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Um esboço de Da Vinci

 

 

Oscar D'Ambrósio


 Os detratores e desafetos do “Bruxo do Cosme Velho”

 

[in Jornal da Tarde, 24.10.1998]

 

 

Em a sair no próximo mês pela editora Nova Fronteira, Josué Montello percorre décadas da vida literária brasileira e apresenta os críticos e adversários do autor de – considerado, quase por unanimidade, nosso maior romancista. Entre os adversários e detratores estão Sílvio Romero, Luis Murat, Cruz e Souza e Agripino Grieco, que depois mudou de opinião sobre o autor de . A maior parte dos desafetos foi obtida pelo desempenho de Machado como crítico, função abandonada ainda no início da carreira
A máxima de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra, encontra guarida na literatura. Goethe foi chamado de asno por Paul Claudel, André Gide rejeitou a obra de Proust, Sartre contestou os méritos de François Mauriac e Fialho de Almeida criticou violentamente Os Maias, de Eça de Queirós. Portanto, não há bom escritor que não tenha sido arrasado em alto e bom som.

No Brasil, não poderia ser diferente. Aclamado por críticos do naipe de Alfredo Bosi, Antonio Candido, José Aderaldo Castelo, Eugênio Gomes, Raimundo Magalhães Jr., Lúcia Miguel Pereira, Dirce Côrtes Riedel e Roberto Schwarz, Machado de Assis teve seus detratores e desafetos. Enumerá-los é o desafio de Josué Montello em Os Inimigos de Machado de Assis (Nova Fronteira, 420 págs., R$ 35,00)

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), o maranhense Josué Montello é um especialista em Machado. Este é o quarto livro que escreve sobre o “Bruxo de Cosme Velho”, sendo que o mais recente, Memórias Póstumas de Machado de Assis, publicado no ano passado também pela Nova Fronteira, ofereceu uma visão original em que vida e obra do escritor carioca se conjugavam de maneira harmoniosa num estilo seguro.

Montello consegue enfocar dois temas. De um lado, mostra que os inimigos de Machado foram, na maioria, obtidos pelo desempenho da função de crítico literário. Por outro, é pessimista quanto ao talento dos resenhistas e à qualidade das críticas literárias hoje publicadas na imprensa brasileira.

Cabe recordar que o romancista, contista, cronista, poeta, tradutor, teatrólogo e memorialista Machado de Assis exerceu a função de crítico por pouco tempo. Estreou em 8 de outubro de 1865, no Diário do Rio de Janeiro, com o artigo “Ideal do crítico”, autêntica profissão de fé da função, e teve seu canto de cisne em 1879, com o exemplar ensaio “A nova geração”, publicado pela Revista Brasileira. Nesse período, segundo Montello, colheu mais inimigos do que amigos.

Aos 26 anos, ao assumir a responsabilidade de crítica literária no Diário do Rio de Janeiro, Machado traçou seus próprios passos nessa tarefa espinhosa: “Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada contra a insuficiência de seus amigos, solícita pelos méritos de seus adversários – e neste ponto, a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: – É levantando as estátuas do teu inimigo que consolidas as tuas próprias estátuas.”

Enquanto crítico, Machado de Assis lutou pelo aprimoramento da literatura nacional, acreditando que o exercício dessa função levaria à melhoria do bom gosto. Tal postura o leva a dizer: “Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.”

Montello concorda, julgando que, entre os contemporâneos de Machado, haveria três críticos de peso: o “compreensivo e severo” José Veríssimo, o benevolente, mas “sem o ostensivo pendor do litígio literário” Araripe Júnior e o “aguerrido” Sílvio Romero. Seus continuadores seriam Alceu Amoroso Lima, Plínio Barreto, Humberto de Campos, Sérgio Milliet, Oscar Mendes e Álvaro Lins.

Surge então um gancho para que Montello combata a crítica hoje feita nos veículos de comunicação. Ressalvando o nome de Wilson Martins, considera a crítica em extinção, já que teria ocorrido um deslocamento dos críticos dos jornais rumo às universidades. No entanto, esse comentário, que seguramente merecerá do escritor maranhense um futuro ensaio mais detalhado, fica em segundo plano no presente livro perante a magnitude do tema central: os inimigos literários de Machado de Assis.

José Veríssimo foi o primeiro a sugerir ao próprio Machado a reunião e publicação em livro das críticas literárias feitas ao longo de 14 anos, mas o escritor fluminense não pareceu muito animado com a idéia, questionando a validade do material e a dificuldade de reuni-lo. Coube a Mário de Alencar, filho de José de Alencar, ser o responsável pela coordenação póstuma dos textos machadianos, reunindo, pela primeira vez, os textos de crítica literária do criador de Iaiá Garcia.

Para Montello, Sílvio Romero foi, sem dúvida, o maior adversário literário de Machado de Assis, porque não suportava que o escritor carioca tivesse alcançado mais sucesso que o seu conterrâneo, o sergipano Tobias Barreto, e até escreveu um livro, Machado de Assis; Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, em 1897, cuja principal intenção era justamente reduzir o criador de Brás Cubas perante Tobias Barreto.

O sereno Machado e o exaltado Romero tinham temperamentos opostos. Este último chegou a escrever do autor de Dom Casmurro: “Esse pequeno representante do pensamento retórico e velho no Brasil é hoje o mais pernicioso enganador, que vai pervertendo a mocidade (...) O autor de Brás Cubas, bolorento pastel literário, assaz o conhecemos por suas obras, e ele está julgado.”

A desavença começara quando Romero combateu, em maio de 1870, o “lirismo”, o “subjetivismo” e o “humorismo pretensioso” de Falenas, segundo livro de poemas de Machado de Assis. Em seguida, Machado emitiu, no ensaio “A nova geração”, a seguinte opinião sobre os poemas do livro Cantos de Fim do Século, de Romero: “(...) podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética.”

Somente em 1905, já após o convívio na ABL, fundada em 1897, Romero elogiou o escritor carioca pela publicação das Poesias Completas. O curioso é que Machado, ao que se sabe, não era culpado do silêncio que recaíra sobre a vida e a obra de Tobias Barreto. Mais significativo ainda é que Machado nunca respondeu aos sucessivos ataques de Romero.

Muito desse comportamento se deve ao respeito de Machado que anunciara aos 23 anos, quando escreveu o seguinte conselho à própria pena de escritor: “Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas nem literárias, nem quaisquer outras; de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de modesta a pretensiosa, e em um abrir e fechar de olhos perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar.”

Coerente, Machado nunca replicou ou se defendeu e, aos 40 anos, já famoso, abandonara a crítica literária, que lhe valera inimizades. Para o mestre nascido no Morro do Livramento, a crítica exigia ciência e consciência. Portanto, era necessário que o crítico não se deixasse influenciar pelo ódio, pela polidez ou pela simpatia. Mesmo assim, ao refletir sobre a crítica literária, confessa, em 1868, em carta a José de Alencar, que ódios substituíram relações de amizade devido a opiniões que escreveu em jornais da época.

É o caso de Luís Murat. Poeta, deputado, jornalista e orador, fundou a ABL junto com Machado, mas ficou ofendido por não ter sido mencionado no longo artigo “A nova geração”. Por isso, a partir de opiniões contrárias ao escritor carioca de Graça Aranha e de Sílvio Romero, publicou, em 1926, cinco artigos contra Machado na Revista da Academia Brasileira de Letras.

Porém, bem antes disso, em 1905, quando ocorreu a eleição para a sucessão de José do Patrocínio na ABL, Machado de Assis ganhara um inimigo: o padre José Severiano de Resende. O autor de Quincas Borba, de fato, estimulara Mário de Alencar, filho de José de Alencar, a se candidatar, mas não fizera campanha pela eleição. O fato é que Mário venceu, derrotando Domingos Olímpio e o padre Resende, que obteve apenas um voto. Bastou isso para que o sacerdote chamasse Machado de “aborígine do Cosme Velho” e autor de uma obra que não deixaria “nem rastro, nem sulco, nem marco”.

Outro inimigo machadiano foi o gramático, contista e professor do Colégio Militar Hemérito dos Santos, que acusou Machado de omisso na campanha da Abolição. Por motivos desse porte e por falta de entendimento da grandiosidade literária do autor de alguns dos mais belos contos da literatura brasileira, o docente realiza a seguinte avaliação: “O segredo da arte de Machado de Assis é primário e rudimentar: está num vocabulário minguado e pobre, repetido tão amiúde, indo e tornando, passando incessamente sobre uma mesma tônica, que o leitor acaba por adormecer. Quem ler duas ou três páginas de Dom Casmurro, de Brás Cubas e do Memorial de Aires, tem lida toda a sua obra.”

A suposta omissão de Machado na causa abolicionista é negada por Montello. Amigo de Joaquim Nabuco, um dos líderes nacionais pela luta contra a escravidão, Machado elogiou a peça Mãe, de José de Alencar, não escondendo seu horror da escravidão. Algo que se repete no capítulo 47 de Quincas Borba, quando descreve o suplício de um preto escravo que vai ser enforcado perante a multidão. Esse tipo de texto, assim como o conto “Pai contra mãe”, que retoma o tema da sujeição da raça negra e da mãe escrava, contradiz as acusações de esquivo à causa da Abolição feita por intelectuais como João Ribeiro.

Graça Aranha conta, por exemplo, que Machado teria percorrido as ruas do Rio, sem chapéu, de carro, junto a um grupo de jornalistas, para aclamar Joaquim Nabuco, logo após a assinatura da Lei Áurea, em 1888. É fato que Machado não foi um homem de praça pública como Nabuco, Rui Barbosa ou José do Patrocínio, mas, em suas crônicas e outros textos, deixava transparecer seu pensamento.

Outro que lançou farpas contra Machado foi Pedro do Couto. Hoje esquecido, mas uma boa fonte para o conhecimento intelectual da primeira década do século 20, chegou a dizer “Ora, filósofo, Machado de Assis, é o cúmulo da toleima (...) Houve quem o chamasse filósofo, pensador. Essa gente não sabe que é filosofia nem que é ser pensador (..) De seus romances não há tipos que fiquem, como os deixou Eça de Queirós; não há costumes de um povo, porque não os descreveu o escritor; não há paisagens a admirar porque estas não as pintou ele. Só e só, boa linguagem.”

Até Cruz e Sousa, negro, humilde e figura maior do simbolismo brasileiro, atacou Machado, com os seguintes versos: “Machado de Assis, assaz/Machado de assaz, Assis:/Oh! zebra escrita com giz,/Pega na pena faz ‘zás’,/Sai-lhe o ‘Borba’ por um triz,/Plagiário do ‘Gil Blás’, /Que de Le Sage por trás/Banalidades nos diz./Pavio que arde sem gás,/Carranca de chafariz,/Machado de Assis assaz,/Machado de assaz Assis”.

Mesmo perante esses ataques pessoais, o escritor carioca optou pelo silêncio. Sem descendentes, assim como Brás Cubas, Machado sobreviveu – e se mantém cada vez mais atual – pelo seu legado literário. Após a morte, em 29 de setembro de 1908, há pouco mais de 90 anos, sua glória somente aumentou, embora tenha enfrentado ataques mesmo depois de morto.

Entre seus críticos, além do citado Murat, está Agripino Grieco, que afirmou, em Vivos e mortos: “O maior e o mais brasileiro dos nossos romancistas chamou-se Afonso Henrique de Lima Barreto”. Sobre Machado, admite: “Sou dos que encontram uma espécie de magnetismo suspeito em Joaquim Maria, admiro-o, resmungando contra minha admiração.” Mais tarde, porém, reviu essa posição, chamando o autor de Brás Cubas de “maior homem de letras do Brasil”.

É o mesmo Grieco quem conta episódios em que Machado, já idoso, foi chamado de moleque e quase agredido fisicamente na repartição pública em que trabalhava. Um dos desafetos foi um certo Aquino de Castro, que, ao saber que o processo burocrático nas mãos de Machado lhe seria desfavorável, descompôs o romancista e saiu arrebatadoramente, tendo que voltar logo depois por ter esquecido a bengala, que o “Bruxo” segurava com tranqüilidade, mostrando sua preferência pelo entendimento, nunca pelo debate.

O livro também recorda os elogios que Machado de Assis fez, em 1866, a Iracema, de José de Alencar. Aponta como, curiosamente, os dois escritores desenvolveram, em determinado momento, carreiras paralelas voltadas para a composição de perfis femininos. Na década de 1870, Alencar publicou Sonhos d'ouro, Til, Senhora e Encarnação, enquanto Machado produziu A Mão e a Luva e Helena. Todos esses romances enfocam o Rio de Janeiro da época, com seu ambiente urbano característico, amores vigiados , paixões arrebatadas e tipos de classe média.

Montello elogia especificamente três textos machadianos: Memórias Póstumas de Brás Cubas, pela “originalidade da urdidura expositiva”; Dom Casmurro, “pela unidade perfeita da trama ficcional” e Memorial de Aires, pela “perfeição estilística”. Avalia ainda que, enquanto crítico, poderia ter sido o melhor de sua geração, mas abandonou a crítica literária em nome da criação.

O livro inclui ainda textos raros, retirados de obras esgotadas, que reforçam a argumentação de Montello sobre os inimigos de Machado de Assis. Há a pena agressiva de Luís Murat e a polêmica de Sílvio Romero, assim como o advogado Lafaiete Pereira e Magalhães de Azeredo, que defendem os méritos machadianos. Também foi incluído o trecho de Compêndio de História da Literatura Brasileira (1906), livro didático em que Romero, ao tratar de Machado, finalmente lhe reconhece o valor. Mesmo assim, declara: “Machado de Assis é grande quando faz a narrativa sóbria, elegante, lírica dos fatos que inventou ou copiou da realidade; é menor, quando se mete a filósofo pessimista e a humorista engraçado.”

Ao longo da leitura de Os Inimigos de Machado, somos lembrados de Dostoievski, que, com o conhecimento da alma humana que lhe é peculiar, já alertara que “a crítica é, por vezes, a metralhadora que atira em tudo quanto se mexe”. Para Machado, no entanto, ser crítico literário era sinônimo de sinceridade, solicitude e justiça, o que significava evitar o ódio, a camaradagem e a indiferença. Nada de vaidade ou capricho, mas crítica fecunda, perseverante e elevada rumo a uma grande literatura nacional, algo que Josué Montello realiza, em sua obra, um mergulho agradável e bem fundamentado nas razões que levaram muitos a, por incompreensão ou inveja, negarem o valor literário de Machado de Assis. Perdoai-os, Admirável Bruxo, eles não sabiam o que faziam!
 

 

Oscar D’Ambrósio é jornalista e crítico literário

 

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John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Da Vinci

 

 

Gerana Damulakis


 O conselheiro na crônica do bruxo

 

A crônica e a história têm em comum a temática temporal e, talvez, por aí fique o ponto convergente. A história carrega além da erudição a certeza calcada nos dados precisos, que, a serviço do suporte documental, trazem consistência aos seus textos. Já a crônica, no extremo oposto, procura a acessibilidade de sua leitura, uma leitura para todos entenderem, advinda de um discurso livre e leve, haja vista seu primeiro veículo, o jornal ou a revista — bem diferente dos alentados tomos que guardam a História. Claro que se deve lembrar a existência cada vez maior de historiadores que procuram usar de certas liberdades narrativas para criar uma maior aproximação da obra com o leitor, realizando um saboroso passeio pelos tempos e seus registros.

O cronista Machado de Assis conceitua a crônica como “um confeito literário sem horizontes vastos” ou “uma velha patusca” que “fareja todas as coisas miúdas e grandes, e põe tudo em pratos limpos”, ao tempo em que se refere à história como “uma castelã muito cheia de si” ou “pessoa entrada em anos, gorda, pachorrenta, meditativa, tarda em recolher documentos, mais tarda ainda em os recolher e decifrar”. Enfim, se a aproximação ainda assim existe, o cronista pode ser visto como um historiador vivencial, porque os fatos são contados com o espírito do seu tempo. Vai, portanto, a crônica construindo a memória, fazendo história como a prima pobre da “gorda pachorrenta”, as duas parentes de Cronos.

No total, ambas guardam relação e contraste e se a crônica vai tecendo a história do seu tempo, caberá ao historiador usufruir da interpretação microscópica desses textos para dar-lhes o caráter monumental da História. Por tal atalho podemos recorrer ao historiador vivencial Machado de Assis e verificar como ele comentou o episódio de Canudos.

Selecionada pelo próprio escritor para integrar Páginas recolhidas, a crônica “Canção de piratas”, de julho de 1894, seguia o critério do autor ao elaborar a variedade do volume contendo “retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas.” A crônica é iniciada assim:

Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dous mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhes ponha nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando consigo a toda parte aqueles dous mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos...

Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a árvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.
Sim, meus amigos. Os dous mil homens do Conselheiro, que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas...

Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com seus dous mil homens, não é o dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha a apruma... Os partidários do Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre.

E por aí continua. Segundo Beatriz Resende, no seu estudo sobre a política nas crônicas de Machado de Assis, a questão política e social fica desprezada em função da fascinação poética que a figura messiânica suscita no autor de Dom Casmurro. O tratamento dado ao Conselheiro é o de um herói romântico, bandido-pirata, como diz a professora da UFRJ. É uma figura idealizada que fatalmente se choca com a imagem convencional do homem urbano, tornando-se, por isto mesmo, difícil de ser compreendida e aceita, embora permaneça no imaginário coletivo impregnada de grande poder de sedução. Ao pedir para que “não lhes ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério”, Machado parece querer conservar a feição mítica de uma imagem já bem longe da realidade. E, ao opor “artistas” aos “eleitores e contribuintes”, sugere uma criação revolucionária e romântica atribuída a um “guevárico conselheiro”, no dizer de Resende.

Em 13 de setembro de 1896, dois meses antes de ser enviada a expedição punitiva, comandada pelo tenente Pires Ferreira, que seria a primeira das derrotas sucessivas dos militares, Machado de Assis voltou a Antônio Maciel, o dito Conselheiro, citando-o em crônica pela segunda vez. Sem levantar o aspecto romântico que ele vislumbrou quase três anos antes na “Canção de piratas”, desta feita o tom não trai exaltação, ao contrário, remete ao líder de Canudos como se nunca tivesse escrito aquelas outras tão pungentes linhas. Na verdade apenas o recorda em função de um telegrama que noticia sobre um outro fanático baiano da época, Manuel Benta Hora. Começa desta maneira: “Dizem da Bahia que Jesus Cristo enviou um emissário à terra, à própria terra da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo de Orobó Grande. Chama-se este emissário Manuel da Benta Hora, e tem um séquito superior a cem pessoas.” Só linhas depois, como se de passagem, é que ocorre a citação: “Quanto à doutrina em si mesma, não diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Antônio Conselheiro. Sim, creio recordar-me que andou por ali um oráculo de tal nome; mas não me ocorre mais nada. Ocupado em aprender a minha vida, não tenho tempo de estudar a dos outros; mas, ainda que esse Antônio Conselheiro fosse um salteador, por onde se há de atribuir igual vocação a Benta Hora?”

Já em 27 de dezembro de 1896, Conselheiro não mais é uma vaga lembrança. Chega mesmo a ser citado com intimidade (“nosso grande Antônio Conselheiro”), ainda que sem o entusiasmo de outrora e, incrível, o mesmo Machado que pediu para não se colocar “nomes” à figura mística, chama-o de taumaturgo: Tudo é possível. Já se vêem ossos através da carne; dizem que Édison medita dar vista aos cegos. É o que faz na Bahia, sem outro instrumento mais que a sugestão, o nosso grande taumaturgo Antônio Conselheiro.
Em 14 de fevereiro de 1897, ressurge o prestígio do Conselheiro, que volta a ser motivo de início de mais uma crônica do Bruxo: “O homem que briga lá fora”, de A Semana.

Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de S. José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:

— Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.

— Quem?

— Me esqueceu o nome dele.

Leitor obtuso, se não percebeste que “esse homem que briga lá fora” é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é “esse homem que briga lá fora”. A celebridade, caro e tapado leitor, é isto mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais.... A ironia, tropo básico do discurso e característica do modo de pensar do homem (desde Sócrates?), traz uma forte carga crítica seja pela ambigüidade, seja pela via da negação, o que, de resto, é utilizado na crônica brasileira quase obrigatoriamente. Exemplo disso está no seguimento do texto: Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova York e de Londres onde o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito é triste, mas vê se tu, leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer baixar o menor dos nossos títulos.

Como a crônica gosta de parecer uma conversa fiada, um puxa-puxa de assuntos numa prosa vária, Machado parte daí para fazer a análise de um livro de Coelho Neto: Um dia, depois de extinta a seita e a gente dos Canudos, Coelho Neto, contador de cousas do sertão, talvez nos dê algum quadro daquela vida, fazendo-se cronista imaginoso e magnífico deste episódio que não tem nada de fim-de-século. Profetizando, o autor de A mão e a luva diz que a pena de um escritor dará fama à história de Canudos, talvez Coelho Neto, mas foi um estrangeiro, Mario Vargas Llosa, com mão de mestre, que, mesclando sua ficção à pesquisa feita in loco, realizou a profecia de Machado com o romance A guerra do fim do mundo publicado, em 1981, pela Francisco Alves Editora.

Passando para outra matéria, os tipos de chapéus, a crônica encerra com o motivo que estimulou a entrada, quando a cartola vai dar vez para o remate final: Chamam-lhe cartola, chaminé, e não tarda canudo, para rebaixá-lo até a cabeleira hirsuta de Antônio Conselheiro. Mais ironia. Assim é a nossa crônica, um gênero bem brasileiro.

 

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