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Maria da Conceição Paranhos


 


O Síndico


 

 

Aos sábados, a campainha tocava às 08h45min. Ivan, sozinho no apartamento, demorava-se. Esperava o segundo toque, às 08h46min. Então se levantava vagaroso e abria lentamente a porta. Após os cumprimentos e mesuras, dizia, como sempre, há 15 anos:

“— Desculpe, Sr. Clayton estava terminando o banho”.

Isto não sem antes molhar bem os cabelos, despenteá-los e os ir enxugando enquanto falava. Em seguida, cintava mais o roupão de banho, toalha em volta do pescoço e mãos na cintura, um charme verdadeiramente. Ivan era um sedutor irresistível, seus belos cabelos negros semilongos, as costeletas bem definidas, retangulares, finas e compridas, o que fazia um contraste com o corte casual, sutilmente desordenado, flou.

Ele, o síndico, esboçava um gesto não se sabe de irritação contida, neutralidade ou indiferença ou todas, aliadas a certo olhar de lampejos rápidos, maléfico. Tudo veladíssimo. Era um homem derrotado. Em grande parte por não aceitar o seu próprio desígnio, seu desígnio de dentro e o que lhe viera com a vida. Ele vivia — como diz meu sábio pai — serrando serragem. Pena. Sua falta de resignação diante da falência de sua empresa de construção civil era amarga e contaminava todos os seus atos, por óbvio sua vida doméstica e a de sua vizinhança.

E então Ivan lhe dizia:

“— Sr. Clayton, não quer entrar um pouco?”.

Com aparente naturalidade, Ivan fazia esta pergunta. Sua corrosiva ironia dançava nos olhos vivos e pensava em como o síndico era ridículo com suas preocupações comezinhas. E aquela gestualidade enrustida! E a postura teatral! Queria o Clayton exibir uma superioridade da qual não dispunha nem por personalidade nem por história de vida.

Às vezes o síndico dava um ou dois passos soleira adentro. Jamais se sentara, em 15 anos, quando das suas visitas formais, olheiras, o rosto e o cabelo ensebados e o cheiro de gasolina (fazia manutenção do seu Fiat Uno, já bem sambadinho, aos sábados pela manhã). 52 sábados por ano durante aproximadamente 10 minutos de pé à porta de Ivan, incluindo os rituais todos, 780 sábados em 15 anos. Horas, de pé! Ele pensava que iria humilhar Ivan com essa atitude que se queria cerimoniosa e fria. Ivan percebia uma faísca de maldade cortante no olhar de uns olhos verdes feios, de sapo, e no beiço caído.

“— O senhor precisa entender, Sr. Ivan, que não trabalhamos com previsões, mas com provisões. A situação do condomínio é preocupante”.

Nada exclamativo, tudo dito com desídia. Entretanto, Ivan gostava dele. Havia algo de comovente no Sr. Clayton. Talvez o seu desejo de ser correto em tudo.

O síndico rolava na boca aquilo que ele considerava um achado verbal :... previsões... provisões.

Ivan se ria ao me relatar isso. Dizia-me:

“— Olha aí, meu amigo, o tópico de tantas das nossas conversas: tudo é palavra! La vida es sueño. Calderón de la Barca grafou e fixou definitivamente o óbvio, e por isso é universalmente citado O que vale mesmo é a convicção de quem fala. Ou o modo como se escreve. O resto é com quem ouve. Ou lê”.

A bem da verdade, o Ivan, culto que fosse, possuía idéias com as quais eu não anuía. Mas nas questões de linguagem quase sempre concordávamos. E nada mais direi que deponha contra sua saudosa memória. Amigo meu não tem defeito. Muito menos amigo morto, que passa ao Olimpo, pura veneração. E, depois, ele fora um excelente jornalista, o melhor que já conheci — o que já é uma imensa vitória da lucidez contra a mediocridade da esmagadora maioria de seus confrades.

Mas foi assim que Sr. Clayton ia mesmo em busca da taxa condominial – expressão que, particularmente, detesto. Detesto, aliás, qualquer taxa. Detesto tanto, que nem tomo táxi, pela semelhança da primeira sílaba com o morfema de base tax-. Apesar do quê, não se pode confundir /ch/ com /ks/. Mas isto é a verdade da língua, seus sons. Todo o resto é arbitrariedade. Com a linguagem é assim. Sou lingüista, diga-se logo, para evitar mal-entendidos ou mal-entendimentos.

Ivan sistematicamente atrasava o pagamento de quase todas as suas contas, porém as pagava. Condomínio incluído. Não atrasava porque queria. Havia uma pessoa muito doente em sua família e com ela gastava quase todo o seu capital líquido, uma sobrinha querida e órfã, que vivia numa clínica particular em São Paulo, há anos. Esquizofrenia. Além do mais, as despesas de viagem, pois ia visitá-la com freqüência, sentia a sua falta e queria dar-lhe todo o seu carinho e atenção. Era como uma filha mesmo. Ivan tinha, além disso, dois filhos casados, todos dois fora, realizando seu Ph. D. na Universidade de Nova York com bolsa da Fullbright. Claro que havia, a despeito da bolsa, grandes despesas. E havia a pensão de sua ex-mulher, que padecia, pobrezinha, de transtorno bipolar do humor, compradora compulsiva na euforia, tragicamente paralisada na depressão, necessitava de medicação caríssima. Em qualquer dos pólos, Ivan despendia altas quantias, que a pensão não poderia dar conta.

Foi então que o Sr. Clayton resolveu convocar uma reunião de condomínio para que se deliberasse sobre o ônus fixo de um fundo de reserva. Isto é muito conveniente, acho eu. O Ivan também achava. O síndico comunicou a reunião extraordinária verbalmente.

Os condôminos incluíam uma mulher judia, cosmopolita, sensível, a Dona Sarah Beckmann; um Secretário de Estado, depois Ministro, o Dr. Ranulfo Taurino (um dos 12 obás de Xangô na casa de mãe Stella de Oxossi, yialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá); Marcus Vinícius Abrantes, que só aparecia nos fins-de-semana, para receber seus amigos, namoradas e ficantes; uma criaturinha amarga com ares de mulher exemplar, mas bem maluca, a Hannah Serena, que de serena não tinha nada — embora vivesse dizendo “eu estou sempre bem, Ivan, eu estou sempre bem”. Fora casada com um diretor de empresa financeira, o Marco Godinho. A sub-síndica era a mulher do Clayton, D. Arlete, uma portuguesa de meia-idade, bem labreguinha e mal-educada, bonitinha, engraçadinha, neurotiquinha. Acordava todos, nos finais de semana, com suas ordens ao zelador sobre a limpeza e os jardins.

O nome do prédio era “Jardim Atlântico”, situado num desses excepcionais morros da Bahia, capital. De um lado o Oceano Atlântico, com a imagem do Cristo baiano, o do Sermão da Montanha. Do outro, o U da Bahia de Todos os Santos. Um escândalo de beleza. Por isso Ivan permanecia ali.

Em conversa com a encantadora D. Sarah, desabafou:

“— D, Sarah, não me importo com fofocas do “nó duro” deste prédio a meu respeito, sei que existem. Mas os atos arbitrários da corja terrorista, tirando Ranulfo, Marcus Vinícius e Dulcinéia” (esta era a mulher do Ranulfo, em segundas núpcias, uma graça de pessoa) “é insuportável. É pura mediocridade, falta de respeito, de educação doméstica mesmo, tudo banhado a paranóia claytoniana”.

Ela respondeu calmamente:

“— Tenha paciência com eles, Ivan. Não são más pessoas. Uns e outros são traumatizados por perdas graves, das quais nunca se refizeram, perdas materiais, inclusive, como Clayton”.

“— Não se justifica, D. Sarah, todos nós sofremos perdas, a senhora então! E não ficamos amargos nem aborrecendo os outros”.

“— Procure colocar-se no lugar deles, meu filho: você é bonito, bem nascido, culto, refinado — cabe a você perdoar, sem jogar a primeira pedra, como vocês mesmos, católicos, dizem”.

Ivan não agüentava mais a pressão. O Sr. Clayton deu de ir à casa de Ivan diariamente, com choramingos, o gogó instável e tremendo, os olhos vermelhos, excessivamente irrigados pela soturna irritação contra Ivan que o acometia então. Ivan quieto, olhar distante, lacônico, “não se preocupe, Sr. Clayton, afinal sempre pago”.

Um dia o síndico disse que, se pudesse, pegava uma metralhadora e matava todos os negros da Bahia! Estes mesmos negros salvaram o edifício de ser incendiado por completo devido a um curto-circuito no apartamento da Hannah, o purgante louco. E Arlete? Diante de um problema normal com os filhos de Ivan quando crianças, traquinagem de meninos, disse que “teve de levar Clayton para a varanda do fundo e acalmá-lo”, pois dissera que ia resolver no revólver. Isto foi em um São João, quando as crianças colocaram bombinhas numa lata e as explodiram na frente da porta de serviço de Clayton. Os dois detestavam crianças. Podavam todas as brincadeiras que estas arquitetavam com as do prédio vizinho, o “Morada Ipiranga”.

O fato é que com uma dívida já alta de condomínio, Ivan ainda teria de pagar o fundo de reserva. Decidiu levantar dinheiro no banco, com um empréstimo, para sanar a situação. Pronto, estava resolvido.

Foi quando resolveu tomar todas num certo sábado. O que era simples agastamento, tomou proporções cada vez maiores.

Na madrugada de 1º de dezembro de 1999, dia dos 15 anos de sua sobrinha, a Walkíria — menina de meiguice e de caráter — como, aliás, os seus filhos, felizes e bons, graças a Deus — Ivan certificou-se se D. Sarah, Marcus Vinicius, Ranulfo e Dulcinéia estavam fora (passavam fora o fim-de-semana com freqüência). Estavam.

Neste mesmo dia, escreveu um poema sobre anjos, que jogou pela janela como aviãozinho para a casa da vizinha da esquerda, Dona Maria da Assunção.

Colocou uma bomba-relógio na garagem do prédio para as 3:00h e foi dormir.

Tenho muitas saudades do Ivan.

 

 

 


 

10/04/2006