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Jornal do Conto

 

 

Luiz Paulo Santana


 

Crec! Crac! Buff!

 

Era um dia de sol. Redundante. Todos os dias da minha infância eram de sol. Mesmo quando chovia. Mesmo quando faltava o pão e comíamos café com farinha, a jacuba. Eu não sabia, mas jacuba, no dicionário, é um refresco ou pirão feito com água, farinha de mandioca, açúcar e mel, por vezes temperado com cachaça. Mas a nossa jacuba era de café com farinha. Como ia dizendo, mesmo quando meu pai estava nervoso, e nesse caso o sol se punha momentaneamente atrás de uma pequena nuvem escura, os dias — e também as noites — eram de sol.

Num desses dias de sol eu estava cuidando do meu porquinho-da-índia. Deixava que ele cuidasse de si mesmo comendo deliciosas folhas de capim. Pela carinha que ele fazia só podiam ser deliciosas aquelas folhas. Havia uma pequena ilha de arbustos e pés de capim na vastidão do nosso quintal. O resto era chão batido, com algumas árvores um pouco distantes umas da outras. Vigiava o meu porquinho-da-índia para que não saísse da ilha e se perdesse na imensidão do quintal. Poderia ganhar o lote vizinho, cheio de mato grande, e aí, babau.

Foi então que meu pai mandou que eu buscasse a bateria do carro dele. A bateria tinha perdido a carga, sabe como é, né?, não fornecia mais eletricidade e sem eletricidade o motorzinho de arranque não rodava, e se não rodava, também não fazia rodar o motorzão do carro para que ele pegasse. Um motorzinho movido a eletricidade — da bateria — que fazia rodar o motorzão movido à gasolina, até que ele começasse a funcionar. Acho que deu pra entender, né? Foi o mecânico quem disse isso.

Meu pai levou a bateria para consertar numa loja que ficava longe lá de casa. E mandou que eu fosse buscá-la, pois estava pronta. Ele tinha de ir para o trabalho. Meu pai estava com aquela nuvem escura em cima de sua cabeça, por isso não via o sol. Às vezes aquela nuvem crescia tanto que tampava também o meu. E nesse dia foi mais ou menos assim.

Guardei o porquinho-da-índia na gaiola, recolhi o caminhão para debaixo da minha cama — eu tinha um caminhão e pretendia usá-lo naquela manhã de sol para fazer um carreto de terra para minha mãe. Ela estava querendo fazer um canteiro de cebolinhas.

Peguei o dinheiro da passagem e desci a rua até onde passava a jardineira. Tomei muitos cuidados nas travessias, o papel da bateria no bolso esquerdo, o dinheiro da passagem no bolso direito. Quando meu pai chegasse, encontraria a bateria novinha em folha. O sol voltou a brilhar e o passeio foi legal. Pelo menos na viagem de ida. Porque a viagem de volta foi difícil. Paguei ao homem da loja e quando fui suspender a bateria — ufa! — que pesada! Como era pesada a bateria!

Eu não conseguia nem um jeito de pegar a bateria de cima do balcão. Com a ajuda do homem da loja consegui segurá-la pelas bordas. Em cada lado da bateria havia um rebordo que permitia carregá-la com as pontas dos dedos. E lá fui para o ponto da jardineira. Pousei a bateria no chão para descansar, esfregar e esticar os dedos já um pouco doloridos. Quando a jardineira parou entrei meio sem jeito, escorando-me nas laterais da porta de trás e depois nos encostos dos bancos, até o mais adiantado que pudesse, o mais próximo da porta da frente, para facilitar as coisas na hora de descer.

Enquanto viajava, sentado, sentindo o peso da bateria sobre as coxas, fui me lembrando do meu porquinho-da-índia, do meu caminhão e do carreto de terra que eu ainda faria naquela tarde. O trocador cobrou a passagem e eu me preparei para descer. O sol continuava, de vez em quando uma pequena nuvem se aproximava, vinda de não sei onde, quem sabe por causa da bateria, ou do peso da bateria que eu teria ainda que suportar mais um pouco.

O lugar de descer foi chegando. Meu sol brilhou ainda mais quando eu avistei a rua de terra em frente à qual a jardineira parava. Estava pertinho de casa, e dali a pouco — vitória — missão cumprida, meu pai não teria nuvens a tampar o seu sol nem o meu seria tampado por tabela. A jardineira parou.
Eta coisa mais sem jeito. Resolvi pegar a bateria por baixo, não pelas bordas da parte de cima, porque no descer o degrau interno e depois saltar ela poderia escapar, e eu tinha que resolver logo, a jardineira parada, o motorista olhando e...

Peguei-a por baixo, encostada na barriga, pesada que só ela, desci um degrau, calma, outro degrau, calma, e saltei no chão. No que saltei, os dois pés descalços plantados no chão, com o balanço, minha barriga parece ter empurrado para frente a bateria, que girou no ar e caiu de borco, bufff!, isto é, com aquelas tampinhas e os dois polos de metal para o chão, e ainda por cima, começou a sangrar. Ora! Ela fez bufff!, de pesada, mas não fez crec!, ou crac!, de quebra, de quebrada. Mas quebrou. Um dos polos de metal afundou abrindo um buraco por onde saiu o líquido que, dizem, come roupa.

Fiquei tão espantado em socorrer a bateria, em virá-la imediatamente para que ficasse de pé, que não reparei numa grande nuvem escura que se aproximava. E ainda tive de carregá-la até em casa, cada vez mais pesada.

A tarde acabou sem sol, e a noite também. Meu pai não me disse nada. Minha mãe é que disse a ele umas tantas coisas. Ele só ficou andando pra lá e pra cá, debaixo daquela nuvem imensa, tampando o nosso sol.