Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Lucineide Souto


 

A burra de padre


 

Era uma noite medonha!

O vento arrancava as telhas da casa velha. Os relâmpagos, de brilho fantasmagórico, iluminavam a camarinha onde a mulher histérica pelas dores do parto gritava e maldizia a vida.

A comadre conclamava a sogra da parturiente a rezar.

A coisa estava feia! Não havia dilatação e o sangramento se fazia intenso. De repente, a barriga ficava tesa só de um lado, depois, amolecia e o calombo crescia perto do púbis.

A mulher tinha convulsões e desmaios a cada momento que a criança se movimentava tentando nascer. Em vão!

O vendaval, mais violento, trazia ecos horripilantes como se fossem das entranhas do inferno.

A mulher, trêmula, revelava sinais de eclampsia. Um palor mortal acentuava-lhe os lábios exangues. As mãos e os pés se enrijeciam.

Os gritos cessaram.

Acercando-se do leito a comadre abraçou-a, bafejando-lhe as narinas. Queria transmitir-lhe a vida de seu corpo.

A velha esfregava o rosto nas faces da afilhada de ocasião enquanto gritava ao marido que lhe massageasse com vigor os pés e as pernas.

Lá por fora a chuva torrencial desmanchava barrancos em que descia a fúria das águas, levando árvores ribanceira abaixo.

A casa balançava sob os ribombos.

A sogra, jogando um copo d água na tempestade, invocava Santa Bárbara, Ezequiel e Ariel. Os santos e o vento estavam surdos. O céu, indiferente à catástrofe, continuava a despejar cachoeiras naquele pedaço de chão perdido nos confins da mata.

A mulher respirou, gemeu... Gritou. Abrindo-lhe as pernas a comadre fez um trejeito na boca. Voltando-se ao homem, em tom baixo, confidenciou-lhe:

- Aquilo vai ser preciso.

O homem assentiu:

- Salve a mulher e salve o filho, mas se não der, salve a mulher.

A comadre segurou a tesoura e um pano embebido em água morna.

- Ande homem, segure as pernas dela. Segure com muita força. Ande sogra, agarre os braços e os mantenha para cima.

A tesoura por entre as mãos firmes da parteira ia cortando o períneo enquanto gritos desesperados abafavam-se ante o estrupício lá por fora.

- Respire. Respire, seu filho está nascendo.

A aparadeira com uma das mãos empurrava a barriga da grávida para baixo momento em que enfiava a outra na vagina sanguinolenta, agora mais dilatada por causa da abertura na região perineal.

Tomando-se de pavor, temendo perder o nascituro, a velha, soltando o ventre da mulher, aplicou-lhe duas fortes palmadas na lateral da nádega. A moça se contraiu. Guiada pela voz da comadre respirou e fez força para baixo. Sentiu dedos mexerem em suas entranhas... Sentiu o filho ser arrancado.

Gritos alucinantes... Rio de sangue por sobre a palha do velho colchão... Cabeça abandonando-se... Momentâneo silêncio... A pancada assombrosa da chuva... Duas palmadas na bundinha do menino pendurado pelos pés... Enfim, o vagido tenro.

A mãe e o filho... A noite tenebrosa com todos os seus ruídos... A linha na agulha... A sutura a frio... Urros de dor.

- Que noite, homem! Que noite! Ela perdeu muito sangue. O pequeno está bem. A cabeça inchada em poucos dias estará normal. Ele queria nascer. Só isso.

O homem agitava-se com baldes e panelas, colocando-os por sobre a enxerga da parida que dormia enfraquecida pelo sofrimento do puerpério.

A sogra ajeitava o bebê numa bacia de alumínio forrada com panos velhos esquentados sob seu corpo.

A comadre, a um canto, fatigada, entornava na boca um pouco de café.

- Ave Maria, sogra, que noite esta! Parece até coisa do dimunho.

- Te esconjuro, Comadre. Santa Bárbara vai amansar o mau tempo.

- Sogra, hoje é noite de burra de padre. Ela vai correr sete províncias até o amanhecer. Tomara Deus que esse bicho amaldiçoado não venha para cá.

- Te esconjuro, Comadre.

Um clarão incandescente... Um estrondo... Um tremor de terra... Metade da casa abaixo.

Com o farol, o homem espia o amontoado de barro, telhas e caibros... Era a cozinha.

A água invadindo a camarinha... A sogra com a bacia do bebê por sobre um caixote... A comadre, escondida junto à parede, mastigando o cachimbo... A parida com as vestes molhadas, envolta num velho lençol de retalhos sentada na tampa do baú... O homem com a vassoura esgotando a água que encharcava o chão batido, tornando-o escorregadio... O menino gritando.

A mãe pega o filho, dá-lhe o peito. Ele se cala.

Todos tremem de frio. A casa e as roupas... Tudo molhado.

- Homem, há gritos horrendos na tempestade. Se for a burra de padre estamos desprotegidos. A casa está aberta.

- E não tenho balas.

- Sogra, faça uma reza. Comadre, consiga um pano enxuto, pois a mulher e o menino estão quase mortos.

A chuva, aos poucos afinando, os trovões cessando... Relinchos desvairados... Um tropel desenfreado.

O terror estampava-se nas faces das pessoas que tentavam proteger-se daquela maléfica aparição.

O homem viu os olhos de fogo junto ao entulho da casa. A coisa fungava, dava coices, pinoteava e espojava-se no aguaceiro. Com a vassoura, ele tentava espantá-la, mas a visagem não se intimidava.

- Homem, eu vim buscar a placenta. Quero comê-la para desencantar-me. Faz cento e trinta anos que às quintas-feiras corro sete províncias numa noite. Mato bicho e mato gente. O padre traiu seu voto... E eu... Deitei-me com ele. Quero sossego. Dê - me a placenta. Eu a como e vou embora.

- Não lhe dou! Não quero meu filho amaldiçoado. Você come, se desencanta e ele vira lobisomem. Vá embora, burra, aqui não tem nada para você.

- Se você não me der a placenta, eu mato todos.

- E o que você ganha? Se comê-la sem eu a dar, não se quebra a maldição.

- É verdade, mas eu não deixo ninguém vivo. E o pagão, você já pensou nele?

- Sogra, reze, sogra! Comadre, batize o menino. Mulher, lave os peitos e fique por detrás do farol. A luz cega esta disgrama que não pode ver fogo na mão de parida. Sogra, depressa, faça sua reza!

- Ah, ah, homem, você pensa que assim estão protegidos? Dê-me a placenta.

O homem cai, lutando, cortando o ar com o cabo da vassoura, querendo cutucar a coisa que subia o entulho.

Os olhos endiabrados clareavam o quarto. Ali estavam a mulher com o farol à altura do peito; a comadre batizando a criança em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E a sogra caminhando em direção àquele demônio, levando a espada de Santa Bárbara.

- Xô, coisa desgraçada! Pelo poder de Santa Bárbara, de Ariel e de Ezequiel...

- Ah, ah, muito engraçado! Dê-me a placenta senão...

- Coma filha, coma a placenta! Se a burra a comer não se desencanta, mas seu filho vira bicho. Coma filha, coma depressa!

A mulher, por detrás do farol, abaixou-se, meteu as mãos na bacia, pegou a placenta e começou a engoli-la. O bicho saltava, contorcendo-se, espojando-se e relinchando em desespero.

A sogra com a espada: Deus nos salve, Deus nos guie, com o Filho e a Virgem Maria. Santa Bárbara que aplacas as tempestades e suas visagens aplaca este bicho fazendo-o pensar com gente, pois gente ele foi. Foi mulher que viveu, sofreu, amou... Santa Bárbara desencanta esta alma, Santa Bárbara salva esta alma. Pai, Filho e Espírito Santo, quebrem as cadeias deste ser que está nas posses do maldito...

A chuva engrossava. Relâmpagos cortavam o infinito. Os trovões desmoronavam as barreiras. A sogra, em transe, descia o entulho.

O monstro se contorcia...

- Santa Bárbara, Santa Bárbara, aplaca a fúria desta alma. Comadre, traga água benta. Homem, guarde a mulher e o menino.

A assombração rugia tão alto quanto a tempestade devastando a Terra.

A comadre despejou a água benta na ponta da espada. A sogra, invocando Santa Bárbara, jogou a lâmina nos costados do fantasma que investia contra ela.

A espada partiu iluminada por um raio que estalava em trovão. A ponta flamejante tocou a coisa maldita que num relincho descomunal desmanchava-se em fogo enquanto da fumaça, surgia um vulto de mulher flutuando, elevando-se no espaço, até ser tragado por um relâmpago azul que não fez estrugido na Terra.
 

 

 

 

 

18.07.2005