revista de poesia nº 1 - março de 2004 poesia |
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[Enquanto
faço o verso] Enquanto
faço o verso, tu decerto vives. Trabalhas
tua riqueza, e eu trabalho o sangue. Dirás
que sangue é o não teres teu ouro E
o poeta te diz: compra o teu tempo. Contempla
o teu viver que corre, escuta O
teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo. Enquanto
faço o verso, tu que não me lês Sorris,
se do meu verso ardente alguém te fala. O
ser poeta te sabe a ornamento, desconversas: "Meu
precioso tempo não pode ser perdido com os poetas". Irmão
do meu momento: quando eu morrer Uma
coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: MORRE
O AMOR DE UM POETA. E
isso é tanto, que o teu ouro não compra, E
tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto Não
cabe no meu canto. CANTARES DE PERDA E PREDILEÇÃO, LXVIIVida
da minha alma: Um
dia nossas sombras Serão
lagos, águas Beirando
antiqüíssimos telhados. De
argila e luz Fosforescentes,
magos, Um
tempo no depois Seremos
um só corpo adolescente. Eu
estarei em ti Transfixiada.
Em mim Teu
corpo. Duas almas Nômades,
perenes Texturadas
de mútua sedução. O
POETA INVENTA VIAGEM, RETORNO E MORRE DE SAUDADE
Se
for possível, manda-me dizer: -
É lua cheia. A casa está vazia - Manda-me
dizer, e o paraíso Há
de ficar mais perto, e mais recente Me
há de parecer teu rosto incerto. Manda-me
buscar se tens o dia Tão
longo como a noite. Se é verdade Que
sem mim só vês monotonia. E
se te lembras do brilho das marés De
alguns peixes rosados Numas
águas E
dos meus pés molhados, manda-me dizer: -
É lua nova - E
revestida de luz te volto a ver.
PRELÚDIOS-INTENSOS
PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR I
Toma-me.
A tua boca de linho sobre a minha boca Austera.
Toma-me AGORA, ANTES Antes
que a carnadura se desfaça em sangue, antes Da
morte, amor, da minha morte, toma-me Crava
a tua mão, respira meu sopro, deglute Em
cadência minha escura agonia. Tempo
do corpo este tempo, da fome Do
de dentro. Corpo se conhecendo, lento, Um
sol de diamante alimentando o ventre, O
leite da tua carne, a minha Fugidia.
E
sobre nós este tempo futuro urdindo Urdindo
a grande teia. Sobre nós a vida A
vida se derramando. Cíclica. Escorrendo. Te
descobres vivo sob um jogo novo. Te
ordenas. E eu deliquescida: amor, amor, Antes
do muro, antes da terra, devo Devo
gritar a minha palavra, uma encantada Ilharga
Na
cálida textura de um rochedo. Devo gritar Digo
para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo Imensa.
De púrpura. De prata. De delicadeza. II
Tateio.
A fronte. O braço. O ombro. O
fundo sortilégio da omoplata. Matéria-menina
a tua fronte e eu Madurez,
ausência nos teus claros Guardados.
Ai,
ai de mim. Enquanto caminhas Em
lúcida altivez, eu já sou o passado. Esta
fronte que é minha, prodigiosa De
núpcias e caminho É
tão diversa da tua fronte descuidada. Tateio.
E a um só tempo vivo E
vou morrendo. Entre terra e água Meu
existir anfíbio. Passeia Sobre
mim, amor, e colhe o que me resta: Noturno
girassol. Rama secreta. ODE
DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO, I
É
bom que seja assim, Dionisio, que não venhas. Voz
e vento apenas Das
coisas do lá fora E
sozinha supor Que
se estivesses dentro Essa
voz importante e esse vento Das
ramagens de fora Eu
jamais ouviria. Atento Meu
ouvido escutaria O
sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio. Porque
é melhor sonhar tua rudeza E
sorver reconquista a cada noite Pensando:
amanhã sim, virá. E
o tempo de amanhã será riqueza: A
cada noite, eu Ariana, preparando Aroma
e corpo. E o verso a cada noite
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![]() Hilda Hilst (Brasil, 1930-2004). Poeta e ficcionista. Autora de livros como A obscena senhora D (1982), Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), e Do amor (1999). |
Luís Miguel Nava | |
RETRATOA
pele era o que de mais solitário havia no seu corpo. Há
quem, tendo-a metida num
cofre até às mais fundas raízes, simule
não ter pele, quando de
facto ela não está senão
um pouco atrasada relação ao coração. Com
ele porém não era assim. A
pele ia imitando o céu como podia. Pequena,
solitária, era uma pele metida consigo
mesma e que servia de
poço, onde além de água ele procura protecção. PAISAGEM CITADINAA
pele por fulgurantes Instantes
muitas vezes abre-se até onde seria
impensável que exercesse com
tão grande rigor o seu domínio. Não
temos então delas senão rápidas visões,
onde os reclames do
coração, se cruzam solitários e
agrestes, refectidos por
trás nos ossos empedrados. Em
certas posições vêem-se as cordas do
nosso espírito esticadas no terraço. A
roupa dói-nos porque, embora nos
cubra a pele, é dentro do
espírito que estão os tecidos amarrados. SEM OUTRO INTUITOAtirávamos
pedras À
água para o silêncio vir à tona. O
mundo, que os sentidos tonificam, surgia-nos
então todo enterrado na
nossa própria carne, envolto por
vezes em ferozes transparências que
as pedras acirravam sem
outro intuito além do de extraírem às
águas o silêncio que as unia.
ESTACASOs
meus ossos estão espetados no deserto, não há um
só no meu corpo que lhe escape. Cravados
todos eles na areia do deserto, uns a seguir aos
outros, alinhados. Seria
absurdo falar-se de esqueleto. A
pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.
Quem diria? A pele, outrora hasteada, uma bandeira, quase uma coroa. O
vento apoderou-se-me das vértebras. O próprio sol que entre elas brilha é
descarnado, um sol deserto, onde o deserto penetrou. Talvez
pudéssemos lavá-lo, este deserto, quem sabe, ou amarrá-lo, amordaçá-lo.
A pele garante o espaço, o resto logo se veria. LAMPARINAAgora
que escurece, impregnam-me a
carne os sucos da memória, essa memória que,
pela sua força unicamente, a
ergue entre os destroços e a alumia como
uma lamparina onde
as lembranças fossem o azeite.
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![]() Luís Miguel Nava (Portugal, 1957-1995). Poeta, ensaísta, crítico literário. Autor de livros como Películas (1979), e O Céu sob as Entranhas (1989), e Vulcão (1994). |
Maria Esther Maciel | |
AULA DE DESENHOEstou
lá onde me invento e me faço: De
giz é meu traço. De aço, o papel. Esboço
uma face a régua e compasso: É
falsa. Desfaço o que fiz. Retraço
o retrato. Evoco o abstrato Faço
da sombra minha raiz. Farta
de mim, afasto-me e
constato: na arte ou na vida, em
carne, osso, lápis ou giz onde
estou não é sempre e
o que sou é por um triz. ELEGIAHá
um vestígio mineral na
sua ausência: algo que
sem estar ainda fica:
fatia de cristal que
não se vê e brilha: solidez
em transparência elegância
de pedra, luz do
que é perda e não. Há
um vestígio musical na
sua ausência: algo que
é sigilo e ressonância: sintonia
de cristais sílabas
de sim no silêncio
do som e do aqui.
A
VOZ E O ESPELHO Tu
presencia me deshabita: saio
a esmo sem
medida do mesmo no
ermo de mim: faço-me
diversa convexo-me
em ti no
reverso onde
me perco revejo-me,
reescrita e
recomeço, inversa embora
a mesma mas
ao medir-me não
mais te vejo e
no instante do
espelho finito reflito: Tu
ausencia me habita. PAISAGEM COM FRUTASDuas
peras sobre a mesa esperam
a tua fome. O
dia é verde e
o vento tem cores provisórias. Sobre
o muro um
pássaro mudo de
olhar escuro perscruta
a tua sombra Ele
sabe que
ninguém sabe em
que azul ocultas
teu
absurdo. AS
IDADES DE ZENÓBIA Aos
dezoito anos, Zenóbia tinha olhos ávidos e não usava óculos. Os cabelos,
de um preto instável, pendiam em breves ondas sobre os ombros. Seu corpo
magro lhe impunha uma fragilidade que não tinha. Sorria sempre como se
escondesse a face sob as sombras. Aos
trinta e dois anos, Zenóbia tinha olhos óbvios e ainda não usava óculos.
As maçãs do rosto, de um rosa rubro, quase que encobriam o nariz miúdo.
Os cabelos, reclusos. Uma linha – quase ruga – trazia à testa um ar de
austera brandura. Mas nenhuma dureza no conjunto, nenhum escuro. Aos
quarenta anos, Zenóbia tinha olhos sóbrios e passou a usar óculos com
aros de tartaruga. Os cabelos, curtos. O risco na testa, agora um sulco. Seu
vulto era raro. O sorriso esquivo: seu
ponto de fuga. Uma incerta elegância a tomava, quase absurda Aos cinqüenta e oito anos, Zenóbia tinha olhos sólidos, sob os óculos de lentes turvas. No susto da idade aprendeu que ainda era cedo e quis experimentar tudo. Nos cabelos plúmbeos, nenhum sinal de pejo. Imune ao peso do mundo, ela parecia não ter culpa ou medo. Aos
setenta e quatro anos, Zenóbia tinha olhos estóicos por detrás dos óculos
de hastes curvas. Trazia o cabelo de nuvem rente à nuca. E apesar do luto,
não perdia o lume. De tudo, mesmo das coisas soturnas, sabia extrair o
sumo. Sua vida era o resumo de seu nome. Todos diziam que não morreria
nunca. Aos
oitenta e nove anos, Zenóbia parece ter setenta e quatro. Os olhos, sob as
lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone. Já
não há dor ou noite para a sua alma, é claro. Na aura da idade, já sabe
quase tudo. E todos já pensam que ela é um milagre. Ou um sonho.
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![]() Maria
Esther Maciel (Brasil,
1963). Poeta e ensaísta. Autora de livros como As vertigens da lucidez:
poesia e crítica em Octavio Paz (1995), Triz
(1998), e O Livro de Zenóbia (2004). |
António Osório | |
INGRESSO Antes
de entrar no Zoo compra-se
o bilhete a
um sujeito oito
horas dentro
de pequena jaula. O
VETERINÁRIO AMBÍGUO
Recusava-se
a ir ao matadouro. O
seu lugar era na consulta externa.
Com a grossa seringa, a
caixa de antibióticos, de bata branca.
Sabia liberalmente falar-lhes.
Assim falava Aquiles
com o seu cavalo lamentando-se,
jovem, de morrer. UM
SENTIDO
Porque
há um sentido no
lírio, incensar-se; e
no choupo, erguer-se; e
na urze arborescente, ampliar-se; e
no cobre, primeira cura, que
dou à vinha, procriar-se. E
outro, pressago, sentido
há na memória, explodir-se. E
outro, imensurável, no
amor, entregar-se. E
outro, definitivo, Na
morte, render-se.
GINÁSIOEle
sofrera uma
paralisia facial. A
seu lado, o jovem que
caíra do andaime, tetraplégico.
Os trombosados, as
vítimas daquela inquieta lepra. No
ginásio do Hospital, as
atentas, dadivosas fisioterapeutas. Havia
uma, que seguia o
encanto da luz. Segredava-lhe os
movimentos como se fossem de
amor. Impunha, acariciava. Possuía
a elegância e
o olhar afectuoso da
rola que cuida dos filhos. A ANTIGA PENSÃOÁs
escuras os
cães temem subir
as escadas. Como
crianças e
mulheres velhas. Pelo
estudante esperavam à
porta da pensão. Ficavam no
terceiro andar. Vindo
atrás, degrau
a degrau, ele
falava e
a voz subia,
iluminava.
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![]() António Osório (Portugal, 1933). Poeta. Autor de livros como A Raiz Afectuosa (1972), Aforismos mágicos (1986), e O lugar do amor (2001). |
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