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Lyslei Nascimento




Dicionário em estado de poesia

 



 

As célebres lições do mestre Carlos Drummond de Andrade penetre surdamente no reino das palavras, elide sujeito e objeto, chegue mais perto e contemple as palavras: ei-las, impregnadas de múltiplos sentidos, em estado de dicionário estão, no Dicionário mínimo: poemas em prosa, de Fernando Fiorese, delineadas, não sem beleza, de forma exemplar e rutilante.

O estado de dicionário da poesia – que adensa forma e sentido – é, para Fiorese, um exercício de contenção, no qual, como no Zohar, em cada palavra brilham mil outras tantas palavras. Assim, onde seria mais fácil deixar falar as palavras em sua luxuriosa performance, soltar a indestra língua, alucinadamente, o poeta cabalista recria o verbo em sua condição de milimétrica e alfabética economia, inscrevendo-se, assim, numa tradição de escritores que elegem, como na máxima borgiana, tudo num ponto para dizer das ubiqüidades perenes da poesia.

A poesia de Fiorese apresenta, dessa forma, o que Italo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio, poderia chamar de um jogo entre a multiplicidade, a exatidão e a consistência. O dicionário é, a partir dessa tríade, apresentado como metáfora do exercício plenamente consciente das possibilidades alquímicas do verbo, dos arranjos e combinações de sentido, das escolhas e contenções das letras e palavras que o poeta, além da tentação do verbo, carrega de significação. Leia-se, por exemplo, no verbete cadeira: “As leituras da cadeira – Manuais de instruções, bulas de antipiréticos, anais de congressos de lingüística, relatórios de guarda-chaves, resenhas do último livro do filósofo francês”.

A multiplicidade, a partir da escolha da forma do dicionário mínimo – cadinho do poeta – apresenta-se como no aforismo em que toda escolha implica renúncia. Dessa forma, como um sistema de sistemas, a cada verbete constitutivo do livro, centenas de outros espreitam as inferências, as reminiscências e os questionamentos do leitor. Como no verbete “sombra”, as palavras estão ali desde sempre, as ausentes e as nomeadas, convidando o leitor para soletrar fantasmas. Para Calvino, a multiplicidade é a obra inconclusa, a complexidade inextricável do mundo, uma rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo. No verbete martelo, por exemplo, lê-se: “Há uma família – marreta, serrote, alicate – e o álbum dos desastres. Mas, como suas obras, martelo nunca está em casa. Está em rota para o mundo manual”; ou no verbete bilosca: “Embora substantivo simples, a sua redondez exige justaposição com búlica, vocábulo que ensina ao signo vazio” ou em linha: “Em sendo uma máquina simples, linha acomoda do horizonte a medida, da ponte as aspas, da esquina o adeus, do caderno o entorno, do gesto a infância. A garatuja basta, inteira paisagem”.

Aliada de forma visceral à multiplicidade, a exatidão, nos poemas de Fiorese, impregna de ilusão a escrita e a leitura lexicográficas, tornando portáteis as palavras e os versos nas mãos de uma provável dama antiga. A exatidão é definida por Calvino como: um projeto de obra bem definido e calculado; a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; e uma linguagem que seja a mais precisa possível, como um léxico em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. Então, todas as palavras são assim, possibilidades de viagens, recuperações ancestrais de poemas-valises, prosódias líquidas da palavra e matemática de soluções particulares, autobiográficas, como no verbete anágua: “Na infância se escondia sob as saias que jamais levantei. Ou acenava do varal, com rendas e aromas”; e também em flamboyant: “nem palavra nem árvores. Flamboyant é bote, boiando acima da tarde. Flamboyant cresce à margem do dicionário”.

Segundo o poeta, ninguém escolhe o assalto da palavra, mas o que lhe interessa recortar é o assalto das palavras sozinhas, sozinhas apenas, sem mistificação. Daí que a última proposta de Calvino, a consistência, se apresente na poesia de Fiorese como a torre: “Considerando que o labirinto seja a vertigem da geometria, o éden bárbaro, e a pirâmide, a domesticação desse abismo horizontal; considerando que o labirinto faz-se e desfaz-se em horizontes e a pirâmide se impõe como único horizonte, a ponto de negá-lo com sua matemática inumana; considerando que o labirinto nos habita antes de o habitarmos e a pirâmide nos coloca à distância; então, a torre aniquila qualquer curva, qualquer reta, para afirmar-se como ponto de vigia”.

Se a linha é um capricho do tempo, bifurcação sem sentido até que se realize o arabesco, o texto poético de Fiorese, a partir da tríade proposta de Calvino, sustenta o fascínio daquilo que se constitui como repertório, protocolo, álbum e coleção. O verbete, em sua forma alfabética, enumera possibilidades e abriga inclusões e exclusões, deixando entrever, entre letra e letra, no espaço aparentemente exíguo do dicionário, a beleza do aceno do emigrado, de uma aranha de pernas para o ar, dos esdrúxulos nomes. Após a cena, os atores (poeta e leitor) acolhem o mínimo gesto da escritura/leitura.


Bibliografia:

FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Dicionário mínimo: poemas em prosa. São Paulo: Nankin Editorial; Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA, 2003. 71p.

 



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08/06/2005