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Maria Esther Maciel

 

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Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:

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Crítica, ensaio e comentário:

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Fortuna:


Uma notícia da autora:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

Luís André Nepomuceno

 

 

 

Inventários da Memória

 

 

A Memória das Coisas: Ensaios de Literatura, Cinema e Artes Plásticas (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004), de Maria Esther Maciel, como nos adverte a própria autora em nota prévia ao livro, reúne ensaios escritos entre 1999 e 2003, publicados esparsamente em revistas e jornais do Brasil e do exterior. O que permeia toda a discussão do volume, abrangendo diferentes universos estéticos de poetas, cineastas e artistas plásticos, é a utilização peculiar de sistemas de classificação e catalogação de coisas, idéias e percepções do mundo, do tempo e dos indivíduos, partindo, sobretudo, de indagações modernas particularmente selecionadas e articuladas pela autora.        

Longe de fechar compartimentos arbitrários nesse maquinário abrangente da investigação moderna sobre a relação entre o indivíduo e o mundo, Maria Esther não se prende a uma escola crítica e, mais que isso, não se prende a uma linguagem estética apenas, seja a literatura, o cinema ou as artes plásticas; antes, mescla essas diferentes percepções e mecanismos de revivescimento do homem e do mundo, num todo que não se deseja necessariamente simétrico, nem harmônico, mas profundamente revitalizado. Nesse contexto, uma profusão de nomes se inclui e se oferece à lembrança, à medida que se lêem os ensaios: do cineasta Peter Greenaway ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário, do escritor Jorge Luiz Borges ao cineasta Júlio Bressane, do cineasta Helvécio Ratton ao escritor Haroldo de Campos, do poeta Carlos Drummond de Andrade ao outro poeta Altino Caixeta de Castro. Todos eles são trazidos à discussão por um fio que os identifica: a capacidade, ou pelo menos o intento, de investigar ou traduzir o mundo. Assim, a organização dos ensaios está dividida em três partes: “Inventários do mundo”, “Texto, imagem, tradução”, e “Do inventário à invenção”, com um apêndice ao final do livro, em que a autora publica entrevista concedida a Floriano Martins, para o Jornal Rascunho, em março de 2003.        

Porque as questões são múltiplas e os ensaios, diversos e abrangentes, gostaria de me ater particularmente a duas questões que são colocadas no livro e que, de certa forma, dialogam com outras que venho pensando e considerando recentemente. É certo que minha maneira de enxergar o livro pode soar pessoal demais, talvez focalizando levianamente apenas aquilo que me diz respeito, mas ao mesmo tempo, não penso que tudo isso possa ser diferente, ou pelo menos, muito diferente. Afinal, estou diante de uma poeta cuja subjetividade assumida por meio de um “eu” multiplicado e explícito no poema é, sem dúvida, uma das marcas de sua poesia. As duas questões a que me refiro são, enfim, as seguintes: 1) a idéia de que as ordenações e classificações taxonômicas, explicitadas principalmente no cinema de Peter Greenaway são, na verdade, uma ironia e uma crítica aos próprios sistemas classificatórios da modernidade, iniciados, a meu ver, com a filosofia medieval escolástica e perpetuados pelo enciclopedismo iluminista; e 2) a idéia de que as coisas se inserem no universo da memória não pela funcionalidade, mas pela sua capacidade afetiva de articulações passionais.     

Ambas as proposições merecem uma breve consideração de minha parte. A primeira delas parece ser crucial ao desenvolvimento do livro. Maria Esther começa, dando-nos notícia das peças colecionadas por Arthur Bispo do Rosário, artista sergipano excluído do eixo intelectual e artístico do país: negro, pobre e psicótico (passou 50 anos num hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro), Bispo coletou objetos quotidianos de sua existência como marinheiro e empregado doméstico, e organizou imenso acervo de sua memória, hoje no museu que leva seu nome. Convicto de que coletava cacos de sua vida para o Juízo Final, e de que tinha sido escolhido por Deus para reconstruir o mundo, Arthur Bispo do Rosário colecionou objetos avulsos, como navios de madeira, roda de bicicleta, faixas, fichários, miniaturas, tabuleiros etc. O gesto é motivo para Maria Esther identificá-lo com o cineasta Peter Greenaway, ele próprio confesso dessa identificação, quando de sua visita ao acervo de Bispo. Greenaway teria se impressionado com a forma como ele “parece zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia”.

O motivo parece permear toda a discussão de Maria Esther Maciel, em A Memória das Coisas, partindo, sobretudo, da filmografia de Peter Greenaway que, como Bispo do Rosário (porém com consciência estética e intenções definidas), procura obsessivamente representar a imaginação taxonômica, ou seja, a necessidade lógica que tem o homem, e mais precisamente a intelectualidade, de ordenar o universo e classificá-lo em sistemas e catálogos que dêem conta de suas multiplicidades. Esse novo “inventário do mundo”, ou “museu de tudo”, no entanto, propõe justamente o sentido oposto daquilo que nele aparentemente reside: essa exposição de um sistema classificatório, pensando-se na intenção proposta por Greenaway, funciona, na verdade, como um anti-sistema de classificação, como um contraponto paródico à própria obsessão da filosofia escolástica medieval (que, como disse, creio ser o primeiro grande momento moderno de um racionalismo classificatório de inspiração aristotélica), ou seja, a reimaginação da taxonomia, por parte de Greenaway e Jorge Luiz Borges, dentre outros, revive para nós a tradição humanista que, oposta a qualquer sistema de classificação, entende que as coisas não devem ser compreendidas ou ordenadas, mas apenas trazidas à memória do indivíduo, como proposta de ressignificação. Não foi por motivo gratuito que o primeiro Humanismo substitui o termo “nomen” (“nome”, “denominação”), largamente difundido pelo nominalismo, pelo termo “res” (“coisa”, em sentido genérico), ou seja, substituiu o nome pela coisa, a denominação das coisas pela sua essência. É esse o legado de nossa filosofia moderna: qualquer denominação, ou anseio de sistematização, servirá para nos lembrar que toda catalogação é um fim em si mesma. Nesse sentido, A Memória das Coisas está afinado com as agruras e anseios de revitalização do homem, por parte de um lado da nossa modernidade.

        

E as coisas, ou objetos não compreendidos, porém trazidos à memória como entidades ressignificadas, é o segundo tema que destaco no livro, como ponto de convergência (segundo Maria Esther) entre poetas e cineastas, como Drummond, Altino Caixeta, Júlio Bressane, Helvécio Ratton. Com destaque ao livro Lição de Coisas, de Drummond, a autora revela que os objetos do mundo são vistos, pela poesia, como coisas (no amplo sentido da palavra) que, destituídas de sua funcionalidade ou de sua serventia, são deslocadas para um campo afetivo e passional, na ordem de uma memória profundamente subjetiva. É o que parece explicar muito do discurso lírico de O Livro de Zenóbia, volume de ficção também recentemente lançado por Maria Esther, e que investiga a existência poética de uma alma feminina, ao longo de seus mais de 90 anos. As listas supostamente guardadas nos cadernos de Zenóbia (nomes de aves, de cidades raras, de temperos, palavras preferidas e outras coisas) parecem atestar não a ordenação catalográfica de uma vida, mas a desordem angustiante e profundamente sedutora da memória.

        

Por fim, quero lembrar mais uma vez que A Memória das Coisas termina com entrevista de Maria Esther, concedida a Floriano Martins, em que discutem poesia, alteridade, referências teóricas, modernidade e outros temas. De resto, gostaria de me referir a uma frase da própria autora, bem ao fim da entrevista, e que me parece uma das necessidades mais urgentes da crítica no Brasil, sobretudo jornalística, o que serve tanto para os jornais inexpressivos do interior, quanto para os de maior circulação: “Sem crítica não há mobilidade do pensamento. E não se confunda crítica com a desqualificação sumária do outro, com a intolerância. O exercício crítico requer também a responsabilidade ética de entender a lógica do outro, para então colocá-la em crise, evidenciar suas contradições e fragilidades. Algo que precisa ser mais exercitado por nós, intelectuais do presente”.

 


 

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10.10.2007