revista de poesia nº 1 - março de 2004 ensaio |
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Algumas
tendências da poesia portuguesa contemporânea desde os anos 50 até 2000 |
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Falar da poesia dos
últimos cinquenta anos em Portugal não é tarefa fácil. Porque somos
desde sempre e cada vez mais um país de poetas todo e qualquer balanço
que se queira fazer das tendências mais recentes da nossa poesia,
nomeadamente desde a década de 50, será sempre um trabalho por natureza
subjectivo e imperfeito, quer pela quantidade de autores/textos a
referenciar, quer pelo cruzamento e diversidade de modos e modas seguidos
pelas nossas letras mais contemporâneas. Sabemos que todas estas sínteses
correm facilmente o risco de se tornarem ou em simples enumerações que se
pretendem quase exaustivas de movimentos, autores e livros para tentarem (por
excesso) não caírem no logro de esquecerem alguém importante (ou nem por
isso); ou então, podem também tornar-se numa escolha elitista e reduzida
de tops ou cânones que privilegiam (por defeito) alguns
desses autores ou obras. O que se pretende com este pequeno
balanço da poesia portuguesa mais recente é fazer uma abordagem panorâmica
de algumas das gerações, poetas e obras que desde a década de 50 - e
sobretudo depois da de 70 - e até à de princípio de 2000 têm contribuído
para a criação e consolidação de alguns dos aspectos essenciais para a
tentativa de uma definição das novas (ou menos novas ) tendências da
poesia dos nossos dias. Não pretendendo nem maximizar nem minimizar - e
ainda menos esquecer ou ignorar - algum poeta mais ou menos importante neste
contexto, o propósito desta abordagem panorâmica dos últimos cinquenta
anos em Portugal, incidindo sobretudo nas últimas duas décadas (e meia
?!), é apenas o de indicar alguns dos caminhos importantes que a nossa
poesia vem trilhando, apontando as suas novas tendências, pela convergência
e divergência de vozes poéticas que desde fins da década de 40, princípios
da de 50, se vêm revelando e consolidando como inovadoras. Não será por
isso uma viagem nem quantitativa nem qualitativamente exaustiva ou perfeita;
será apenas o sobrevoar de uma paisagem, com pequenas paragens aqui e ali,
que sem esquecer os lugares sempre recomendados a visitar – pelos
roteiros já bem feitos pelos nossos críticos mais atentos e experientes
nestas geografias -, também não quer deixar de dar a conhecer outros
lugares de sentido a descobrir a partir de vozes, talvez menos consagradas,
mas também interessantes e recomendáveis neste contexto das tendências
diversificadas da nossa poesia mais recente. Um olhar mais atento será
concedido aos novos poetas das décadas de 80/90/00 indicando-se (e
apenas nestes autores) alguns dos seus livros mais importantes publicados. A escolha da década
de 50 para início desta viagem, não por um século mas por meio século de
poesia, justifica-se por ela representar o momento onde começa, nas
palavras de Nuno Júdice, a «procura de novas formas poéticas, visando
alterar o rumo tradicionalista, no plano formal, que o neo-realismo
instaurara.»[1].
De facto, é em finais dos anos 40 e meados dos anos 50 que publicam pela
primeira vez[2] algumas das vozes poéticas
mais importantes da nossa poesia contemporânea: Jorge de Sena, Sophia de
Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Fernando
Echevarria, David Mourão-Ferreira, são alguns dos nomes (de entre muitos
outros que também pela importância da novidade das suas vozes poéticas
mereceriam ser referenciados) que ainda hoje se destacam pela sua
actualidade e modernidade. Fernando J. B. Martinho definiu exemplarmente
esta década de 50 como uma continuidade do modernismo, alargando-o,
aprofundando-o e purificando-o, rebatendo deste modo a tese de João
Gaspar Simões que acusava esta geração de ter sido uma neutralização
do modernismo[3].
De facto, esta geração de 50 é, tal como já tinha sido a geração
modernista, não só uma ruptura mas também uma sutura[4]
de valores poéticos vários e diversificados que resultam numa aliança
feliz entre tendências contraditórias anteriores surrealistas e neo-realistas
(os primeiros poemas publicados de António Ramos-Rosa, por exemplo); por
vezes num diálogo fecundo entre a tradição clássica e a novidade de uma
arte poética sustentada pela procura de uma relação elemental e
cratilista do poeta com a natureza, as coisas e as palavras (Sophia M.
Breyner e um segundo momento da poesia de A. Ramos Rosa); depois a procura
de um lirismo mais tradicional, por vezes seguindo a procura da mesma
purificação imagética da linguagem (Eugénio de Andrade); outras vezes
seguindo uma revalorização do lirismo como uma correspondência
harmoniosa, um equilíbrio entre temas e formas – alguns poetas
reunidos em torno da Távola Redonda, tais como David Mourão-Ferreira
e Albano Martins, por exemplo. Ou ainda, e no caso de Fernando Echevarria,
por uma valorização e expansão da imagem, por vezes sob a influência do
neo-barroquismo espanhol, outras pelo movimento contrário de maior contensão
imagética, mais animada pela filosofia do que por estratégias retóricas. Mereceriam ainda ser
lembrados nomes como os de Pedro Tamen e de Egipto Gonçalves, entre outras
vozes poéticas que renovaram as tendências da nossa poesia portuguesa
ainda nesta década de 50, orientando-a para uma forte reabilitação do
real quotidiano pela procura de um uso da linguagem como corpo do real,
como diálogo passional com o outro, como um possível discursivismo poético
que se alicerça numa memória que presentifica lugares e vivências
revisitados. Na passagem da década
de 50 para a de 60, alguns destes valores consubstanciam-se, outros renovam-se
quer na voz poética dos autores já referenciados, quer na de outros que
nestes anos 60 irão surgir e afirmar-se como nomes essenciais da nossa
poesia contemporânea: Ruy Belo, Herberto Helder, João Rui de Sousa e toda
a geração de poetas reunidos em torno da Poesia 61, serão
certamente alguns dos nomes a serem sempre evocados. Caracterizada por, e
mais uma vez, um enorme hibridismo de modos e de formas, a poesia destes
anos 60 ora caminha para uma renovação de um discursivismo poético, com
Ruy Belo, por exemplo, ora se move para um surrealismo ultrapassado por uma
linguagem que, mais do que uma alquimia do verbo rimbaldiana é já a
promessa de uma linguagem absolutamente inovadora que se quer utópica e
imageticamente pré-babélica e inaugural (Herberto Helder). Estas duas tendências
da poesia dos anos 60 diversificam-se e enriquecem-se ainda mais com a
procura de um experimentalismo da forma verbal concreta do poema que a poesia
61 traz para a ribalta das nossas letras. Casimiro de Brito, Luiza de
Neto Jorge, Fiama de Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Ernesto de Mello e
Castro, Ana Haterly, Maria Teresa Horta, são alguns dos nomes de poetas
reunidos em torno desta poesia 61 que redescobre o gosto pela relação
texto-imagem, por uma poesia anti-retórica e convencional. Manuel Alegre é
ainda outra voz poética que se estréia na década de 60 (Praça da Canção,
1965) e que seguindo absolutamente em contra-corrente em relação às tendências
mais experimentalistas desta década de 60 – trata-se de uma poesia mais
ideologicamente neo-realista - recupera para a sua poesia um lirismo herdado
quer de um classicismo camoniano quer das trovas de uma tradição popular. Na passagem da década
de 60 para a de 70, António Franco Alexandre[5]
é, sem dúvida, uma voz poética a situar como herdeira da poesia de 61
e a caminhar a passos largos para algumas das principais características de
um pós-modernismo (a delinear o seu horizonte em fins da década de 70 e a
consubstanciar-se na nossa literatura sobretudo a partir da década de 80),
tais como o gosto pela intertextualidade com poetas modernos e pós-modernos
ou ainda por uma «espécie de teologia negativa do dizer poético», nas
palavras de Óscar Lopes.[6]
Para além de A. Franco Alexandre, também poetas como Al Berto, Luis Miguel
Nava, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Helder Moura
Pereira, Manuel António Pina, António Osório, Nuno Júdice, Vasco Graça
Moura[7]
e José Agostinho Baptista destacam-se, entre outros, como nomes fundadores
de poéticas diversificadas e essenciais para uma definição e renovação
da nossa poesia da década de 70. Alguns dos aspectos
que caracterizam a poesia desta década de 70, sobretudo pós-revolução 25
Abril de 1974, nomeadamente representada pelos poetas do Cartucho[8]
(1976), Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, António
Franco Alexandre e Helder Moura Pereira, são o gosto poético pelo
quotidiano e a consequente recuperação de um diálogo poético com o real,
atitude já referenciada como um novo realismo. Ainda se pode definir
a poesia desta década de 70 pelo crescente gosto e uso de um discurso poético
a tender cada vez mais para a narratividade, pelo gosto do poema que conta
uma pequena história seja pelo narrar de um pequeno fait divers seja
através do narrar de mitos ou pelo evocar de diálogos intertextuais (Nuno
Júdice e Vasco Graça Moura), aspectos que também irão ter continuidade e
serão mesmo agravados na década seguinte de 80. Ainda nesta década
de 70 não podemos esquecer a importância de poetas como Al Berto e Luis
Miguel Nava pelo que inovaram radicalmente a nossa poesia, sobretudo a
partir do gosto pela liberdade da linguagem acompanhada, em alguns casos,
pelo também crescente desejo de uma sexualidade assumidamente como corpo
dessa mesma literariedade. Estas duas poéticas reabilitam como temas o sexo,
o álcool, a loucura, recuperando também de algum modo a imagem poética
baudelairiana da marginalidade, tema que irá ser, por sua vez, de novo
recuperado por alguns dos poetas da geração de 90, como por exemplo,
Manuel de Freitas. Durante estes anos 70, e depois do grupo dos poetas do
Cartucho, a nossa poesia perde completamente o sentido de grupo, ismo ou
vanguarda e ganha cada vez mais um sentido individual, torna-se mesmo uma questão
pessoal, procurando caminhos diversificados e livres de regras ou
de outros cânones impostos. Um bom exemplo desta
singularidade de uma poética que se estreia nesta década de 70 e que
continua a consolidar-se até aos dias de hoje como um dos casos mais
interessantes, é sem dúvida, a de José Agostinho Baptista que desde Deste
Lado Onde (1976) se vem anunciando como um possível regresso a um novo-romantismo,
aparentemente um pouco contra-corrente do novo-realismo que a década
de 70 vinha instalando, mas nem por isso uma voz menos inovadora ou
importante. Sobretudo a partir do 3º e 4º livros publicados, nomeadamente,
O Último Romântico (1981) e Morrer no Sul (1983) onde uma literatura
da alma, com uma dimensão profética e visionária, como
exemplarmente lhe chamou Fernando Pinto do Amaral[9]
transparece, esta poesia parece distanciar-se, numa primeira leitura mais
circunstancial, de algumas das tendências já apontadas como características
da década de 70, nomeadamente pela fluidez torrencial do verso/livro, pela
coerência temática, aspectos bem distantes quer de uma fragmentação do
verso, ou de uma linguagem mais contida e lapidar que ainda sobrevive desde
os anos 60, quer ainda às tendências de um novo realismo próprio
a outros poetas da década de 70. No entanto, este aparente desvio
à norma por parte da poética de José Agostinho Baptista só vem
enriquecer o panorama da nossa poesia desde a década 70 até ao momento
presente, abrindo novos caminhos e talvez mesmo possibilitando estabelecer a
ponte entre, por exemplo, uma poética de Ruy Belo e a de Daniel Faria. Outro exemplo interessante destes
poetas que publicam pela primeira vez nesta década de 70 é, sem dúvida, o
caso de Manuel António Pina que se estreia no ano da revolução de Abril
com Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um
pouco tarde e que desde então tem continuado a surpreender-nos tanto
com a sua poesia mais recente[10],
como também no domínio da ficção, com a publicação do livro Os
papeis de K.[11]
Ou ainda deveríamos falar de um António Osório que inicia o seu percurso
poético em 1972, nomeadamente, com a publicação de A Raiz Afectuosa, uma
poesia que inicia, de algum modo, e entre outros aspectos, a tendência
melancólica da nossa poesia dos anos 80/90. Será sempre de referir Nuno Júdice
que se estréia como poeta em 1982 com A partilha dos mitos[12]
e que desde então tem desenvolvido uma arte poética que se define quer
como uma permanente metapoesia, i.e., uma poesia que pensa o próprio
ser e fazer do poema, quer como um diálogo intertextual com o outro; quer
ainda como uma poesia narrativa, entendida não só no sentido do culto do
poema em prosa - os petits poèmes en prose, de Baudelaire -, como
também na linha de uma narratividade da poesia tal como tem sido redefinida
desde a década de 70; ainda no sentido mais lato e mítico do termo, como
é pensado, por exemplo, por Mircea Éliade, a propósito da definição de
mito, i.e., como le récit d`une création. Nos anos 80, a nossa
poesia aperfeiçoa algumas das tendências anteriores e movimenta-se, uma
vez mais, numa dança entre continuidades e rupturas, subjectividade
e objectividade ou ainda entre uma experiência de linguagem e uma
experiência de imaginação, nas palavras de Fernando Guimarães[13].Uma
das características que melhor define esta década é sem dúvida a
quantidade de novos poetas que nela se revelam pela primeira vez, ou
ainda por aqueles que já iniciados nas duas décadas anteriores, continuam
a sua intensa produção e publicação. Assim, poetas como Luis Felipe
Castro Mendes, Paulo Teixeira, Teresa Rita Lopes, Rosa Alice Branco e Adília
Lopes, entre muitos outros, são algumas das vozes poéticas que ajudam a
renovar a poesia dos anos 80 e seguintes. De novo sem regras ou
escolas a seguir, esta poesia diversifica-se em tendências tão opostas ou
mesmo contraditórias, como por um lado, pela continuação da renovação
de um real quotidiano reabilitado por uma linguagem quer mais minimalista e
depurada e sempre regida pelo signo dos afectos (Teresa Rita Lopes[14]),
quer por vezes por um uso do quotidiano mais sacralizado e transfigurado
pelo pathos da linguagem (Rosa Alice Branco[15])
ou ainda parodiado e absolutamente dessacralizado através de uma linguagem
mais jocosa de recuperação de um registo oral (Adília Lopes[16]);
por outro lado, uma outra via direcciona-se no sentido de uma poesia que
recupera modelos mais tradicionais de uma herança cultural e intertextual,
vestida pela roupagem de ressonâncias nostálgicas de memórias e vozes poéticas
anteriores (Paulo Teixeira[17]),
ou da recuperação de formas líricas também tradicionais neo-clássicas
(Luis Felipe Castro Mendes[18]).
Ou ainda por um acentuar da narratividade do poema agravando ainda
mais a dificuldade do estabelecimento de fronteiras entre a lírica e a
narrativa (Helder Moura Pereira[19],
no seu livro Romance (1987), por exemplo.
De facto, nesta década
de 80 convergem tendências diversificadas da nossa poesia. Por exemplo, em
Rosa Alice Branco, há um projecto de escrita que se vem delineando desde o
seu primeiro livro publicado, e que se mantém coerentemente renovado, que
é o da poesia como experiência do sagrado. Podendo-se definir a sua arte
poética quer como uma metapoesia, i.e., uma poesia que se pensa e se
interroga a ela própria, mantendo um permanente diálogo passional entre a
poesia e a filosofia, quer por uma procura mística, pelo canto elegíaco de
uma aliança feliz entre espiritualidade e trabalho físico da linguagem.
Numa tradição poética que poderíamos delinear, desde por exemplo, António
Ramos Rosa ou Fiama Hasse de Pais Brandão, a poesia de Rosa Alice Branco
recupera, em plenos anos 80, o gosto pela sacralização das pequenas coisas
do quotidiano, ritualizando-as através de uma erótica do sagrado que
assenta na pura percepção do universo pelos sentidos. Em Adília Lopes
sabemos que o processo é exactamente o oposto: o de dessacralizar essa
mesma percepção quotidiana das coisas, revelando-lhes o seu lado mais
coloquial, grotesco ou mesmo disforme. Numa visão absolutamente
desencantada do amor, a poesia de quem quer casar com a poetisa cultiva
um Kitsch[20] de situações que
define o seu próprio projecto de escrita. O recurso insistente ao calão
confere um tom brejeiro ao poema e faz da poética de Adília Lopes um caso
bastante singular da nossa poesia mais recente, onde e de novo, a definição
de belo baudelairiano, como grotesco, se aplica de modo renovado. Uma outra linha
absolutamente diferente é também a seguida pela poesia de Paulo Teixeira,
uma voz que contém em si alguns dos aspectos mais felizes que podem
caracterizar o nosso pós-modernismo, tais como o culto pela, por vezes (e
à semelhança de Borges) excessiva intertextualidade, ou o gosto pela
poesia como uma arte da memória (aproveitando um dos títulos do
poeta), como uma memória simultaneamente literária, histórica, cultural e
mítica, que deste modo se afasta de outro tipo de memória que vamos
encontrar em autores já na década de 90, como por exemplo em Fernando
Pinto do Amaral, onde predomina uma memória mais pessoal, como já
muito bem anotou João Barrento[21],
i.e., mais passionalmente subjectiva. Poderíamos deste
modo tentar definir a poesia da década de 80 como - e uma vez mais -, uma sutura
de tendências das décadas anteriores que se vão ramificando em diversas
direcções que são, e nas palavras de Nuno Júdice, quer um novo
realismo ligado à revalorização do quotidiano, quer um acentuar
da tradição pela recuperação de linguagens e modelos do passado.[22]
Quer ainda por uma espécie de novo romantismo característico de
alguns poetas que se estrearam na década de 70 mas que continuam a marcar e
a definir as décadas posteriores, como por exemplo, o caso já referido de
José Agostinho Baptista. Acrescentaria ainda uma outra via que emerge
sobretudo da voz feminina de Rosa Alice Branco, e que é a da recuperação
de um misticismo da linguagem poética. Entramos na década
de 90 pela mão de poetas como Daniel Faria, Manuel Gusmão, Fernando Pinto
do Amaral, José Tolentino Mendonça, Ana Luisa Amaral, Ana Marques Gastão,
Luis Quintais, Rui Pires Cabral, valter hugo mãe, Manuel de Freitas, entre
muitos outros nomes também importantes para a mesma definição desta
poesia. Poetas tão diferentes no tempo como no modo[23]
eles já foram definidos pela nossa crítica mais atenta por um generalizado
e difuso sentimento de melancolia[24].
Trata-se de poéticas de facto muito diversificadas[25]
que consubstanciam uma década de uma nova ou novíssima poesia[26]
ou mesmo pós- poesia[27]
já assim referenciada. Com ela se desenvolvem e agravam alguns dos sintomas
já diagnosticados nas gerações anteriores, nomeadamente, o de uma poesia crepuscular
e saturnina (assim chamada por João Barrento[28]),
i.e., que padece de uma negatividade melancólica, de um sentimento
de despedida e de perda de uma modernidade (crise ou fim da
modernidade assim repetidamente designada), de um século ou de um milénio,
perda essa que vemos reflectir-se de modos muito distintos de poética para
poética. Em Fernando Pinto do
Amaral[29]
a sua poética também não escapa a uma melancolia pessoal, nas
palavras de João Barrento[30], pelo permanente jogo
dialéctico entre o eu lírico e passional e o mundo/cidade decadente que o
rodeia. Uma melancolia, simultaneamente espacial - pelo cantar elegíaco das
vivências de cafés e esplanadas, por exemplo -, e temporal - pelos
registos outonais e crepusculares (em Acédia, 1990, por exemplo) que
podem remeter para uma vivência também de spleen muito ao gosto do fin-de-siécle
parisiense e lisboeta do simbolismo francês e do modernismo português,
como sabemos[31].
Aliás esta dança
entre spleen et idéal, com predominância para o spleen e
menos para o ideal, por isso muito mais saturnina do que solar,
iniciada paradigmaticamente em Baudelaire, continua a fascinar alguns dos
nossos poetas mais jovens e recentes: por exemplo, Manuel de Freitas, cuja
poética se vem afirmando e consolidando, no início de 2000 (Todos
contentes e eu também [32]),
como uma insistente procura de uma agravada melancolia splínica,
por assim dizer, atitude baudelairiana que se consubstancia em topoi,
tais como a taberna, o álcool, o sexo a marginalidade do poeta e outros
comportamentos e modos de linguagem também malditos ou marginalizáveis,
próprios à decadência de uma cidade, de uma geração e de uma poesia,
também elas em fim de século.... Com uma forte herança de Al Berto e de
Luis Miguel Nava, mas também de Joaquim Manuel Magalhães, esta poesia de
um novo realismo, da melancolia do quotidiano, do abandono e da solidão,
inova esta tendência anterior pelo diálogo passional e intertextual que
estabelece com outros poetas e com outros registos meta ou paratextuais,
lembrando assim que cada vez mais o poeta dos nossos dias já não perde
tempo a negar ou mesmo a assumir as suas influências, mas ganha-o a
dar-lhes uma continuidade renovada pelo viço mais jovem do seu canto dialógico.
Manuel Gusmão é
talvez dos poetas que publicam na década de 90 o menos novo na idade[33]
mas novíssimo no modo como redescobre o trabalho da linguagem,
fazendo eco, como António Franco Alexandre, do rigor da Poesia de 61.
Retomando o caminho no sentido de um novo formalismo, nas palavras de
Nuno Júdice[34],
a poesia de Manuel Gusmão surpreende, no contexto dos poetas da década de
90, por uma mistura feliz entre a disciplina a que o verso/poema está
confinado – em Dois Sóis, a Rosa – a arquitectura do mundo,
1990, por exemplo -, e o à vontade de uma linguagem que flui e que
se encena quer como teatro do tempo[35] quer como cadeia
intertextual de registos e autores diversificados, como acontece
posteriormente, por exemplo, em Os dias levantados, 2002.
[36] Daniel Faria
(1971-1999) sobretudo depois da publicação em 1998 de dois livros,
nomeadamente, Explicação das árvores e de outros animais e Homens
que são como lugares mal situados[37] é, sem dúvida, uma
das vozes mais importantes da nova poesia portuguesa da década
de 90. Completando-se esta espécie de triologia poética de maior
maturidade do autor com o livro já póstumo, Dos Líquidos (2000),
ela tanto se integra nas tendências dominantes desta poesia desde os anos
70 como simultaneamente se evade dela pela diferença que marca
relativamente à mesma. Trata-se efectivamente de uma poesia que se afasta
de todo e qualquer cânone que possamos imaginar que se pudesse começar
a delinear com a poesia destes novíssimos poetas, não só pelo
caminho místico que a norteia e a faz elevar-se muitas vezes desse novo
realismo, que vindo da década de 70 ainda apaixona muitos dos poetas
desta década, mas também pela especificidade poética que esta poesia
revela e constitui como um (auto)programa muito próprio. Ainda sob as influências,
já apontadas pela crítica[38],
de Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Rilke, para além das de alguns poetas
místicos como S. João da Cruz, Santa Teresa Ávila e da própria Bíblia,
esta poesia flui torrencialmente quer como uma experiência mística
quer como uma mecânica da escrita, i. e., uma experiência
de linguagem[39]
que, entre outros aspectos, consiste numa subversão semântica da
frase/verso conseguida através de um depurado trabalho metafórico das
imagens poéticas. Veja-se por exemplo, da última parte de Dos Líquidos,
o conjunto de poemas intitulado «Do ciclo das intempéries», onde o magnífico
aproveitamento poético da magnólia ilustra bem a grande maturidade e a
beleza desta poética também quanto ao próprio trabalho das imagens. Outra poesia que se evidencia pela
sua diferença relativamente à de outras poéticas da sua década é a de
valter hugo mãe[40].
De verso contido e lapidar, a sua poesia tem-se definido desde 1996 até
2000, com já mais de 8 títulos publicados, como uma das mais originais. De
letra sempre minuscula e de verso alinhado à direita (sem ter intenções
experimentalistas ou concretistas) a sua poesia redescobre o gosto pelo belo
enquanto grotesco, diríamos e uma vez mais, como uma herança baudelairiana.
Ou mesmo por um belo monstruoso e sublime como Luís Adriano Carlos
também já o definiu[41],
alcançado pelo culto dantesco do horror e do babélico, da morte e da violência
de uma sexualidade, que e sobretudo em a cobrição das filhas[42],
estilhaça a imagem do amor em quadros de uma beleza revoltada e horrivelmente
bela. Também a poesia de José Tolentino
Mendonça[43],
Carlos Bessa[44], João Luis Barreto
Guimarães[45],
Jorge Gomes Miranda[46],
José Ricardo Nunes[47],
Luís Quintais[48], Paulo José Miranda[49],
Pedro Mexia[50], Rui Coias[51],
assim como a de muitos outros poetas que publicam pela primeira vez na década
de 90, mereceria ser cuidadosamente referida como contributo essencial para
uma tentativa de definição desta novíssima poesia. No entanto, e
dado os próprios limites deste artigo, não é possível (por ora...)
concedermos-lhes a atenção e espaço/tempo de escrita merecidos. É sabido,
porém, que a nossa crítica tem estado atenta a muitos destes jovens poetas,
quer integrando-os em várias antologias desta nova poesia portuguesa,
quer dedicando-lhes alguns estudos críticos em jornais ou revistas literários.
Seriam ainda de salientar mais dois
ou três nomes de poetas que também publicam nos finais da década de 90 (e
que pouco ou mesmo nada têm sido referenciados pela nossa crítica): António
Carlos Cortez, Paulo Ferreira Borges e Manuela Parreira da Silva. Ainda sob
o signo da melancolia que já dissemos que caracteriza a poesia de muitos
dos poetas das décadas de 80/90, mas versada não tanto como abismo ou náusea
baudelairiana, como no exemplo já anteriormente supra-citado de Manuel de
Freitas, mas mais como a recuperação clássica de um lirismo também
citadino e dito pós-moderno, podemos situar António Carlos Cortez que
sobretudo depois de se afastar da presença mais acentuada de um lirismo
erotizante, herdado quer de Jorge de Sena quer de David Mourão-Ferreira e
patente em Ritos de Passagem [52],
se aproxima, nos livros posteriores, nomeadamente em Um barco no rio[53],
cada vez mais da mesma procura da limpidez depurada da linguagem poética
que caracteriza a nossa poesia desde a década de 70. Nesta mesma linha se
inscreve um Rui Pires Cabral (cuja atenção merecida pela nossa crítica
lhe tem sido concedida, já desde Joaquim Manuel Magalhães[54])
que por exemplo, em Música Antológica e onze cidades[55]
revela o mesmo gosto cosmopolita pela deambulação pela cidade, por
vezes também pela memória (precisamente como em Cesário Verde); mais
recentemente, também pelas praças e quintais[56],
deambulação ou errância que é acompanhada por uma linguagem poética de
uma extrema transparência e mesmo de uma aparente simplicidade, que também
por isso convida o leitor a participar na sua viagem - espacial e temporal. Também nesta
passagem de década ou de milénio, de 1999 a princípios de 2000 é de
citar o exemplo de Paulo Ferreira Borges que se estréia com dois livros, Para
tentear a desmesura[57] e A água materna
dos poentes [58].
As tendências da poesia deste poeta parecem seguir em contra-corrente,
relativamente às tendências de outros novos poetas que também
publicam neste fim de milénio, pela linguagem poética que recupera um
certo pendor neo-barroco, à semelhança de um António Ramos Rosa, ou um
certo gosto pela frescura e erotismo imagéticos, herdeira de um Eugénio de
Andrade ou ainda de um David Mourão-Ferreira. Outro exemplo de uma
poesia que se situa em 1999 e que vale a pena ser referenciada é, sem dúvida,
o de Manuela Parreira da Silva que com O Álbum de Vishnu[59]
surpreende pela originalidade formal do verso/poema, pela maturidade de uma
escrita que recupera o gosto pelo trabalho alquímico da linguagem, pelas
memórias orientais, pela interrogação da poesia como pathos do
real. É aliás, extremamente curioso verificarmos, que a partir de finais
da década de 80 se inicia um surto de vozes poéticas femininas que irá
ter continuidade na década de 90 - e na de 2000, provavelmente também.
Assim, e desde os nomes já citados de Teresa Rita Lopes, Rosa Alice Branco,
Adília Lopes (década de 80), outros nomes no feminino surgem na nossa
poesia da década de 90: Agripina Costa Marques[60],
Ana Luísa Amaral[61], Ana Marques Gastão[62], Ana Paula Inácio[63],
Graça Pires,[64] Inês Lourenço[65], Maria do Rosário
Pedreira[66], ... Na sua diversidade
de modos, esta poesia está atenta ora a um uso do quotidiano – um
quotidiano, por vezes absolutamente feminino (Ana Luisa Amaral, Ana Paula Inácio,
Maria do Rosário Pedreira, por exemplo) -, ora a uma transfiguração desse
mesmo quotidiano ou realidade- não menos feminino por isso -, como por
exemplo, e de modo absolutamente solar, em Graça Pires, de modo mais lunar,
ou mesmo melancolicamente mais nocturno, em Ana Marques Gastão.
Ainda um uso do quotidiano mais transfigurado por uma procura (meta)poética
ou mística, numa linha que vem sendo traçada desde Rosa Alice Branco e que
tem uma continuidade renovada em, por exemplo, Agripina Costa Marques.
O início do ano de
2000 é marcado pela estréia de poetas como Bernardo Pinto de Almeida[67]
e Vasco Gato[68], por exemplo. Apesar de
apenas três anos passados neste início de um novo milénio ser ainda muito
pouco tempo para se poder fazer um balanço desta década que se avizinha,
quer a estréia destes dois poetas em particular, quer a continuação da
publicação da poesia de autores pertencentes às décadas anteriores,
nomeadamente, o caso já emblemático de Manuel de Freitas, ou de outros
jovens ou menos jovens poetas, pode levar- nos a pensar que a mudança de século
ou de milénio (e apenas por ora...) irá consolidar alguns dos aspectos que
o fin-de-siècle anterior iniciou. Assim e tomando como
balizas os extremos dos dois exemplos apresentados, diríamos que para já,
a poesia da década de 2000 por vezes direcciona-se para uma poesia que, e
de novo sob a égide baudelairiana citadina do spleen, não deixa de
perseguir o real através da sua transfiguração (idéal ?) pelo
poema, cultivada por exemplo por Bernardo Pinto de Almeida, em Hotel
Spleen, que reincide em temas (à semelhança de Manuel de Freitas) como
o amor, o sexo e a morte; ainda consentirá direcções outras, como a que
é seguida, neste momento pela poesia, por exemplo, de Vasco Gato ou de Rui
Coias[69],
i.e., uma via que não negando esse astro baço que
caracteriza a poesia da melancolia de alguns autores já
citados das décadas de 80/90, se afasta de uma geografia da cidade para se
reaproximar de uma geografia mais utopicamente insular, diríamos, (Rui
Coias), ou de uma errância bucolicamente cósmica (Vasco Gato), através de
uma linguagem sentimentalmente mais discursiva. Estes exemplos de poéticas
tão diversificadas nestes novos ou novíssimos poetas são
por si só significativos da diversidade de modos e modas (?)
diferentes de ser moderno que a nossa poesia mais recente acolhe. São ainda
a prova do quanto estamos ainda longe de uma possível visão e compreensão
de conjunto quanto às novas tendências da poesia portuguesa dos últimos
cinquenta anos. Sabemos que só depois da distância temporal necessária é
que poderemos compreender quais destes nomes ou textos passarão - ou não -
pelo crivo da história crítica da nossa poesia. [1]
In Viagem por um século de literatura Portuguesa, Lisboa, Edições
Relógio d`Água, Junho 1997, p. 79. |
![]() Paula Cristina Costa (Portugal, 1963). Ensaísta e crítica. A sua dissertação de doutoramento intitula-se António Ramos Rosa, um poeta in fabula, (2000). Tem artigos em várias revistas, nomeadamente sobre Fernando Pessoa e António Ramos Rosa. |
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