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Marcelo Pen


 

Qual há de ser o mérito da linguagem da qual Deus tiver se retirado?  -- Gershom Scholem
 

 

Algumas décadas antes de Ferdinand de Saussure (1857-1913) iniciar suas pesquisas gramaticais, a Europa se maravilhava com descoberta do sânscrito. O idioma sagrado da Índia influenciou não só toda uma geração de comparatistas e neogramáticos, como também o estruturalismo do mestre de Genebra. As considerações em torno do indo-europeu suscitadas pelo sânscrito sem dúvida foram importantes, mas o espanto ocidental se deveu ao avançado grau dos conhecimentos dos doutos sacerdotes indianos, os brâmanes. Basta dizer que estes já lidavam com a noção da dupla articulação da linguagem, cerca de 2 mil anos antes de a teoria ter revolucionado a lingüística moderna.

Fonética, fonologia, semântica, gramática, praticamente todos os ramos do estudo da língua foram examinados na Índia. Com uma peculiaridade: o objetivo dos gramáticos consistia na procura dos instrumentos que levassem ao correto entendimento e ritualização dos Veda, o saber revelado.

Além disso, durante muito tempo, esse saber prescindiu do registro escrito. Havia uma supremacia da oralidade e da memória, em detrimento da escrita, supostamente vulgar. Como essa tradição oral tinha de ser transmitida com rigor absoluto (porque sagrada e ritual), o sânscrito, o língua “perfeita”, precisava ser conhecido em profundidade pelos sacerdotes.

Esse entrelaçamento sacrolingüístico não é incomum entre os antigos. Nos séculos II e III da nossa era e posteriormente, na Idade Média, um grupo de místicos judeus buliu com o hebraico numa das várias formas da tradição esotérica conhecida como cabala.

O hebraico era a língua sagrada dos judeus, como o sânscrito para os indianos. E, como os Veda para os brâmanes, a Torá tinha uma essência revelatória. Ela representava a palavra de Deus, toda a Criação e o próprio Criador. Ao contrário dos sábios da Índia Antiga, porém, a tradição judaica não se funda na manifestação da voz, mas da letra. Deus, em última análise, é o grande escrevinhador do Universo.

O modo como o Criador engendrou a natureza como ato de Sua vontade e por intermédio das letras sagradas permanece, contudo, um mistério. Segundo a cabala, uma maneira de descobri-lo estaria no exame da Torá, Sua palavra cristalizada no mundo sensível. Por meio do Pentateuco, os místicos judeus se aproximariam não só do mistério da existência, mas senão do próprio Deus. O livro é, assim, o caminho ontológico da revelação.

Mas os cabalistas de tendência lingüística não estudavam a Torá para obter conhecimento inteligível. O que buscavam era uma aproximação mística, um exame sensível que desvendaria o sentido subjacente à manifestação superficial do texto mosaico. Faziam isso trocando ritualisticamente as letras das palavras sagradas até que a linguagem denotativa se desvanecesse. Somente assim, os portões da verdade poderiam ser abertos.

Os cabalistas não se valiam apenas da Torá. De fato, a própria língua era veículo para suas considerações místicas. Como afirma Gershom Scholem, em O Nome de Deus, a Teoria da Linguagem e Outros Estudos de Cabala e Mística Judaica (Editora Perspectiva), “o objetivo primeiro dos místicos nesse domínio era o de, partindo da linguagem dos homens, nela descobrir a linguagem da Revelação, até mesmo a linguagem como Revelação”. Como Deus criou o Universo através da linguagem, toda a criatura tem uma marca lingüística. Falar é ser.

Grande parte dos esforços desses cabalísticas residiu nos exercícios em torno dos nomes de Deus. A mais famosa dessas denominações está numa passagem do Êxodo, em que o Criador se revela a Moisés na forma do tetragrama IHWH, a junção das consoantes hebraicas iod, he, vav e he. A tradição mística ainda apresentava uma versão com 72 letras e havia os que defendiam a idéia de a Torá ser o próprio nome de Deus.

A investigação lingüística descerraria, segundo Scholem, camadas de sentido cada vez mais profundas, as quais são “em última análise, apenas refrações daquela palavra absoluta, vale dizer, o Nome de Deus, nos meios infinitos da Criação.”

Scholem apresenta, em sua obra, as diversas correntes dessa tradição cabalística, desde o primeiro texto a preconizar a permutação dos nomes de Deus, o Sefer Ietzirá, provavelmente produzido entre os séculos II e III, passando pelos ensinamentos de Isaac, o Cego, até as ousadas teses de Abraão Abuláfia.
Cabalista espanhol do século XIII, Abuláfia via em cada letra do alfabeto hebraico uma chave para a aproximação com o divino. Com isso, propalava a combinação dos Nomes de Deus, à moda do Sefer Ietzirá, tornando públicas as técnicas sagradas que possibilitavam a imersão na esfera transcendente, o mundo oculto das visões e das profecias.

Isso posto, há duas considerações a tecer. Em primeiro lugar, a despeito de sua aplicação prática (na forma de um caminho para o encontro com Deus) e sua roupagem mística, a abordagem verbal dos cabalistas espelha admiravelmente a própria língua escolhida como objeto de devoção. Quando dizem que todas as letras dependem (e emanam) do tetragrama IHVH, essa não é só uma lei esotérica, mas um fato lingüístico. O alef, por exemplo, a primeira letra do alfabeto hebraico, é composto por dois iods e um vav, signos formadores do tetragrama:
 

‘\’
 

Além disso, grande parte da meditação sobre as letras dá-se em torno das consoantes. Como todas as línguas semíticas, são estas que dão o sentido essencial dos termos e o som final das vogais. Mas as consoantes permanecem como entidades puramente mentais e sem som, se não houver a aposição das vogais para atualizá-las no tempo. Não estranha que um dos exercícios de Abuláfia consistisse na emissão de cada letra do tetragrama com determinado som vogal, concretizando, assim, o medium abstrato.

Em segundo lugar, e mais importante, pois essa constatação remete aos estudos bramanistas e às modernas teses lingüísticas, o “texto” (seja oral ou escrito) é visto pelos cabalistas como atualização do aspecto transcendente da linguagem. Segundo a cabala, o texto possui diversas camadas de sentido, da qual apreendemos somente parte, ficando o restante, a seção implícita e geradora de significados, oculta. Atualmente, é possível aproximar essa atitude à tese do inconsciente da psicanálise, à teoria da função poética de Jakobson, à leitura dos mitos de Lévi-Strauss ou à estrutura profunda da gramática de Chomsky.

Ou, voltando à Saussure, a seus anagramas. No discurso poético examinado pelo genebrês, os anagramas representam o pré-texto, ou tema, que, sujeito a inúmeras combinações, cristaliza-se grosso modo no texto ocorrência. Isolado, o pré-texto gerador não tem nenhum sentido, como o nome de Deus para os cabalistas. Mas é justamente essa ausência de significado que o torna prenhe de significação, instaurando a “possibilidade” de sentido. Um sentido que, de acordo com Scholem, às vezes só pode ser captado pela poesia. Apenas os poetas, ele diz, percebem “na imanência do mundo, o eco da palavra criadora desaparecida”. Saussure assinaria embaixo.

Lançado este ano, o livro de Scholem também reúne outros de seus ensaios relativos à cabala, alguns de cunho histórico e um sobre o simbolismo das cores nessa tradição. Trata-se de uma obra para iniciados. Amigo de Walter Benjamin e autor de clássicos no gênero, como As Grandes Correntes da Mística Judaica e A Cabala e seu Simbolismo, Scholem parte do princípio de que o leitor entende do assunto. Por isso, não explica termos como En Sof (O Infinito), Mercabá (misticismo judaico dos dois primeiros séculos), nem se detém sobre o funcionamento dos signos hebreus. Um pequeno glossário teria resolvido esse problema. Não o único, aliás. Há inúmeros erros de gramática, distrações de revisão e virgulação lamentável, sobretudo no primeiro ensaio. Uma escorregada a que a editora, especialmente uma tão séria como essa, empenhada na divulgação de trabalhos importantes, não deveria ter-se permitido.
 

Essa atitude, é claro, ia de encontro aos doutores da lei mosaica (pela blasfêmia) e também aos outros místicos hebreus, que negavam a informação aos não iniciados.