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Marcelo Backes


 


Uma síntese dialética do mundo gaúcho


 


 

Tratado ontológico acerca das bolas do boi, de José Carlos Queiroga, é um romance grandioso, tanto física quanto metafisicamente. Tem bem mais de quinhentas páginas em formato imenso e qualidade equiparável à melhor produção literária do Brasil contemporâneo (falo de autores como Francisco Dantas, do nordeste, Luiz Ruffato, de Minas, e Sergio Faraco, do mesmo Alegrete de Queiroga). Na obra, o autor de Viagem aos mares do sul, romance, e Bazar, poesia, consegue superar a si mesmo no humor, apresentando uma cosmogonia do mundo pampiano, debatida literária, filosófica, sociológica, histórica e geograficamente, pelo menos...

O centro da narrativa é ocupado por Otacílio, o gaúcho sem propriedade dos dias de hoje, assim como Sirley era o gaúcho proprietário em Viagem... Ambos são gaúchos depois do gaúcho a pé. O problema de Otacílio – que vive em busca de “algún algo pela cidade que não é sua, hombre del campo, del llano, um vago, afinal, vagando” – é o cavalo e os apetrechos da pilcha que ele não tem; os adornos sagrados para o desfile de 20 de setembro, esse suspiro artificial de uma tradição moribunda, do qual ele quer participar a todo custo. Em sua busca desesperada, Otacílio inclusive lembra o Naziazeno de Dionélio buscando um jeito de pagar a dívida com o leiteiro. O fim de Otacílio, no entanto, é bem mais trágico, bem mais patético.

Nos arredores desse causo principal, Queiroga constrói todo um mundo de gentes e contos. São histórias inteiras nas notas de rodapé – desvios de ensaísta, picadas de contador, veredas de causista – e mesmo no interior da narrativa; mas, assim como em Montaigne, sempre voltamos mais ricos à estrada principal. O autor é, nesse sentido, um Simões Lopes Neto reunindo causos, e ilumina o mundo de seu livro bruxuleando, como o candeeiro – a metáfora é do próprio Queiroga –, deitando luz ora sobre isso ora sobre aquilo, procedendo, em suma, como numa campereada, e laçando um boi de estória aqui, outro ali, conforme a chance e a beleza do animal. O narrador chega a dizer, a certa altura, pedindo desculpas: “A charla se espicha e parece que estamos parando rodeio, em círculos, sem sair do lugar – fazendo lama, apenas, apenas lama.”

Queiroga é, assim, borgiano às últimas conseqüências – e maganão ainda por cima; ver, por exemplo, a ERRATA que mete lá pelo meio do livro, mais confundindo que ajudando. O autor passa o mundo inteiro no fio crítico de seu facão analítico; a realidade é onipresente, tanto aquela que o rodeia quanto a do mundo distante. O universo vira texto e o autor parece ter lido tudo, ter visto tudo e tudo tem a ver com seu assunto. Ele inclusive especula acerca da própria herança, e José Carlos Fernández de Queiroga torna-se herdeiro direto de José Hernández e de Facundo Quiroga; empunhando a bandeira de Martín Fierro, ele desce o cacete da ironia sobre Sarmiento e os de sua laia, não sem rir de si mesmo, siempre...

O narrador principal do Tratado é um temulento do orgulho, o bebum de seu próprio passado. Ele assume – muitas vezes ironicamente – a causa do narrado, apossando-se da linguagem de seus personagens. É um narrador-nós, um professor homérico – é Homero confessando sua “obra coletiva” – com os alunos em volta, ensinando a vida e a literatura, a vida através da literatura, a vida! E com um Instituto Cultural inteiro – mesa de debates, antro de discussões – a lhe dar apoio: o IC, um ic! soluçante, cujos membros insistem em meter o bedelho no tema e na linguagem do narrador. E este argumenta – e documenta – usando Deus e o mundo, inclusive a contradição, para provar que o gaúcho é o monarca das coxilhas, o grandalhão do mundo. Seu assunto – e aí ele volta a lembrar Viagem... – é o centauro degolado de sua parte inferior, que sem cavalo já não pode mais explorar a liberdade infinda do pampa, a vertigem do horizonte; um que ainda insiste em dominar o mundo e a natureza no grito. É o gaúcho obrigado à lavoura, largado da vida campeira, aquele que no lugar em que um dia navegou a cabeça de Gumercindo Saraiva hoje vê boiar um sofá feito barco, roubado pela piazada pobre numa loja que pegou fogo. E se o narrador fala é porque todo mundo calou durante muito tempo; e ele estende a charla, preocupado com o barco da narrativa – à deriva. E se declara desesperado! E diz que está se consumindo, à deriva, como o homem na canoa – é o conto de outro Quiroga –, picado pela cobra do passado...

O universo queiroguiano – que recupera personagens de obras anteriores, como o já citado Syrlei, ainda louco pela Quelem – é fronteiriço, mas passeia pelo mundo a fora e por todas as línguas, ainda que se concentre no pampa, o lugar em que o espanhol e o brasileiro se fundem, e o Gumercindo pode ser Saraiva ou Sarabia ou Saravia. Mas Queiroga não fica no regionalismo, na linguagem de talhe lunfardesco e na filosofia acaciana de Don Bagayo y Balurdo (os nomes significam; e balurdo, por exemplo, é algo como “embuste, confusão” em lunfardo), mas chega também ao inglês de alguma cocota ou ao latim rudo do Dr. Vazulmiro.

O romance de Queiroga é um livro no qual tudo parece excessivo, mas tudo é adequado; o leitor logo logo descobrirá até mesmo o método cheio de armadilhas do autor e poderá deixar de lado a parte “teórica” da obra. O caráter dispersivo do narrador apenas reflete um mundo sem metas nem referências, que ainda por cima lança fogos de artifício aos céus vagos do presente para comemorar sua própria falta de orientação. O humor é profundo, profundo; a gente sente a dor do sorriso entalado na garganta ao ler várias das passagens do romance. Quando o humor se torna violento – na sátira – nem Bento Gonçalves, nem o diabo e muito menos Deus escapam. Há cacetadas escondidas e declaradas pela obra inteira. A tradição gaúcha – real, construída e inventada – é dissecada de cabo a rabo. Manoel Canho, por exemplo, é condenado à pior das mortes no tribunal pampiano do autor. Nem dom Dadeus se safa... Queiroga não perdoa nem parente, dá nomes aos bois e mais um par de chicotadas por cima. Tem a fúria de um Thomas Bernhard da campanha; escreve com ódio, escreve para não matar, e isso só um artista genuíno – da estirpe do recém-citado austríaco ou do alegretense em caso – é capaz de fazer. Quando a coisa fica cabeluda demais, ele aplica o “tachismo” e inclusive o “tachismo” duplo, chamando – é a ironia – ainda mais atenção ao texto ao invés de escondê-lo. E ainda tem gente que ousa afirmar que não existe combate na literatura brasileira!

O Tratado de Queiroga é um romance-tese que, mesmo em sua parte histórico-analítica, dá um baile nos resultados obtidos em teses universitárias. Além da tese fundamental, das citações e das notas de rodapé, divide-se formalmente em títulos e subtítulos e subsubtítulos e subsubsubtítulos, carnavalizando a seriedade da forma acadêmica. E o autor é conseqüente, crítico, materialista, dialético, tem noção profunda do mundo que o rodeia. Ele vê e assimila tudo – sua história lembra um pouco, estilisticamente, o Rosas do Brasil de Sérgio Schäffer –, ensaiando sobre a história, a sociologia e a literatura do Rio Grande do Sul. O anacronismo da luta quixotesca do gaúcho está todo lá – o grito da metade sul do Estado é universal porque é, também, o grito identitário do sul da Itália, é o grito do basco, do corso e do irlandês –, mais a discussão filosófica acerca da ontologia gaúcha e a análise profunda de problemas essenciais como o dos sem-terra. A obra de Queiroga é, nesse sentido – mais que um romance-tese –, um romance-tudo, a síntese do mundo gaúcho, em forma e conteúdo.

 


Texto publicado no jornal Zero Hora

 

 

 


 

31/05/2006