nunca mais estava só. Davi se estendia pelo recreio, pelas salas de aula, pelos cadernos, desenhando, inundando tudo de suave torpor. Como foi isso de Davi invadir e avançar, nunca entendeu então. Só percebia que gostava e se expor tornara-se um jeito. As manhãs se estendiam aveludadas e sempre muito curtas. Não mais cabiam nelas todos os beijos e intensos abraços que se supunha a dar. Ela que era tão sábia, no topo de seus quatro anos,

Davi era quase rei e de Valéria pouco percebia: tinha tantos espatos a desafiar. Por isso logo perdeu o azul intenso dos olhos dela atrás da bola que todos disputavam. As possibilidades eram tantas. Na sala de aula, os bloquinhos de contar armazenavam muitas promessas. Podia ser um castelo com imensas janelas, podia ser uma carroça e seu cavalo, um caminhão de gigantescas rodas, e a professora contava: uma janela mais outra janela, fazem duas janelas. Duas rodas mais duas rodas fazem quatro rodas. Quatro rodas mais duas janelas fazem seis bloquinhos que não eram mais rodas nem janelas e Davi começava a perceber quantos desvios cabiam em cada serena conquista.

Ela prosseguia. Primeiro, as urgências: carregar Davi em todos os devaneios, de um jeito que ela própria se ensinava. No fundo, era a maneira de manter-se em esplendor, sempre alguma coisa explodindo dentro dela. Então os fins de semana tornaram-se longos e inúteis. Sem a presença dele, as horas dormiam. Não que ela não se esforçasse em trazê-lo junto, mas é que havia muitas portas, havia muitas janelas batendo, havia muitos telefones que não paravam de tocar, e ela se desconcentrava. Ansiava pelas segundas-feiras e suas promessas de infinitos: navegariam milhões e milhões de horas antes que a semana se desse por finda e ela se recolhesse num pequeno sonho, num suave sonho que agora começara a alimentar. Desconfiava que faria cinco anos e haveria bolo, velinhas e festa e colegas da escola convidados. Todos na sua classe já vinham tendo aniversários e agora só faltava o dela. Seria uma tarde inteira só para ela, com presentes, doces, pasteizinhos de queijo e Davi brincando em sua casa. Ah Davi SUA em casa.

Com o passar do tempo ela tinha se permitido ousadias. Emprestava-se o mudinho com mais freqüência. Inventava para os dois, histórias de confidências e descortinava a caixinha onde guardava seus tremendos segredos. Então, na tépida penumbra de fim de sábado, desenrolava o papel dourado de chocolate suíço com a belíssima estampa da casinha na montanha; a concha madrepérola que achara na praia; a caixinha de fósforos com letras prateadas e finalmente o perigoso canivete que ganhara do tio. No entanto, por absoluto pudor, evitava de expor a folha dobrada onde, a muito custo, conseguira desenhar o nome dele.

Mas na escola era sempre muito melhor. Na sala de aula - apenas uma parede o separando dela - encantava-se com o som da voz da professora. Iam recortar desenhos de árvores e borboletas e mares de onde a professora queria salvar as enormes baleias e céus azuis de pássaros coloridos e fariam quadrinhos para pendurar nas paredes brancas. E cada esplendoroso desenho tinha uma história que Valéria se poupava de contar porque começara a desconfiar que ninguém conseguiria entender.

Um dia, por certo, ela cresceria. Ambos cresceriam. Os vazios finalmente seriam outros e teriam outros espantos a enfrentar. Aos quatro anos, porém, ela não pressentia nada disso e a única urgência verdadeira era comemorar com uma festa o seu próximo aniversário. Qual porém não foi possível, apesar de tanta intensa programação, porque caiu chumbada de catapora braba e o ano já ia terminando.

Depois, certamente, ela se repetiria. Seria sempre mágico e inexplicável, mas nunca teria o gosto da primeira vez.