O Castelo dos Destinos Cruzados - 
				
				o encontro de três poetas no Alentejo (Castelo de Vide): Francisco Bugalho, Cristovam Pavia e 
				António Luís Moita
				
				
				
				  
				
				
				
				I
				
				
				Eu, e creio que muitos, busco não o que é verdadeiro em absoluto 
				mas o que nós somos
				
				
				Cesare Pavese
				
				 
				
				"Todos
				os dias, todas as tardes, pelo menos, 
				tomávamos nós, poupadamente, o nosso café, lá descia ele da alta 
				escadaria, fumando o seu cigarro, o chapéu de aba larga, um 
				tanto ou quanto a manzantini - assim a minha deformada memória 
				mo recorda -, ligeiramente derrubado sobre a orelha, o bigodinho 
				retorcido. Atravessava o corredor e desaparecia para lá do 
				guarda-vento. Acabava de almoçar no restaurante mais afamado de 
				Coimbra, aquele onde se dizia ser a cozinha de qualidade e a 
				conta de razoável preço…
				
				
				Não sei como, não me recordo graças a quem, mas o certo é que 
				esse moço, que vestia fatos de bom corte, entrou na nossa roda.".
				
				O 
				jovem a quem João Gaspar Simões faz referência nascera no Porto 
				em 1905 e era um dos poucos estudantes coimbrões a frequentar o 
				primeiro andar da pastelaria-cafe Central, local onde a tertúlia 
				da revista Presença habitualmente se reunia. De seu nome 
				Francisco José Lahmeyer Bugalho - Lahmeyer, nome de ascendência 
				germânica pois seu pai era alemão - estava em Coimbra a cursar 
				Direito e ligava-se desta forma aos presencistas, grupo onde, 
				além do citado Gaspar Simões, pontificavam os nomes de José 
				Régio e Branquinho da Fonseca.
				
				A 
				primeira colaboração de Francisco Bugalho, em prosa, apareceu no 
				número 18 da revista, em Janeiro de 1929 (Detalhe de uma 
				Novela). A sua poesia, por outro lado, demonstrando uma 
				sensibilidade muito sincera e profundamente humana, 
				encontrava-se de acordo com os preceitos teóricos defendidos 
				pelos homens da Presença, os quais advogavam uma arte "verdadeira 
				e intima" . Independentemente do antagonismo de posições que 
				a sua poesia suscitou aquando da discussão que sobre ela o grupo 
				empreendeu, a verdade é que em Dezembro desse mesmo ano já a 
				folha coimbrã trazia a sua estreia poética (Obsessão).
				
				
				Aquando desse acontecimento, Francisco Bugalho "vivia sobre 
				si, proprietário de uma grande quinta no Alto-Alentejo" . Aí 
				lhe haviam sucessivamente falecido os pais e uma irmã ainda 
				bastante nova, pelo que o poeta, nas férias, residia 
				habitualmente dentro da vila com uma prima de idade avançada - a 
				propriedade, a "Quinta das Palmeiras", fica a um par de 
				quilómetros de Castelo de Vide.
				
				
				Francisco Bugalho é normalmente apelidado de "poeta da calma 
				melancolia alentejana" , em cuja poesia se nota um acento 
				lírico vibrante "numa ansiedade insatisfeita de identificação 
				com nesgas de paisagem, sobretudo da bucólica alentejana" . 
				Poemas como Rega (“Longa, lenta, melancólica,/ Cantou a velha 
				canção/ a nora triste da horta./ E uns brados ares de bucólica/ 
				-Oh, lírica solidão! -/ Bateram à minha porta.[…]" ) ou 
				Meio-Dia (" Céu baço. Quente quebranto/ se espalha no longe, 
				enquanto/ Cantam cigarras à roda… […]" ), entre outros de 
				temática semelhante, contribuem para que essa classificação 
				facilmente se transforme em cómoda etiquetagem com a realização 
				de leituras apenas superficiais. 
				
				José 
				Régio, seu grande amigo - Régio dedicou-lhe a célebre Toada de 
				Portalegre - já em 1931 alertou para a riqueza poética que 
				Francisco Bugalho oferecia no seu primeiro livro, Margens 
				(1931), dado a lume sob a chancela das "Edições Presença". O 
				autor de Poemas de Deus e do Diabo frisou o cunho intimista e 
				nada academicizante da sua poesia: "Não grande livro, 
				decerto, se nesse livro subtil e simples procurarmos o que nos 
				não procurou dar (interrogações, intuições, soluções (?!) sobre 
				o mistério do homem e o da sua posição no Universo), o livro de 
				Francisco Bugalho é notável pela graça, pela discrição, pela 
				frescura, pela sinceridade. Sabe bem, ao fim duma discussão 
				metafísica, dobrarmo-nos a cheirar uma flor sobre a própria 
				terra-mãe; ou a beber água da própria nascente, depois duma 
				orgia".
				
				Mas 
				os poemas de Francisco Bugalho são, a meu ver, bem mais que um 
				simples refrigério intelectual. Se a poesia não é sentimentos 
				mas experiências, como disse Rainer Maria Rilke e que "por 
				amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, 
				têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves 
				voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela 
				manhã" , compreender-se-á que a "modéstia" - palavra 
				empregue por Régio - mais não é do que a permanência de uma 
				poesia sem qualquer característica cénica ; ou seja, a poesia de 
				Francisco Bugalho é uma poesia autenticamente pujante, que se 
				não confessa aos maneirismos e modernismos da época, dando-se de 
				uma forma espontânea e total quando fala das pequenas (?) coisas 
				do quotidiano: a beleza de uma paisagem, o passar inexorável do 
				Tempo, as principais actividades da vida agrícola, enfim, o 
				cumprimento da passagem pela terra de homens e de animais. É 
				esta a poesia que Francisco Bugalho nos deu em Margens, 
				concordando eu inteiramente com Fernando J.B. Martinho quando 
				este refere que o seu valor não tem sido suficientemente 
				salientado.
				
				
				Depois de haver demandado Lisboa em busca da conclusão do curso 
				que em Coimbra lhe tardava, Francisco Bugalho regressou 
				definitivamente a Castelo de Vide para aí exercer o cargo de 
				Conservador do Registo Civil, dedicando-se simultaneamente à 
				lavoura. Este carácter "bipolar" da sua vida - homem de poesia e 
				homem prático - assume-o Francisco Bugalho nos seus versos: " 
				Poeta sempre em luta vã contigo,/ Que sofres de já seres aquilo 
				que não és,/ Que sofres de não seres aquilo que queres ser…(…)."
				
				
				Quando voltou ao Alentejo já o autor de Margens tinha um filho, 
				fruto da sua união com Guilhermina Mimoso Flores Bugalho. Este 
				menino ficaria conhecido pelo pseudónimo de Cristóvam Pavia. De 
				seu nome Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, havia 
				nascido em Lisboa, na freguesia de Alcântara, a 7 de Outubro de 
				1933. Francisco Bugalho, no dizer de David Mourão-Ferreira " 
				um Conde de Monsaraz sem pitoresco, um Fialho de Almeida sem 
				dramatismos, um Mário Beirão sem veleidades épicas " 
				compartilharia, pois, com seu filho - pelo menos na primeira 
				idade deste - esse microcosmos rural que ambos, de maneira muito 
				pessoal, intuíram e expressaram de forma muito bela.
				
				 
				
				
				II
				
				
				Para fazermos novo é preciso regressarmos às origens, à 
				humanidade na infância.
				
				
				Gauguin
				
				 
				
				Terá 
				o nordeste alentejano essa fascinante característica de criar 
				nos poetas as "asas e raízes " de que fala Régio no seu 
				Fado Alentejano? Não deixa de ser interessante sublinhar este 
				aspecto, bem como a atracção que poetas exteriores à região têm 
				sentido pelo seu perfil geográfico e humano, possuidor de uma 
				atmosfera poética muito especial. Além do conhecido e algo 
				paradigmático caso de José Régio em Portalegre, não podemos 
				esquecer-nos do de Branquinho da Fonseca, por exemplo, que 
				dedicou interessantes páginas à vila de Marvão (o conto O 
				Conspirador, do seu livro Caminhos Magnéticos), onde foi 
				Conservador do Registo Civil; mas também o de Mário Saa, próximo 
				de Avis e, um pouco mais para o sul, o de Sebastião da Gama, que 
				se deixou prender à bonita cidade de Estremoz, aí encontrando, 
				talvez, a fraternidade cósmica de que tantas vezes falou.
				
				Os 
				nascimentos de Francisco Bugalho e de Cristóvam Pavia em Lisboa 
				queremos considerá-los como meras ocorrências acidentais. David 
				Mourão-Ferreira teceu em tempos oportunas considerações acerca 
				da "adaptação" ou "adopção" de Francisco Bugalho em relação ao 
				Alentejo. No que se refere a António Luís Moita, poeta de 
				qualidade e com preocupações de cariz universal, há desde já a 
				certeza de que, como queria Apollinaire, ele terá encontrado a 
				vitória ao ver bem ao longe e ao ver bem ao perto e dando a tudo 
				um nome novo. O facto de não residir no Alentejo é pois, também 
				aqui, simplesmente circunstancial.
				
				
				António Luís Pinhão de Jesus Moita nasceu em Lisboa em 1925, aí 
				tendo feito os estudos liceais. No entanto, muitas das suas 
				férias escolares foram passadas exactamente em Castelo de Vide, 
				em casa de parentes seus. Foi nessa vila - Castelo da Vida, como 
				já alguém lhe chamou - que António Luís Moita, então com uma 
				dúzia de anos, contactou pela primeira vez com Francisco Bugalho 
				e com Cristóvam Pavia. É o próprio poeta quem o recorda: "Na 
				estrada que liga Castelo de Vide a Marvão, junto ao portão da 
				quinta de uns primos meus, Francisco Bugalho, montando uma égua, 
				pára uns minutos para saudar o meu pai, seu velho amigo. Veste 
				de linho branco. A cor do fato (sei-o agora) acentua-lhe o negro 
				do cabelo escorrido e do bigodinho estreito, à John Gilbert. Usa 
				botas altas, castanhas, quase da cor da montada, cuja 
				impaciência as rédeas refreiam. À sua frente, escarranchado, 
				seguro pelos braços fortes do cavaleiro, um menino de 4 anos, 
				estranhamente quieto e silencioso, fita-me do fundo muito claro 
				de dois olhos enormes","olhos verdes como as águas", 
				no dizer de Francisco Bugalho. Esse olhar o poisou o jovem desde 
				muito cedo sobre tudo o que o rodeava, precocemente inquirindo e 
				perscrutando, como mais tarde António Luís Moita e seu pai 
				ouviram a um Francisco Bugalho preocupado mas agradavelmente 
				surpreendido: ao que parece, o pequeno "Chico" António, com 
				apenas oito anos, foi apanhado a ler um dos últimos volumes de 
				uma enorme História de Inglaterra, isto pouco depois de ter dito 
				ao pai a sua primeira poesia: "O paizinho lê livros na 
				salinha/ Enquanto a mãe faz bolos na cozinha". António Luís 
				Moita, agora com 16 anos, havia entrado no espaço intimo de 
				Francisco Bugalho por o poeta saber pelo pai do jovem que este 
				também já fazia versos, meio às escondidas…"Promovido, assim, 
				a confrade incipiente ou, talvez melhor, a pessoa crescida, a 
				aparência um tanto austera do poeta de Margens, que a principio 
				me intimidava, liquefez-se. Aquele homem grande - que ria pouco 
				- sabia afinal sorrir. E o sorriso, ao abrir-se, transmitia 
				bondade imediata". 
				
				Num 
				livro editado mais ou menos por essa altura, Canções de Entre 
				Céu e Terra (1940) e tal como o próximo organizado graficamente 
				pelo pai de António Luís Moita, Francisco Bugalho fixou com 
				grande ternura e carinho a ânsia curiosa do filho: "Meu 
				menino ama os cães/ Os gatos, as aves e os galos/ (S. Francisco 
				de Assis em menino pequeno) / E fica horas sem fim / Enlevado a 
				olhá-los".
				
				Por 
				essa época já a Presença se tinha afundado. A sentença de morte 
				da revista, que o poeta tanto amava e que, aquando da cisão de 
				Junho de 1930 (saídas de Branquinho da Fonseca, Edmundo de 
				Bettencourt e Miguel Torga) foi "um dos mais fiéis pilares da 
				revista salva do naufrágio" , fora lavrada precisamente na casa 
				onde António Luís Moita e seu pai ouviam aquelas novas sobre o 
				pequeno "Chico" António. 
				
				Foi 
				ainda por essa altura - Outubro de 1940 - que este passou a 
				residir em Lisboa, em casa do avô materno, o Prof. António 
				Flores, docente da Faculdade de Medicina.
				
				
				Aquando desta sua ida para a capital já Cristóvam Pavia 
				transportava consigo uma sólida - apesar de curta - vivência 
				familiar ligada ao mundo rural e que ao longo de toda a sua vida 
				sempre o acompanhou. Giovanni Papini disse um dia ser a cidade 
				uma represália à natureza selvagem. Nada mais justo para o jovem 
				poeta, para quem Lisboa, plena de "pasmo, calor e moscas", 
				seria o espaço urbano opressor por excelência, essa Lisboa cuja 
				aproximação o angustiava e da qual ele expressou mais tarde na 
				sua Litania da Rua dos Fanqueiros aquele que entendia ser o seu 
				ambiente físico e espiritual: " Ó porque será este chulé 
				ibérico/ Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico/ Ó Rua dos 
				Fanqueiros/ Ó Salazar com teu rebanho de sacristas/ Pensar que 
				isto já foi terra de sardinha e de fadistas […]."
				
				Sete 
				anos mais tarde começou a frequentar o 4º ano do Liceu D. João 
				de Castro. Nada sei do que Cristóvam Pavia escreveu durante 
				estes anos (1940-47) - a sua pouca idade certamente não foi 
				óbice a um aprofundamento do seu sentir poético - até porque 
				muitos dos seus escritos se encontram ainda por revelar, 
				escondidos por vontade expressa do poeta, que começou por esta 
				altura a utilizar o pseudónimo. Que nos revelariam eles? 
				Certamente uma poesia bastante precoce, fruto de uma vida 
				extremamente viva e vivida - afinal, a "bagagem" com que se 
				fazem os versos, como queria Rilke e que seu pai, numa das sua 
				últimas poesias, intuiu : "Perdeu de todo seu brilho/ A 
				esperança de dias novos/ E embora haja os renovos/ Com que me 
				não maravilho/ Vou sentindo que são novos/ No fresco olhar de 
				meu filho". O poema, significativamente, intitula-se 
				Reverdecer. Expressariam ainda, creio-o, partes do seu mundo 
				interior, vasto, sensível e complexo mas sempre muito ligado às 
				pessoas, aos animais, às coisas e aos acontecimentos. Numa tão 
				lúcida quanto bela abordagem à sua produção poética, o poeta 
				José Bento referiu ser esta " expressão do homem que ele foi: há 
				um profundo paralelismo entre os seus poemas e os dias que ele 
				viveu". E mais adiante acrescentou: "A poesia de Cristóvam Pavia 
				é a revelação de si próprio, duma personalidade em conflito com 
				o mundo em que vive e em que procura uma fuga pela recuperação 
				da infância morta […]. Pode considerar-se a sua poesia uma 
				continuação e uma superação do espírito da Presença, a que não 
				podia deixar de sentir-se ligado por seu pai […]."
				
				
				Enquanto Francisco Bugalho demonstrava nos seus versos 
				reconhecer no filho não apenas o germinar de uma expressão 
				lírica fundamental mas também o continuador com novas planícies 
				para descobrir e editava, em 1947, o seu último livro 
				(Paisagem), Cristóvam Pavia passava no liceu pelo que 
				considerava ser " a horrível e impossível Arte Social". Num 
				poema intitulado Aspiração, desabafou: "Oh, ser eu qualquer 
				palerma/ Vestindo decentemente/ Viver sempre bem alegre/ E 
				agradar a toda a gente. / Ser um rapaz mais vulgar, / E deixar 
				as fantasias./ (Este sentir e pensar/ só serve para arrelias) / 
				E ser o campeão da bola/ Na equipa do liceu, / E ser o moço 
				estarola / que nunca se comoveu." . Neste singelo e muito 
				sincero poema encontram-se já expressas duas características 
				fundamentais da sua personalidade e que de forma marcante se 
				projectaram nos seus poemas: uma timidez profunda e algo doentia 
				e a inadaptação a conveniências sociais e literárias, derivadas, 
				a meu ver, do fascínio pelas vivências infantis e subsequente 
				tentativa de regresso à infância (mesmo que realizada apenas 
				através da reconstrução interior e espiritual das suas 
				coordenadas básicas), o esforço de um quimérico enraizamento num 
				paraíso que o poeta apercebia cada vez mais perdido. Estes 
				aspectos, bem como a sua grande religiosidade, são essenciais 
				para a compreensão da sua poesia e, talvez, de toda a sua 
				(curta) vida. Como fundamental é também um acontecimento que no 
				ano seguinte o marcou decisivamente: a morte prematura de seu 
				pai em 29 de Janeiro de 1949.
				
				 
				
				
				III
				
				
				Os poetas voltarão a ser o que nunca deixaram de ser: mandarins 
				inclinados sobre o mundo uns dos outros, balbuciando segredos.
				
				Jean 
				Cocteau
				
				 
				
				José 
				Régio foi uma das personalidades que apoiou o General Norton de 
				Matos na fase de ditadura mitigada a que correspondeu o período 
				da sua candidatura à Presidência da República. Planeando ir a 
				Beja ao comício que o candidato aí realizaria em 30 de Janeiro 
				de 1949, " uma ocorrência inesperada e dolorosa impedirá essa 
				viagem. Francisco Bugalho morre em Castelo de Vide no dia 29, e 
				José Régio vai acompanhar o corpo do camarada das lides 
				presencistas até à sua última morada. A amizade sobrepôs-se ao 
				ardor - se por acaso o havia - da luta politica."
				
				Para 
				Cristóvam Pavia foi um golpe duríssimo. Mais do que um modelo, 
				seu pai era para si o garante da permanência da sua infância, 
				pelo que o jovem poeta se sentiu como um garoto desamparado e 
				obrigado, em consequência, a assumir a sua "situação de adulto". 
				O braço forte do pai já não mais o poderia amparar.
				
				
				Aquele que se pensa ser o primeiro poema de Cristóvam Pavia 
				escrito após esse trágico acontecimento possui marginalmente uma 
				nota dolorosa: "Para ser lido muito devagar". Chama-se "Écloga": 
				"Na folha bailada, / levada / no vento, / vai meu pensamento. 
				/ Na cinza dolida, /espargida / pelo rio, / o meu olhar frio…/ E 
				no teu sorriso / da mais lisa / quietação, / o meu coração.". 
				Cito António Luís Moita: "Francisco Bugalho (que intuíra, num 
				poema escrito anteriormente, vir a chegar, sem dar por isso, ao 
				fim, sem viver o que quis) morrerá pouco tempo depois de ter 
				escrito Reverdecer. Mas a sua voz, ao calar-se, não fica de 
				facto silenciosa. Outra, dela nascida, vai iniciar uma rápida e 
				dolorosa ascensão, até atingir, nos seus melhores momentos - 
				como afirma José Bento - 'a mais funda expressão mística da 
				poesia portuguesa da segunda metade do século'."
				
				
				António Manuel Couto Viana, que com David Mourão-Ferreira e Luís 
				de Macedo dirigiu a revista Távola Redonda (1950-54; 20 números) 
				onde Cristóvam Pavia colaborou, dá o seguinte retrato do poeta, 
				um ano depois: "Tinha então dezasseis anos (menos 10 do que 
				eu), era alto e espesso, com uma face menineira onde um farto 
				buço aloirado destoava. Os olhos, límpidos, escondiam-se por 
				detrás dumas lentes grossas. […] Vestia de luto e, na lapela do 
				casaco, exibia um distintivo da Causa Monárquica. Falava com 
				frases curtas, rápidas, quase com brusquidão, num atropelo de 
				tímido. Olhava fixo, olhos nos olhos, acenando, violentamente, 
				com a cabeça, a uma concordância ou a uma negativa." . E 
				mais adiante, ainda: " Apesar da sua poesia adulta (adulta no 
				rigor com que se estreitam fundo e forma), Cristóvam não 
				passava, nessa época (e por quanto tempo ainda?) de um 
				adolescente." . É o próprio Cristóvam Pavia que conta a A.M. 
				Couto Viana a procura do estado de pureza, a busca insistente da 
				infância: "Sentia que o menino que fui estava irremediavelmente 
				morto, sentia uma grande saudade e ao mesmo tempo uma pena 
				enorme - é o único morto a quem ninguém põe flores, o único de 
				quem ninguém se lembrava, nem a mãe." . Na continuação deste seu 
				estado de espírito, surge o seu magnifico "Réquiem", dedicado ao 
				menino que habitava em si - e que continuaria a habitar.
				
				No 
				início da década de 50 os contactos com António Luís Moita 
				intensificaram-se e aprofundaram-se. Este poeta, conjuntamente 
				com António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Luís Amaro e José 
				Terra tinha fundado em 1951 a revista Árvore (1951-53; 4 
				números) - a cujo titulo tiveram de acrescentar "folha de 
				poesia", por o regime salazarista não permitir "a publicação de 
				colectâneas de versos ou prosas sob a designação de revistas" . 
				Cristóvam Pavia colaborou nessa revista, levado pela mão de 
				António Luís Moita. Nesse mesmo ano, este editou o seu livro 
				Rumor, aparecido sob a chancela das "Edições Árvore". O seu 
				poema Rumor: "Ah, que não venham lúcidos, falar/ localizar a 
				fonte da torrente…/ como podem sentir que há-de ser mar / esta 
				indizível, trémula nascente?/ Como podem sentir que há-de ser 
				mar/ este indizível, trémulo perfil?/ Ah, que não venham lúcidos 
				falar…/ Penso Dezembro quando canto Abril.".
				
				Os 
				contactos entre os dois poetas ganharam maior intimidade no 
				Verão de 1951:  “As formais visitas de família - que tinham 
				sempre lugar em Castelo de Vide - serviram-me de pretexto para a 
				aproximação. Eu mal lhe conhecia os versos; mas adivinhava, 
				naquele adolescente tímido, sempre fugitivo, um ser 
				invulgarmente sensível. Por gratidão à memória do pai, estendi a 
				mão ao filho. E ele acabou por aceitá-la, estreitando-a na sua. 
				Tinha, nessa altura, 17 anos e eu 25. A amizade que ligara 
				nossos pais iria - como veio a acontecer - apadrinhar a nossa, 
				prosseguir em nós. E, como era tradicional, cimentar-se nas 
				férias."
				
				Este 
				estreitar de laços tinha muitas vezes tradução em longas 
				caminhadas conjuntas pelos contrafortes da Serra de S. Mamede, 
				após o que os dois poetas conversavam sobre tudo um pouco. 
				Contudo, quando a conversa tocava o tema "Cristóvam Pavia", 
				este, sempre tímido e reservado, defendia-se, aflito: "Logo 
				escrevo e digo-lhe tudo!". Era através dessas epistolas - 
				cartas e postais - que Cristóvam Pavia deixava escapar um que 
				outro projecto, realizações ou estados de espírito. Estes, ora 
				pendiam para uma salutar alegria ora para a tristeza profunda, 
				numa rápida e desconcertante alternância de humores."Eis a 
				minha Vida: / Um sorriso entre lágrimas…/ Uma lágrima entre 
				sorrisos…/ E a Poesia pairando sobre tudo!", como ele mesmo 
				um dia afirmou num poema dedicado a David Mourão-Ferreira. Na 
				vida desse "poeta de fasto talento e nefasto signo" como lhe 
				chamou João Gaspar Simões, uma das maiores alegrias foi um filme 
				que certo dia viu em Lisboa, intitulado “O Retrato de Jennie, 
				"a coisa mais maravilhosa que conheço". A película, com Jennifer 
				Jones, Joseph Cotten e Lilian Gish, entre outros, é - 
				resumidamente - a história de um jovem pintor que encontra uma 
				rapariga de 13-14 anos, pela qual se apaixona. Contudo, se a 
				moça umas vezes lhe parece ser uma realidade, noutras parece-lhe 
				ser um sonho, nomeadamente porque nalgumas semanas envelhece 
				vários anos, tornando-se uma mulher. Este tema, tão caro 
				Cristóvam Pavia por coincidir com um problema pessoal de amor 
				escondido, movendo-se portanto entre o que é e o que não é, 
				entre a realidade e o sonho - que se expressaria também na sua 
				poesia, de forma nada sensual mas antes reflexo de um "amor todo 
				alma" - fascinara este eterno menino, ainda mais feliz quando 
				Sebastião da Gama, poeta que muito admirava, expressou opinião 
				idêntica à sua em relação ao filme. No entanto e ao contrário do 
				poeta de Estremoz, o jovem "Chico" António nunca encontrou 
				aquela pessoa que lhe "enchesse a vida" (sic), como ele 
				desejaria. Durante esse período de estreitas relações com 
				António Luís Moita, Cristóvam Pavia matriculou-se na Faculdade 
				de Direito de Lisboa. Certamente muito pouco identificado com a 
				temática do curso, o seu espírito dirigia-se continuamente para 
				as planícies tão suas. O poema Planície ("Das folhas dos 
				lameiros amarelos, / Da baixa neblina gotejante, / O manso 
				sortilégio veio chegando…/ E vós, Amigos, vós julgais-me aqui
				") tem a indicação marginal "Lisboa, Faculdade de Direito, 
				dia 9 de Novembro ou 10 de Novembro de 1951". Apesar desta sua 
				inadaptação, nos três anos seguintes persistiu em matricular-se 
				em Direito. Ao contrário de seu pai, não chegou a terminar o 
				curso. Em 1954, finalmente, matriculou-se na Faculdade de 
				Letras, em Filologia Germânica, curso que, aliás, nunca 
				completou já que, apesar de ter concluído a parte curricular, 
				não apresentou a tese então requerida.
				
				A 
				partir de 1954 o contacto de Cristóvam Pavia e de António Luís 
				Moita atenuou-se. Este último casara-se, pelo que Castelo de 
				Vide lhe começou a rarear, acabando por se frustrarem muitos dos 
				possíveis encontros. Em 1956 Cristóvam Pavia foi obrigado a 
				cumprir serviço militar em Mafra, enquanto António Luís Moita 
				deu à estampa o seu segundo livro, Teoria do Girassol. Com um 
				lirismo autêntico que continuou Rumor, expressa a meditação e 
				posterior cristalização de experiências e emoções - José Gomes 
				Ferreira dele disse um dia que "escrevia com a vida" - o que, em 
				meu entender, é o elo de ligação de toda a sua poesia, e que 
				igualmente explicará os seus por vezes longos silêncios 
				literários.
				
				
				Entretanto, em 1959, Cristóvam Pavia publicou o seu único livro 
				de poemas, a que simplesmente deu o título de 35 Poemas, tinha 
				então 25 anos. Morreria precisamente dez anos mais tarde. 
				António Manuel Couto Viana observou que a sua vida teve várias 
				coincidências deste género. Uma delas, prolongada no tempo, 
				relatada pelo poeta Nicolau Saião: seu tio Adolfo Bugalho 
				(médico, pintor e autor de apontamentos teatrais) com quem 
				Cristóvam falara várias vezes do seu interesse por ”O Retrato 
				de Jennie” e que aquele não tivera oportunidade de ver no 
				cinema, faleceu precisamente horas antes da sua única projecção 
				na RTP.
				
				Numa 
				critica ao livro, já após a morte do poeta, exactamente 20 anos 
				após o passamento de seu pai e 40 depois da estreia deste na 
				Presença, José Régio, que Cristóvam considerou "le plus grand 
				poète du Portugal", disse:"Antes de mais, autenticamente, 
				trinta e cinco poemas. Quero dizer que se me afigura impossível 
				possuir o sentimento da poesia e não sentir, ao ler essas 
				composições, que se está comunicando com um verdadeiro poeta. 
				Nem, de outro modo, haveria a comunicação. […] Como também 
				sucede com muitos outros, que a isso devem grande parte do seu 
				triunfo público e da sua força intrínseca, - da sua poesia 
				comunicativa - as coisas ditas no livro de Crist’vam Pavia foram 
				vividas." . É bem isto a poesia de Cristóvam Pavia: uma 
				nostalgia tornada comunicação. Apesar da sua timidez extrema, 
				tinha uma profunda necessidade de comunicar. Exemplo deste 
				imperativo foi o que ocorreu certa vez em Lisboa: viajando de 
				eléctrico avistou António Luís Moita, que passava. Distraído, 
				desceu impetuosamente do veículo em pleno andamento. Com 
				naturais consequências, que quase foram trágicas…
				
				E 
				José régio foi verdadeiramente imparcial na sua critica, uma vez 
				que já anteriormente havia elogiado a sua poesia, ainda antes de 
				saber ser Cristóvam Pavia o pseudónimo do jovem filho do seu 
				amigo e companheiro de Coimbra - uma vez chegou mesmo a fazê-lo 
				à mãe do poeta, quando ambos viajavam de comboio.
				
				O 
				vasto e complexo mundo interior de Cristovam Pavia, no entanto, 
				não se preenchia em pleno com este pseudónimo, tendo o poeta 
				sentido necessidade de escrever, mais tarde, também sob os "semi-heterónimos" 
				de Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha 
				Ferreira, " que traduzem, respectivamente, e grosso modo, um 
				humor anárquico e surreal, um erotismo exaltado e um 
				portuguesismo lorpa." . E Cristóvam Pavia, para além do 
				simples pseudónimo que impossibilitasse qualquer tipo de 
				confusão com o nome do pai, que significará? A opinião de 
				António Luís Moita sobre este assunto é bastante interessante. 
				Segundo ele, o nome de Cristóvam deriva de "Cristovão", santo 
				protector dos viajantes (dos caminheiros, portanto - e como ele 
				gostava de andar!) , terminando numa forma mais bela e inacabada 
				do que "Cristóvão", deixando assim tudo em aberto. Esta presença 
				do inacabado também aparecerá na escolha de Pavia (como diz o 
				provérbio, "Roma e Pavia não se fizeram num dia"). Seria 
				como se o poeta se reconhecesse como um homem em construção 
				permanente. Por tudo isto lhe chama António Luís Moita 
				"Caminheiro do Sonho". Como ele próprio refere, "toda a 
				grande poesia é ambígua, embora clara"…
				
				
				Cristóvam Pavia chamava aos poetas "mastigadores do mundo". Este 
				deixou na sua boca um travo amargo, suficientemente amargo para 
				nos primeiros anos da década de 60 o ter obrigado a alternar a 
				sua permanência entre Portugal e Haidelberg, na Alemanha - para 
				onde partiu em Agosto de 1960, aí trabalhando como ajudante de 
				pedreiro integrado numa cura psico-terapêutica. Pelo meio, 
				breves passagens por França e pela Suiça.
				
				
				Quanto a António Luís Moita, uma série de problemas pessoais 
				graves tornaram-no incomunicável e incapaz mesmo de escrever 
				durante vários anos, logo após a edição pela "Portugália" do seu 
				livro Sal (1962), que reuniu poesias de 1957 a 1961.
				
				
				Este, alguns anos mais tarde, ao folhear um jornal da tarde, leu 
				a notícia simples, fria e dura, da morte do amigo "Chico" 
				António, em 13 de Outubro de 1968, sob o rodado de um comboio, 
				em Belém. Morrera Cristóvam Pavia, por coincidência no mesmo dia 
				em que no Brasil falecera também Manuel Bandeira, um dos poetas 
				(se não mesmo o poeta) que o jovem mais admirava…
				
				 
				
				
				IV
				
				
				Por que tento durar/ além da minha morte?/ Num 
				
				
				
				poema ou num beijo/ Por que tento durar? 
				
				
				António Luis Moita
				
				 
				
				
				"A última imagem que retenho do 'Chico' António adulto é a de um 
				homem forte e grande que copiou do pai o bigodinho estreito. 
				Mas, ao fitar-lhe os olhos, é sempre o menino que me surge - o 
				mesmo que, vai para quarenta e cinco anos, vi em Castelo de 
				Vide, suspenso num pégaso de luz. O mesmo S. Francisco de Assis. 
				Sem a aptidão prática de Francisco Bugalho (aquela que permite, 
				a uma natureza invulgar, adaptar-se, sem grande sofrimento, ao 
				ramerrão e às arestas da vida) Cristóvam Pavia herdou do pai 
				toda a aptidão lírica - que viria a sublimar, mais tarde, 
				marcado o espírito por aquela aceitação de tudo ( expressão 
				insistente na sua poesia ) que só os eleitos são capaz de sentir 
				profundamente e transmutar em beleza.". 
				Apesar de, como diz António Luís Moita, os poetas terem sido 
				feitos para resistir, Cristóvam Pavia escolheu a "saída pelo 
				fundo" (expressão de um poema seu).
				
				
				Nicolau Saião é da opinião que Cristóvam Pavia optou pelo 
				comboio como forma de abandonar a existência devido ao facto de, 
				desde pequeno, se sentir fascinado por esta máquina, a qual 
				diariamente observava da Quinta da sua infância e na qual se 
				transportava de Lisboa a Castelo de Vide, ficando mesmo à sua 
				porta. Simbolicamente, foi essa a viagem derradeira, 
				mergulhando-o para sempre no mundo perdido. Realizou assim a 
				buscada consubstanciação " com a criança morta que trazia em si 
				e isso não o podia fazer sem caminhar definitivamente na morte 
				até a encontrar e serem um só, na unidade derradeira e total.".
				
				
				António Luís Moita, além de ter trabalhado numa empresa 
				petrolífera, foi membro da direcção da Associação Portuguesa de 
				Escritores e editou em 1985 o livro Cidade sem Tempo. Nele, além 
				da interessante incursão pela temática alquímica, nomeadamente 
				decorrente do contacto com o pensador Abel Teixeira, inclui um 
				profundo e comovente poema dedicado aos amigos Francisco Bugalho 
				e Cristóvam Pavia - Reencontro, de seu nome.
				
				Em 
				1991, o poeta participou em Portalegre no programa de rádio Mapa 
				de Viagens, realizado por Nicolau Saião ("Um Serão com Cristóvam 
				Pavia"), meses depois de haver publicado uma evocação deste seu 
				amigo num jornal de Castelo de Vide.
				
				Como 
				ele próprio disse, "mortos e vivos completam-se em 
				transmissão permanente, um fio que, embora invisível, se escuta, 
				para perdurar, aqui e além, em surdina".