revista de poesia nº 1 - março de 2004 ensaio |
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poesia contemporânea no Brasil |
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Ao escrever sobre o modernismo - Semana de
Arte Moderna, de 1922 -, o poeta Ivan Junqueira recorda que “o furor
iconoclástico do grupo de 22 era tamanho e tão difuso que seus integrantes
chegaram a proclamar que não sabiam bem o que queriam, mas sabiam
perfeitamente o que não queriam”. A isto seguiu-se toda uma ordem de
estardalhaços, alguns célebres pelo ufanismo retrógrado. O correto seria
falar em modernismos, tamanha a variação de facções poéticas e tão rara a presença da poesia naquelas que
se impuseram como consagradoras do movimento. E mesmo aí não teríamos
propriamente divergências, mas antes simplesmente desencontros. Em conferência célebre (18/02/1922),
Menotti del Picchia dizia não ver lugar no Brasil para o que ele chamava de
“futurismo ortodoxo”, isto porque “o prestígio do seu passado não é
de molde a tolher a liberdade da sua maneira de ser futura”. Por sua vez,
em igual tribuna (03/02/1922), Graça Aranha salientava que, “no Brasil,
no fundo de toda a poesia, mesmo liberta, jaz aquela porção de tristeza,
aquela nostalgia irremediável, que é o substrato do nosso lirismo”. Já
no editorial da revista Klaxon
(15/05/1922), publicação considerada primeiro órgão do movimento
modernista, era possível encontrar: “Klaxon
sabe que a humanidade existe. Por isso é internacionalista. O que não
impede que, pela integridade da pátria, Klaxon
morra e seus membros brasileiros morram.” O momento seguinte seria marcado por um
quando menos presunçoso encerramento do “ciclo histórico do verso”,
pontuando contradições basilares como a manifestação contrária a “uma
poesia de expressão, subjetiva e hedonística”, ao mesmo tempo em que
imantada por um “campo magnético do relativo perene”. Tais indicativos
foram postulados pelo Concretismo, a partir do manifesto Plano-piloto
para poesia concreta (1958). Acabaram propondo um tal grau de isolamento
que reflete até hoje uma postura pedante de cunho cientificista que torna a
poesia item de um receituário cartesiano, cujo pior desdobramento se dá no
plano ético, definindo-se por uma perspectiva excludente e sectária que
ampliou, em definitivo, nossa inclinação para a empáfia, no fundo
manifestação de uma precariedade do espírito. Em depoimento cedido a Augusto Massi, em
1991, o poeta Claudio Willer sintetizou muito bem o plano de época:
“Infelizmente, a negação das vanguardas em seu aspecto mais enfático e
autoritário tem servido para justificar o academicismo, a volta ao passado,
ou então, sub-repticiamente, a escolha da tendência certa
da vanguarda, disfarçada em contemporaneidade ou até pós-modernidade”. Em paralelo a esse momento tivemos
manifestações que, por isoladas, são desconsideradas pela crítica,
cabendo aí atentar para articulações que punham em pauta tanto o
Surrealismo como a Beat Generation. No entanto, a história oficial
reconhece apenas uma outra vertente, a do poema-práxis. Vejamos. Um dos
pontos do manifesto do praxismo tratava do “ato de consumir”, onde se buscava também
uma utilidade para o poema (ou seria para o poeta?), aspiração que situava
o “poema-produto” defendido pelo Concretismo como um bólido intimamente
ligado à noção de “poesia-produção” da Práxis. Por mais que seja
conveniente concordar com Mario Chamie que “o concretismo, enquanto
movimento centralizador, nasceu sob o império do controle, já a partir de
seu manifesto”, é impossível desconsiderar essa auto-definição do
poema-práxis, igualmente expressa no manifesto inaugural do movimento: “a
única totalização válida e não-alienada da consciência poética
contemporânea”. Se observadas as conhecidas relações traçadas
por Octavio Paz entre tradição e ruptura, torna-se difícil encontrar
substância no que se convencionou chamar de vanguarda na poesia brasileira.
De toda maneira, ao se tocar no assunto, é natural que um certo fascínio
exerça o radicalismo avant la lettre
que o tema implica, mas cabe atentar para o elo estabelecido entre tradição
e ruptura em se tratando da vanguarda hispano-americana, o que não se deu
no caso brasileiro, onde os laços com o passado foram cortados de maneira tão
violenta que resultaram em perda de qualquer referencial dialético, criando
ainda uma condição de orfandade para as gerações seguintes. Já em 1924, Oswald de Andrade, no
manifesto da poesia pau-brasil (Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/24), defendia uma condição para o
poeta: “sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem
pesquisa etimológica. Sem ontologia.” Exceto pela ausência do ontológico,
é quando menos curioso que a poesia que se difunde hoje no Brasil seja
caudatária de Oswald de Andrade, ao mesmo tempo em que define-se justamente
pelos aspectos que ele manifestamente repudiava.
Em decorrência, um país de quase nenhuma
tradição poética, cujo diálogo com Portugal - não tanto pela
perspectiva da colonização, mas sim pela coincidência idiomática -
praticamente inexistia, e com duas fissuras em seu organismo cultural - a
modernidade e a vanguarda -, viu-se atônito na busca de novas sinalizações
que dessem consistência à poesia, país que enfrentou um largo período de
exceção (regime militar) em sua política, mas sobretudo que se deixou,
logo em seguida, corroer pelos falsos louros ofertados pela mídia,
fascinado por uma relação quando menos leviana entre intelectual, poder e
meios de comunicação. O crítico Carlos Alberto Messeder Pereira
(depoimento dado a José Castello, O
Estado de S. Paulo, 19/06/2001) observa o panorama da poesia brasileira
nos anos 70 como um “fazer uma revolução (um tanto anárquica) no plano
dos costumes e do comportamento”. Já em um outro depoimento, desta vez do
poeta Glauco Mattoso (igualmente cedido a Augusto Massi), disse haver
escapado “da vala comum onde jazem os poetas ditos marginais
dos anos 70, ou seja, a mediocridade semi-analfabeta”. É bastante
interessante atentar para a passagem dos ‘70 aos ‘80, quando a
marginalidade converteu-se em horda acadêmica, leve alteração no eixo do status
quo, porém sem interferência alguma em plano ético ou estético. Se a visão de mundo dos poetas que
caracterizam o período marginal
encontrava-se extenuada pela ansiedade de assimilar eu lírico e
perplexidade existencial, excesso idêntico cometeu a geração seguinte, ao
confundir erudição com título acadêmico e citação com
intertextualidade. Todas as justificativas apresentadas a favor de ambos
sintomas de decaimento de uma tradição em formação são verificáveis em
outras sociedades, sobretudo na América Latina, e não cercearam
desdobramentos estéticos consistentes. Uma outra instância cronológica nos traz
aos dias de hoje, pautada por prolongado alheamento, onde a discussão se
move entre o falar para si mesmo e o
que falar. Como assimilamos todas as gramáticas literárias das culturas influentes - quando menos por razões culturais -, lidamos
com o lugar-comum das recorrências de linguagem e por vezes nos sentimos
com uma larga experiência que contraria o perfil de um país (jamais nação,
ainda não) quase, reitero, sem tradição alguma. A ausência de diálogo tornou a sociedade
brasileira refém de acontecimentos alheios à cultura, quase sempre
desestabilizantes. O desalinho político, com interferência direta na
economia, não deixa de refletir-se no âmbito cultural. Assim é que, em
grande parte, nossas razões estéticas não passam de razões coloniais, ou
seja, nos tornamos o depositário de experiências alheias, onde o influxo
português foi logo substituído pela gritante modernidade francesa que, em
um terceiro momento, encontraria, no desgaste da desconstrução sintática
estadunidense e na sobrante volúpia barroca de uma fração da América Hispânica,
uma razão de ser uma vez mais evidenciada pela falta de diálogo,
desconsiderando vertentes inaugurais que influiriam mais relevantemente. O que anotamos aqui, contudo, não é senão
um comentário geral sobre três momentos que poderiam sintetizar a aventura
da poesia em terras brasileiras. Por sorte, a verdade
canônica não corresponde aos fatos e podemos hoje ao menos considerar
algumas situações distintas entre uma cronologia oficial e as reentrâncias
dadas como indesejáveis. A começar por um denominador comum do que se
anotou até então, que diz respeito a um eterno retorno ao parnasianismo,
como se fosse nosso relativo perene,
segundo o Concretismo. Antes mesmo do Modernismo, já não digeríamos
muito bem o influxo simbolista, que surgia como perigoso contraponto a uma
tendência positivista que demarcava os interesses políticos de um
progresso que começava a se instalar no Brasil. Um perigo antevisto como além
da alçada de um preciosismo, se tomarmos em conta a consistência da obra
de um Cruz e Souza, anterior, e logo a poética de Jorge de Lima, Cecília
Meireles e Henriqueta Lisboa. Importa observar que a entrada na modernidade
se dá de uma maneira, mais do que mesclada, tensa, ou seja, havia um choque
de referências e a trama se desfez justamente por não comportar a
realidade, a exigência de “todos os ritmos sobretudo os inumeráveis”,
como preconizava um poema de Manuel Bandeira. Os desdobramentos, em vez de serem afirmações
de uma multiplicidade, restringiram-se a encarnar a exceção. Fascistas
foram considerados aqueles de explícita tendência a um nacionalismo que
então era corrente de uso. Contudo, me pergunto se, ao esvaziar a mesa de
diálogo que se poderia haver fundado ali, não foram todas as linhagens
insurrectas co-responsáveis pela desvirtuada afirmação de uma quando
menos equívoca tradição. De uma forma ou de outra, uns poucos explícitos
e a grande maioria afeita ao silêncio estratégico, o cenário inteiro
estava composto por coadjuvantes de uma hipocrisia que reina até o presente. A chamada Geração de 45 referia-se a si
mesma como uma continuidade do Modernismo, e acreditava na necessidade de
manter o sucedâneo. Mas a qual modernismo se referia, se aportava
esteticamente com um formalismo exacerbado, em muitos casos mero retorno ao
parnasianismo? Por mais que se enumerassem tendências então - regionalismo,
neo-romantismo, intimismo etc. -, o fato é que o influxo dessa geração
foi tanto incontestável quanto desastroso. Embora recorressem à primeira
pessoa, partiam de uma idealização do eu, e não o desdobravam no outro
- a outridad tão cara, por
exemplo, aos desdobramentos mais essenciais da vanguarda hispano-americana -
ou recordavam algo relevante, uma vez que o pronome estava ali apenas como
recurso estilístico e não como essencialidade do dizer.
Esse abismo entre o falante e sua condição
existencial é um dos dilemas mais freqüentes na poesia que se tem escrito
no Brasil. O coloquialismo buscado pelo que se poderia chamar de uma pós-vanguarda,
aquele momento centrado nos anos 70 - onde se confunde o entoar de cantos
contraculturais com a erva acesa em nome de nada -, raramente atinge uma
carga de vivência que se misture a uma expressão poética consistente e
renovadora. Ao contrário, foi dar em uma junção de grandiloqüência e
maneirismo que exacerbava a mais lastimável de todas as vertentes estéticas
até então cultuadas. A falta de analogia, uma das características
essenciais da poesia desde quando entrada na modernidade, nos deixou
primeiramente a fazer graça (sem graça alguma, diga-se), concluindo por
uma ironia estéril, onde o objeto do riso não pode contestar por ausência
total de diálogo. Toda perspectiva de analogia foi convertida em imposição,
assimilação fácil da colonização de origem, identificação com um
cartesianismo escolástico, onde a teoria define a prática, em cumplicidade
com as evidências de poder. Certo é que as vozes mais substanciosas
permanecem, em grande número, subterrâneas. Não se trata de uma etapa, em
meio a uma plataforma de superficialidade em que se constitui a presente época.
Estamos sempre descobrindo com atraso nossos grandes valores poéticos do
passado, quase sempre defasados em relação a nós mesmos. Padecemos de uma
ignorância que nos é praticamente inata. Desconhecemos o mundo que levamos
dentro de nós, no caso da grandeza indiscutível de uma tradição poética,
o que se traduz em um comportamento deslumbrado diante de fogos pirotécnicos
dentro e fora do país. Em face disto, acabamos difundindo a produção
de uma poesia de duvidosa qualidade, repleta de ornamentos (uma irreverência
atônita, um frívolo orientalismo, um grafismo inócuo, um devaneio sub-filosófico
etc.), onde não há um mínimo contato com a visceralidade da existência
humana. Apesar de tudo, essa é a poesia que se mostra, ainda que não seja
a que verdadeiramente temos. Como o país vive em perene descompasso entre a
vertigem do dia e um prazer ilusório, prevalece toda forma de facilismo
formalista, desde o desenho aleatório (com ares de uma equação matemática)
de palavras na página, até a mera descrição de cenas, flashes de uma paisagem onde a pessoa é nada. Enfim, não há uma
contribuição de sentido nessa linguagem poética. Nada deve, contudo, nos conduzir a um
desestímulo patente na crônica dos últimos acontecimentos. Temos um
rompimento melhor consistido a ser efetuado do que meramente a difusão de
nomes de ocasião. Creio que é importante que novos poetas saibam perceber
a urgência de fundar uma contra-tradição. No raquítico mundo que
constitui a poesia brasileira hoje difundida, maquiada pelos fatores já
aqui anotados, há alguns nomes que merecem referência pelo que andam
buscando, tanto em termos de uma estética renovada quanto pela afirmação
de caráter na contramão de nossa tradição: Jorge Lucio de Campos, Contador Borges,
Fabrício Carpinejar, Adriano Espínola, Leontino Filho, Donizete Galvão,
Maria Esther Maciel, dentre outros, claro, mas chamando a atenção para o
fato de que não esgotam em si sequer a própria poética. Há um mundo novo
sendo tateado no que diz respeito à poesia brasileira? Importa saber: o que
foi incorporado pela mídia - essa apressada forma de chegar tardiamente a
qualquer lugar - é apenas reflexo de uma tradição que requer
leitura sem preconceito, discutida abertamente.
|
![]() Floriano Martins (Brasil,
1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Autor de livros como Alma em
chamas (1998), O começo da busca (2000) e Estudos de pele
(2004). |
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