Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

José do Vale Pinheiro Feitosa


 

Cadinho amava o Alto do Urubu

 

E tinha razão de amá-lo.

Era um belo bosque. Localizado num morro não muito alto, algo em torno de 60 a 80 metros de altura. Adorava passear na estradinha que seguia dentro dele. Andando sob as árvores, com sua copa lá nas alturas e, no teto de galhos e folhas de todos os tamanhos, ficar vendo as réstias da luz do sol.

Gigantes eternos, um ao lado do outro. Juntas, as árvores ficavam num bosque de sonhos. Haviam os pés de Jatobá imensos, com os galhos da ponta chegando a atingir a altura das torres da Sé. Entremeando os troncos grossos, uma abundante vegetação menor e, descendo dos galhos das árvores, uma variada barafunda de cipós e plantas parasitas.

O fruto do Jatobá. Na verdade uma semente com vagens grandes e grossas. A casca dura, só com pedradas, na junção das duas bandas da vargem, se abre o seu interior. Um talco, fino e doce, agarrado à fibras, recobre as sementes. Nessa planta o alimento da semente não é líquido com nas demais frutas, seu modo de ser assemelha-se ao árido sofrimento da seca. Saborosa, tua saliva fica grossa e o engasgo é possível, tal o pó doce nos deixa como se com a boca cheia de fubá de milho ou farinha estivéssemos.
 

Estando passeando pela estradinha e, procurando examinar o aclive do morro, o olhar penetra uma densa floresta ensombreada. Teu olhar vai encontrar um espaço interior cuja atmosfera, apesar de obscurecida, brilha como uma tênue luz de néon, de cor acastanhada. Vendo o interior da mata, Cadinho viajava no mistério, no campo desconhecido que carregamos no bosque que todos temos dentro de nós.

Mas, na estradinha, se olhasses para o lado contrário da densa mata, de repente o exterior aparecia. O mundo inteiro surgia, como um milagre de luzes, através da folhagem, de pequenas brechas na vegetação. Ao invés do olhar passear acomodado e temeroso nas sombras do bosque, ele se energizava, as pálpebras estreitavam-se enamoradas pelo belo azul, como o céu do dia. As pupilas reduziam-se procurando concentrar ainda mais a maravilha da luz verde do canavial, das roças através da planície do arisco, da serpenteada borda, encovada, do riacho dos Cochos. E no limite da visão, o paredão azulado da Chapada do Araripe abrigava em seus braços, como se a ninasse, a brancura da casa da Batateira. O berço de Cadinho.

Por tal, Cadinho amava o Alto do Urubu. Que aliás tinha este nome por ser o dormitório dos pássaros da região e inclusive de urubus.
 

Caminhavam, os dois meninos. Iam no engenho de Aldegundes, beber garapa de cana, fazer dois alfenins e pegar uma panela de mel. Conversavam animados. Estavam numa curva da pequena estrada carroçal com piso de barro. Essa estrada vem da ponte velha, sobe uma pequena elevação onde se localizava a casa da Batateira, passa por trás dela e segue, nas encostas do morro, margeando a planície do brejo. Tão logo transita atrás da casa do Sítio Batateira, o passageiro encontra um declive que forma uma baixada, cuja a margem do brejo é formada por uma verdadeira cerca de elevados pés de eucalipto. Novamente uma pequena ladeira e logo a seguir uma curva para esquerda, da qual, do alto, se avista toda região do vale do rio Batateira. No final da curva os meninos desceram uma ladeira na direção da ponte sobre o riacho dos Cochos. A estrada continua em curva para o norte, para finalmente virar a sul na direção do riacho. Começam a aparecer as grandes árvores que formam a floresta dos cochos e, no passado, ocupava toda a vertente do Araripe.

Andavam, com cuidado, sobre a ponte, com as brechas do riacho dos Cochos, entre um e outro tronco de madeira, passando lá embaixo. À esquerda da estrada todo o baixio do arisco, plantado de milho e feijão e à direita o canavial em sua exuberância. Os meninos tão logo passaram a ponte, começaram a subir, se recurvando para o sul, na direção da estradinha do bosque do Urubu. Uma mutuca picou Chico Mewdo, que era o companheiro de Cadinho. Sentindo a picada, Chico Mewdo deu uma palmada no local da dor e comentou:

- Eu queria descobrir o lugar que forma todos estes bichos que atrapalham a gente!

Cadinho riu do amigo e perguntou:

- E tem este lugar?

- Tem! É um sótão de uma casa velha e lá em cima tem um bocado de tripinhas. Cada tripinha daquela é de um bicho da natureza. Se você cortar a tripinha das mutucas elas deixam de existir. – Chico Mewdo disse para Cadinho.

- Quem contou este segredo prá tu? – Cadinho quis saber e Chico Mewdo respondeu:

- Um amigo meu. Tu não conhece não.

- Eu conheço o mundo todo e não existe amigo teu que não conheça. Tu não sabe o que está dizendo.

Cadinho pensou, com o que disse, que deixaria Chico Mewdo sem argumento, mas este continuou afirmando:

- Foi um pavão. Foi um pavão que me contou que havia esta casa, mas não me revelou de jeito nenhum onde ficava.

Cadinho parou a caminhada e com surpresa perguntou a Chico Mewdo:

- E tu ainda fala com os bichos? Estranho. Eu nunca mais consegui falar com eles. Minha professora disse que depois dos cinco anos a gente não consegue mais. Tu já tem oito anos e não acredito que o pavão tenha contado esta história.

- Pois aconteceu mais uma vez. Foi uma vezinha só, mas aconteceu. Eu estava com raiva de uma cobra que me deu um susto e falei alto que gostaria de ter um meio de poder acabar com todos os bichos indesejados. Foi aí que o pavão, que estava sobre o galho do pé de tamarindo, detrás do Salão, me contou esta história.
 

Cadinho animou-se e os dois recomeçaram a caminhada já se aproximando do bosque do Alto do Urubu.

Era uma manhã de julho, férias, os meninos sentiam-se bem no frescor tão típico deste mês. Subiam com facilidade a pequena elevação que se toma na estrada, até atingir-se um nível e através de uma reta plana percorrer os cerca de 250 metros de bosque. Isso no sentido da estrada, pois na parte mais comprida da cobertura florestal, o bosque tem mais de 2 quilômetros. Estavam entrando no bosque quando Cadinho voltou ao assunto da tripinha:

- Já pensou a vida sem muriçoca, barata, rato....ou cobra. .. mutuca?

- Seria muito melhor. – Chico Mewdo completou o pensamento de Cadinho e os dois, um após o outro foram lembrando do que não queriam:

- Sem lagarta comendo o legume.

- O tapuru apodrecendo a carne.

- Sem Formiga de Roça.

- E mato no roçado.

- Sem raposa comendo galinha.

- Nem bicheira no Bezerro.

- E Bexiga na gente.

- Sem exercício de aritmética.

- E rosário ao anoitecer.

- Nem diarréia em noite alta.
 

Na conversa animada, já estavam na metade do bosque, quando Cadinho, de repente, deu-se conta que estava no seu lugar amado e parou. Chico Mewdo automaticamente também estancou calado.

Cadinho angustiado questionou o amigo:

- E se tiver a tripinha do Alto do Urubu?

- Cortando a tripinha do Alto, ele deixava de existir? – Chico Mewdo perguntou preocupado com a possibilidade. E Cadinho, decepcionado com a idéia poderosa que vinham desenvolvendo, mostrou a dimensão do que este poder poderia fazer:

- Se não acabar a pedra e o barro, pelo menos tudo que é ser vivente, ser que nasce e morre, iria desaparecer e o Alto do Urubu ao invés de mata bonita, viraria o Alto do Barro Vermelho. – E Cadinho, se aproximando da margem da estrada, entrou no mato e quando Chico Mewdo notou, o amigo já estava no meio dos troncos volumosos das árvores frondosas.
 

Cadinho estava efetivamente tocado pela possibilidade de que, um dia, todo aquele bosque iria desaparecer. A cidade do Crato cresceria, cortariam mais e mais as matas remanescentes.

Ele agora não queria mais o poder de fazer desaparecer os incômodos. Preferia o poder do renascer, o poder de não deixar que o esmeril do tempo desgastasse aquilo que um dia encontrou, quando nasceu num quarto da casa da Batateira. Como o avô lhe deixou o bosque do Urubu, ele queria que os netos dele, Cadinho, pudessem, num futuro muito distante, continuar tendo pelo Alto o mesmo amor que, intensamente, sentia.

Cadinho sabia que o sentimento profundo, o conhecimento complexo e a serenidade frente ao desconhecido, só poderiam lhe ser constantes enquanto pudesse compreender tudo em conjunto. E a visão do conjunto lhe surgia ao olhar a atmosfera do interior do bosque do Urubu. Ao mesmo tempo o sentimento forte, a síntese das coisas e a nitidez do conhecimento, se revelavam nas brechas de luz que expunham a visão do baixio da Batateira.
 

Com a mão alisando, suavemente, o tronco rugoso da cajazeira, Cadinho sabia que o Alto do Urubu era fundamental para ele. Ele desejava mais do que nunca deixar aquele mundo para outras crianças no futuro, do mesmo jeito que ele a conhecera pela primeira vez.

Ele, sentimental, comentou com Chico Mewdo:

- Eu vou lutar a vida toda para que este bosque continue tendo a mesma riqueza que possui hoje. Eu quero que, se possível, ele fique até mais puro e preciso do que é.
 

Cadinho saiu do meio do mato e o dois meninos continuaram a caminhada. Chico Mewdo refletindo o que o amigo lhe dissera, pensou que talvez Cadinho não conseguisse realizar o que queria, mas pensou numa maneira alternativa e disse para o amigo:

- Se cortarem esta mata, o solo ainda vai continuar. Se o solo ficar ruim, se põe adubo e ele volta a ser fértil. Então, mesmo que seja preciso usar a mata, ela pode ser plantada de novo. O mundo, a professora me disse, nunca foi o mesmo. Ele está sempre mudando. Já teve a época dos dinossauros e eles se acabaram. As coisas vão mudando e se a gente aprender com a mudança a riqueza, das matas e dos bichos, vai sempre estar a nosso favor.
 

Cadinho parou de repente, impulsionado pelo pensamento do amigo e o rebateu:

- Você está louco. Nós temos que tomar uma atitude e deixar que o mundo funcione por ele mesmo. Se nós soubermos dar valor ao modo como ele funciona, o mundo vai sempre estar a nosso favor. Se tu viu falar dos dinossauros, lá nos tempos antigos, quando nem gente havia na terra, eu ouvi dos velhos aqui da Batateira que no passado estes campos eram cheios de guaxinim e hoje não tem mais nenhum, nem para fazer remédio. Se a gente continuar usando a natureza de maneira a só usar, ela desaparece e não se encontra mais as coisas para refazê-las.
 

E os dois meninos continuaram na sua discussão profunda sob a maneira de tratar a natureza. A cada passo que davam na estrada, o bosque se aproximava do fim e começava a visão do brejo e os engenhos apareciam.

Na animação da discussão, até esqueceram do mundo a suas voltas, cada um com seu argumento, pensava o que fazer especificamente com o mundo. Sendo que o assunto começou com a mata do Urubu, este mundo era discutido em termos da natureza. Daquilo que existe por que existe, naturalmente.

Passaram ao largo de dois pavões que bicavam sementes, embaixo de um pé de babaçu. Assim que os ultrapassaram, um dos pavões chamou-lhes a atenção:

- Bom dia! Está um belo dia, não?
 

Os dois estancaram repentinamente a caminhada.

Cadinho e Chico Mewdo voltaram o olhar procurando a fonte do cumprimento. Viram apenas os pavões. Entreolharam-se procurando ver no outro uma explicação. Então perceberam que um deles estava com a cabeça elevada, enquanto o outro, abaixado, bicava o alimento. O pavão continuou:

- Dia bonito e vocês preocupados com o que devem fazer do dia!?
 

Cadinho, surpreso, respondeu:

- Não só com o dia, mas com a vida toda.
 

- Com a vida toda? E a vida toda é problema de vocês?

O pavão esticou o pescoço e alteando a cabeça, em tom de reparo, procurava delimitar o universo de preocupação das crianças.
 

- Se não é só nosso, pelo menos o que nós fazemos com ela é. – Cadinho respondeu ao pavão que manteve o diálogo:
 

- Tens razão pois o assunto é teu também. Mas não só teu. Vocês dois vinham conversando o que fazer com a natureza, como se vocês não fossem parte dela. Como se a natureza fosse apenas um meio de uso para a vida e conforto de vocês. Parecia que o destino da natureza era assunto só de vocês. Mas não é porque ao serem parte dela, o destino de vocês é que será ditado pela natureza. As vezes eu escuto o pensamento de vocês e tenho a sensação que não se acham daqui. É como se vocês chegassem à esta terra, vindo de um outro lugar.

Tudo que o pavão dizia, ele também dizia com o corpo, apesar de em momento algum levantar o rabo ou as asas. Com movimentos de pernas, balanços de corpo e volteios de pescoço, a cabeça em várias posições realçava a importância de cada idéia do seu discurso a respeito dos meninos.
 

Chico Mewdo que assistia à conversa calado resolveu falar:

- Mas nós nem sempre moramos neste mundo. Teve um dia que nós nascemos e mamãe me garantiu que um dia a gente morre e vai para o céu. Então isto aqui é só um lugar de passagem, pois o nosso lugar definitivo é no céu.
 

O pavão abaixou a cabeça, beliscou algo no chão e ficou com o pequeno objeto girando na ponta do bico, como se estivesse refletindo o que Chico Mewdo lhe dissera. Mas ao invés de responder ao menino, fez outra pergunta a Cadinho:

- E você também acha que é apenas um viajante nesta vida. Que a natureza é apenas uma morada emprestada, pois a tua verdadeira natureza está em outro lugar?
 

- Eu também acho que somos filho e de Deus e a ele retornaremos. Eu já vi falar em discos voadores e em pessoas que viajam de um planeta para outro. A idéia é que existem pessoas de outros planetas morando aqui. O certo é que apesar de não sermos definitivamente daqui, temos que cuidar desta moradia temporária.

Cadinho que antes tivera pensamentos diferentes a Chico Mewdo quanto ao que fazer com a natureza, repetiu o que o amigo já dissera, só acrescentando mais alguma coisa.
 

O pavão de repente levantou sua belíssima cauda e estremeceu-se inteiro como se numa demonstração de vigor. Com toda a energia do momento respondeu aos meninos:

- Como a minha cauda que me torna maior e mais belo, o pensamento de vocês também enfeita a real natureza de vocês. Esta medida em que vocês são visitantes do mundo, não passa desta minha cauda colorida, feita para impressionar. Vejam meus pés, olhem minha natureza e percebam que muito mais que um dom divino, eu sou um dom da mesma natureza destas sementes que meu bico engole. Eu, vocês, este babaçu e aqueles jatobás, somos detalhes de todo este panorama. A natureza não é uma parte fora da gente, nós somos ela em toda a sua força, com todos os seus sofrimentos e dúvidas. Nós não existimos fora dos termos da natureza. Mesmo que um dia vocês cheguem até a lua, têm que ficar embutidos em máquinas que transportam os elementos da vida como acontece aqui. Vocês vão precisar de água, de ar, de comida. Pois o ar, a comida e a água são a própria prova de que vocês se formam igual à natureza. Existem mais semelhanças entre vocês e os mares, entre as árvores e teu modo de viver, do que imaginam teu livros e teu pensamento torto.
 

Os meninos, boquiabertos, viram o pavão abaixar a cauda e lentamente sair, com o outro que o acompanhava. As aves foram bicando o alimento na encosta que descia até o canavial e penetraram nele. Cadinho e Chico Mewdo refletiam o conteúdo da conversa com os pássaros e quando os pavões já haviam desaparecido no interior do canavial, retornaram a caminhada na direção do engenho de Aldegundes.

Naquele dia, os pais de Cadinho e Chico Mewdo ficaram apreensivos com a demora dos dois. Chegaram atrasados para o almoço.

Na volta para casa haviam se demorado um longo tempo no interior do bosque do Alto do Urubu.

 

 

 

 

 

22.09.2005