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João Soares Neto


 

João Soares Neto entrevista Ana Miranda

 

 

Considero Ana Miranda uma das maiores escritoras brasileiras. Singularmente, Ana é cearense. Mas é uma cearense que saiu daqui muito cedo e só volta como visita. Não tem mais intimidade com a Praia de Iracema, onde nasceu. Mudaram ambas. Ana é patrimônio nacional e a Praia de Iracema é, hoje, patrimônio da prostituição internacional.

Ana Miranda é autora de Anjos e Demônios e Celebração do Outro, ambos de poesia e dos romances Boca do Inferno, Amrik, Desmundo, A Última Quimera e Dias e Dias, além de artigos, ensaios etc

Esta entrevista é fruto de trocas de e-mails que, aos poucos, culminaram com a formulação das perguntas que ela respondeu tal como está ai abaixo. Sem tirar, nem pôr.


João - Levaram-na de Fortaleza em 1955, aos quatro anos de idade, por quais razões?

Ana - Na verdade, saímos de Fortaleza em janeiro de 1957, e eu tinha 5 anos – faria 6 em agosto. Meu pai foi convidado a participar da construção de Brasília, ele era engenheiro. Como não havia ainda casa nem uma boa escola, e as condições eram muito precárias, papai considerou melhor esperarmos, no Rio de Janeiro.


João - Quatro anos depois, sacam-na do Rio de Janeiro e a misturam com os candangos de JK. Era a família tentando se unir ou, unida, tentando a nova vida que se descortinava? E você no meio disso tudo?

Ana - Em janeiro de 1959 voamos para Brasília. Não era propriamente uma forma de “tentar nova vida”. Meu pai era filho de senhores de engenho na Paraíba, e tínhamos uma vida confortável em Fortaleza. Ele acreditou na idéia de Brasília, e sempre dizia que devemos trabalhar por nosso país, não por nós mesmos. Minhas recordações são ambíguas, creio que as perdas eram sentidas, mas logo eu me adaptava à nova situação. Mas sei que sentíamos muito a falta de papai, no Rio. Quando ele vinha nos visitar estava magro, queimado de sol, maltratado, mas sem nenhum desânimo. Isso nos dava forças. A chegada em Brasília foi inesquecível. Mas hoje me sinto uma pessoa sem raízes muito precisas. Sou um pouco cearense, um pouco brasiliense, um pouco carioca.


João - Depois, em 1969, no fervor da ditadura, você volta para o Rio para estudar artes? Que artes, se há arte em todas as partes? E como via o que estava acontecendo?

Ana - Eu estudava artes em Brasília, e fui fazer um curso de verão no Rio, com um grande artista chamado Ivan Serpa. Mas meu pai morreu, e voltei para Brasília. Continuei meus estudos, mas decidi retornar ao Rio, percebi que ali tinha muito a aprender, e estudei com o Roberto Magalhães, o Rubens Gerschmann, e outros artistas. Eu desenhava e escrevia, desde criança. Em Brasília, vivi um período conturbado, participava de lutas dos estudantes contra o regime militar. No Rio, testemunhei um momento de grande efervescência cultural, e de contracultura. Eu era mesmo uma testemunha, olhava os acontecimentos, as pessoas, mas minha vida sempre se processou entre os trabalhos de desenhar e escrever.


João - A poesia foi o seu despertar para a literatura. “Anjos e demônios”(1979) é a óbvia descoberta do mundo real ou apenas uma alegoria?

Ana - Anjos e demônios é uma reunião de poesias escritas a partir dos doze anos de idade, portanto, é um livro muito irregular e ingênuo. Claro, tudo é relacionado à descoberta do mundo, numa pessoa tão jovem, mas a poesia é feita de símbolos, não de realidades.


João - “Celebrações do outro”(1983) é amadurecimento poético ou uma espécie de festejo à maturidade emergente?

Ana - Um dia encontrei um livro de Olavo Bilac sobre a técnica de poesia, metrificação, rima, gêneros poéticos etc. Resolvi experimentar aquelas formas apresentadas no manual, muito tradicionais, clássicas. Escrevi sonetos, alexandrinos, sempre entusiasmada por novas palavras, tinha a pretensão de usar todas as palavras que descobria. O resultado foi um livro, mais uma vez, inexperiente. Minha maturidade literária veio aos poucos, e talvez tenha chegado apenas quando escrevi Desmundo, o meu primeiro livro que respondeu a questões interiores relacionadas à criação do texto.


João - O que você conhece de Capistrano de Abreu?

Ana - Ele foi um historiador recorrente, nas minhas leituras para o Boca do Inferno, e outros livros. Fez ótimas edições críticas, de Varnhagen, de frei Vicente do Salvador, e livros clássicos de crítica histórica. Trabalhou para fixar os textos de Antonil, e do padre Manoel da Nóbrega, entre outros. Todos esses textos foram fundamentais para mim. Ele era muito rigoroso, respeitado, ouvido. Sei que ele era cearense, claro. Ele foi muito importante na formulação de uma visão brasileira de nossa própria história.


João - Baianos, portugueses, árabes etc em suas histórias. E os cearenses, raízes, heróis e bandidos nunca povoaram seus sonhos?

Ana - Tenho projetos de escrever livros relacionados às minhas raízes, sim, tanto no Ceará como em Brasília. Sempre me esforcei nesse sentido, mas os livros escolhem a sua hora. Talvez eu precise de mais maturidade para escrever sobre mundos que me dizem respeito, diretamente. Na literatura, andamos em busca de nós mesmos. Aos poucos estou chegando ao Ceará, à praia de Iracema, onde nasci. Meu último romance, Dias & Dias, tem uma passagem por Fortaleza, a Fortaleza do século 19.


João - A figura grandiosa de Gregório de Matos é mote para continuar poeta dentro de um romance histórico?

Ana - A poesia é um dos elementos mais fortes nos meus romances, seja pela presença de poetas, seja pela linguagem em si. Ou, ainda, pelo amor que sinto pelas palavras, a poesia nos ensina a amar as palavras. Tenho, mesmo, a preocupação gestáltica dos poetas, e intitulo os meus capítulos, que são breves, terminam com algum efeito poético.


João - ”Esta cidade acabou-se. Não é mais a Bahia. Antigamente havia mais respeito. Hoje, até dentro da Praça, nas barbas da Infantaria, nas bochechas dos granachas, fazem assaltos à vista”. Terá sido por razão semelhante que você saiu da zona sul do Rio para a zona cinza de São Paulo? Ou terão sido razões mais profundas?

Ana - Foram razões de ordem pessoal, familiar. Não há nenhuma relação com os assaltos, que existem em qualquer cidade. E o Rio de Janeiro não se acabou, continua uma cidade acolhedora, alegre, apesar da fase difícil por que está passando.


João - A Amina, personagem principal de seu romance Amrik, além de alter-ego, poderia ser considerada como um anagrama de Ana Miranda e a sua ligação pessoal e afetiva
com a vida e a cultura libanesa?

Ana - Claro, todos os nossos personagens são criados por nossa mente de escritores, e fazem parte de nós. Nesse sentido, são um “outro eu”. Mas esse “ego” literário passa por muitas transformações, e a Amina, dançarina, oriental, moça do século 19, libertou-se de mim. Conheço-a como alguém fora de mim, como se fosse um ser vivo, com quem convivi e a quem observei, como autora. Acho interessante essa sua observação, de que o nome seria um anagrama. Pode ser, sim, algumas de minhas personagens têm nomes com Ana. Mariana de Lancastre, Anica de Melo... Mas, para ser um anagrama perfeito, ela deveria se chamar Amina Daran, ou Amina Narad. E seu nome é Amina Salum. Já me perguntaram se Salum é propositadamente mulas ao contrário. Não, não é. Trata-se de um verdadeiro nome libanês. Tem a sonoridade de Shalom, Paz, para os judeus.


João - Citado por você: “ser livre é, freqüentemente, ser só”, de W.H.Auden, é uma espécie de justificação existencial ou apenas uma epígrafe contextualizada? Pode-se ser só, sem ser livre?

Ana - Escolhi essa epígrafe porque me senti muito só, quando escrevia Amrik, pois é um texto experimental, e muito inovador dentro de minha obra, mais que o Desmundo. Busquei a liberdade na escrita, e essa liberdade muitas vezes me levava a procurar companhia nos livros de outros escritores. Olhava um, outro livro, mas não encontrava nada que fosse parecido. Claro, a afirmação serve para uma situação existencial. Podemos ser livres, podemos ser sós, podemos ser as duas coisas, ou nenhuma das três. A palavra freqüentemente, no verso, esclarece essa dúvida.


João - Nenhum poeta do Ceará a encantou? Por quê Augusto dos Anjos a fez criar “A última quimera”? E “Dias e dias” de Gonçalves Dias?

Ana - Tenho planos de escrever sobre um poeta cearense. Na verdade, não são os poetas que me inspiram a escrever um romance, mas a fonte lingüística que representam. No caso de Gregório de Matos, o Barroco; no de Augusto, a sua riquíssima sintaxe e seu vocabulário estranho; e o Romantismo de Gonçalves Dias, que veio preencher uma necessidade interior que eu sentia, naquele momento, de simplificar a minha dicção.


João - Como é estar fisicamente madura, avó, e ter a cabeça/ ebulição de uma jovem mulher moderna mergulhada em coisas do passado?

Ana - Sinto-me como se tivesse quinhentos anos, como se tivesse vivido realmente nos séculos 16, 17, 18, 19. Vivi nos vinte e 21. Porque escrevi sobre todos esses períodos. E li, muito, documentos da época, ou sobre a época. A viagem que fazemos na imaginação fica na lembrança como se fosse uma experiência real.


João - Capistrano de Abreu, Antônio Conselheiro, Padre Cícero, General Tibúrcio, Castello Branco, Patativa do Assaré, entre outros cearenses, podem ainda ser material para novas tramas suas?

Ana - Não gosto de revelar os meus projetos. Sempre que o fiz, a idéia foi embora, perdeu a força. As figuras históricas que você enumerou dariam material para um bom romance. Talvez apenas o Castello Branco fosse complicado, pois viveu muito recentemente. O Ceará tem figuras impressionantes. Maravilhosas, do ponto de vista dramático.


João - O que geralmente passa na sua cabeça depois de uma longa tragada em uma cigarrilha? A consciência do tempo e a certeza da finitude a incomodam?

Ana - O que se passa na minha cabeça depois de uma tragada numa cigarrilha é que preciso parar de fumar, que faz mal à minha saúde. O tempo tem se tornado, para mim, cada vez menos relacionado ao tempo cronológico, a literatura existe num tempo diferente, é um tempo em que passado, presente e futuro se entrelaçam. Quando escrevia meus primeiros livros, tinha pavor de morrer e não poder escrever os outros. Agora, que escrevi muitos livros, não tenho mais esse medo. Mas tenho muito apego à vida. E não tenho nenhuma certeza da finitude. Nem da eternidade.


João - Como você imagina que deva ser a vida de um intelectual cearense sem brilho extra-borders?

Ana - Uma vida em paz, com muito mais tempo para o estudo, a introspecção, e uma possibilidade extraordinária de encontrar universos inéditos.


João - Há algum sonho acadêmico próximo? Ou as futricas e brigas a desencantam? Raposa e as uvas?

Ana - Admiro a Academia Brasileira de Letras, com todas as suas contradições. É uma casa respeitável, voltada para a erudição, onde as pessoas conversam sobre literatura, contam histórias fabulosas, e têm uma memória importante a ser transmitida. Mas sempre gostei de ser independente.


João - Como você vê o preconceito contra os “baianos” que somos?

Ana - O ser humano é preconceituoso, em geral. Quanto mais obscurantista, mais preconceituoso. Demolir os preconceitos é uma qualidade, uma necessidade da civilização. A tolerância é a única saída para a humanidade.


João - Lula é figura de retórica ou presidente de fato?

Ana - Não sei. A história vai responder. Mas gosto dele.


João - Que autores, não mais que cinco, para ler e reler?

Ana - Homero, Dante, Shakespeare, Cervantes, Joyce, Kafka, Proust, Borges, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice, Drummond, Virginia Woolf, Dostoievski, Fernando Pessoa, Faulkner, acho que passei da sua pequena conta… e apenas comecei... Temos de ter sensibilidade para com todos os nossos livros, e saber ouvir seu apelo.


João Soares Neto é escritor. Membro da Academia Fortalezense de Letras e da Sociedade Brasileira de Bibliófilos. Publicou Sobre A Vida e O Amor, Sobre Todas as Coisas, Sobre a Gênese e o Caos, Microcontos e Capistrano por quem e para quem não o conhece.

 

 

Ana Miranda

Leia Ana Miranda

 

 

 

 

 

15/04/2005