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Luiz Paulo Santana


 

Meu amorzinho da primeira hora

Para Detinha


Meu amorzinho da primeira hora
da hora sonhadora dos botões de rosa
da pura e fresca e azul aurora alada
das gotas diamantinas sobre as pétalas
recém abertas de nossa florada


Meu amorzinho do primeiro dia
dourado sol de nossas majestades
de príncipes plebeus & companhia
legítimas revoluções e passeatas
mais rutilantes cores e poesias


Meu amorzinho do primeiro toque
nos teus longos cabelos em cascata
de seda e sonhos e suaves sendas
por onde a mão desliza em serenata
enquanto o coração bate ligeiro


Meu amorzinho do primeiro beijo
à flor dos lábios sempre renovados
e cada vez mais unos e fundidos
na vasta perdição onde encontrados
de volta aos elementos primitivos


Meu amorzinho da primeira angústia
em descobrir-se amando a cada homem
e a todos eles, e eu, por descobrir-me
amando a cada uma e a todas as mulheres
ó vasto amor, tão movediço e firme


Meu amorzinho, hei-nos caminhados
os filhos que nasceste na barriga
planetas que alisei, arredondados
no escuro claro de uma luz antiga
desse nosso universo engravidado


Meu amorzinho, sabes o que penso
do tempo em que a passagem se aproxima
e o pássaro sem nome está pousado
e canta à nossa glória vespertina
que volveremos, juntos, ao princípio
ao húmus ancestral, onde a roseira
sonha de novo seus botões de rosa
na pura e fresca e azul aurora alada
as gotas diamantinas sobre as pétalas
recém abertas de novas floradas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São Jerônimo, de Caravaggio

 

Luiz Paulo Santana


 

E agora pousam


E agora pousam-me as asas
no teclado
tec-la-do
roçam signos e não sabem
quanto sinto
que não saiba e não consiga
tec-la-de-ar um poema
para abraçar o que li
e eram Thiago e Feitosa
e eram Drummond e Cabral
meus poetas e era Affonso
Romano de Sant’Anna:

disseram com fervor
suas profecias
e os ecos
da catedral de Colônia
dos troncos amazonenses
construções pernambucanas
insolações siarehnses
permeiam
a ecografia de quantas
palavras na minhalma passageira
pastorearam invisíveis
emancipadas baleias
de mar que não se concebe
em tec-las alternativas
F1 explicativas
sensações inusitadas
e quantas de mal paradas
lembranças afortunadas
de quando jovem ainda
fazia mel de floradas
incertas mas consabidas
e agora despercebidas
me traçam na madrugada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

Luiz Paulo Santana


 

Buracos Negros cantam em tom menor
     (A propósito de notícia de jornal)


Buracos Negros cantam em tom menor
na concha auricular do meu ouvido.
Mas a freqüência desse canto é tal
que nada escuto — dizem-me esquecido.

Por anormal que sou não convencido
diante do buraco oferecido
lanço-me à explicação transcendental:

Trata-se de um certo signo adormecido
entre a flor que ainda não nasceu
e a fímbria imaculada do infinito.

Para escutá-los não preciso ter
acuidade extra-sensorial
basta morrer a morte natural
e despojar-me em todos os sentidos.

Mas é no despojar-me sem sentido
no transmutar-se a lógica do signo
que se ouvirá o canto sem o ouvido
entre a flor e o infinito, denotado.

Porém já de antemão vos advirto,
há um probleminha, se quereis saber.
Ninguém dirá do tom menor acontecido
nem se há lógica ou signo, em tal buraco.
Como falar sem boca, andar sem pernas
(ainda que destas não seja preciso
para cantar no tom alhures referido)
se o próprio ouvido morre junto ao resto?

Por aí se vê que tal Buraco Negro,
como os buracos de nossa linguagem,
é mais embaixo.
Será por certo de um outro lado
verso reverso anverso desse lado
onde me constituo em dissentido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luiz Paulo Santana


 

Para a antologia “Fui eu”


És duro.
Os olhos são metáforas
de tempo e sofrimento.

Mas és duro.
O resto está na cara
sem abrir a boca
sem dizer palavra.

Cravo-te um beijo à testa:
arranco-te um sorriso
(por dentro)
à boca reta
à cara amarela
que me arrostas.

Gosto de ti
de tuas durezas
de tuas rudezas
de tuas apostas.

Gosto da máscara
que fazes
esplêndida síntese
de caras
e facas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

Luiz Paulo Santana


 

Amo


e se o amor existe
vou te amando

e se mais disseres
te amarei de novo

e se ainda quiseres
outra vez eu amo

e se o amor é sonho
tanto faz que ame

e se o amor liberta
tanto quanto eu amo

e se o amor nos cansa
porque o amor é corpo

e se o amor nos mata
porque o amor é morte

e se o amor flutua
porque o amor é lânguido

e se o amor renova
porque o amor é fluxo

e se o amor é nome
tanto faz se é chama

e se o amor odeia
ódio tanto quanto

e se amor ou ódio
conflito semântico

e se o amor é tudo
mais do que palavra

e se o amor é nada
menos do que tudo

e se amor é neutro
amo-te em segredo

e se o amor é impuro
por que tão concreto?

e se o amor é santo
amo-te por certo

e se o amor é incerto
amo-te por tanto

e se amar quiseres
te amarei mais quanto

e se o amor é incerto
é santo
é impuro
e se o amor é neutro
é nada
é tudo
e se amor é nome
é sonho
é chama

e se o amor liberta
tanto quanto amo
porque o amor é corpo
porque o amor é morte
porque o amor é lânguido
porque o amor é fluxo

e se o amor odeia
conflito semântico
amo-te em segredo
amo-te por certo
amo-te por tanto

e se mais disseres
e se ainda quiseres
e se o amor existe
vou te amando.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

Luiz Paulo Santana


 

Janelas


Na parede da sala havia um quadro
um quadro de meia parede atravessado
por uma janela em cujo vão nascia
um verde setembrino em sol maior cantante
de primavera emprenhado.

E na parede da sala bem que havia
descascados pedaços
à vista dos tijolos de adobe argamassados
a barro e fantasia
parte dos quais encerrados
na casca rebocada que luzia
da tal meia parede onde esse quadro
jazia na sala pendurado.

De tal maneira se via
essa janela e essa meia parede
e os descascados dos tijolos de adobe à vista
argamassados à barro e fantasia
que não se sabe bem qual das paredes
é parede ou quadro de meia parede
em concordância atravessada ou atravessado
por uma janela em cujo vão nascia
um verde setembrino em sol maior cantante
de primavera emprenhado.

 

 

 

 

 

 

19.05.2006