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João Cabral de Melo Neto


 


O Rio - continuação

 



Terras de Limoeiro
 


Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
para amassar com sangue
os ossos duros desta terra.
E se aqui há mais homens,
esses homens melhor conhecem
como obrigar o chão
com plantas que comem pedra.
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.

Dias depois, Limoeiro,
cortada a faca na ribanceira.
É a cidade melhor,
tem cada semana duas feiras.
Tem a rua maior,
tem também aquela cadeia
que Sebastião Galvão
chamou de segura e muito bela.
Tem melhores fazendas,
tem inúmeras bolandeiras
onde trabalha a gente
para quem se fez aquela cadeia.
Tem a igreja maior,
que também é a mais feia,
e a serra do Urubu
onde desses símbolos negros.

Porém bastante sangue
nunca existe guardado em veias
para amassar a terra
que seca até sua funda pedra.
Nunca bastantes rios
matarão tamanha sede,
ainda escancarada,
ainda sem fundo e de areia.
Pois, aqui, em Limoeiro,
com seu trem, sua ponte de ferro,
com seus algodoais,
com suas carrapateiras,
persiste a mesma sede,
ainda sem fundo, de palha ou areia,
bebendo tantos riachos
extraviados pelas capoeiras.
 


De Limoeiro a Ilhetas



Deixando vou agora
esta cidade de Limoeiro.
Passa Ribeiro Fundo
onde só vivem ferreiros,
gente dura que faz
essas mãos mais duras de ferro
com que se obriga a terra
a entregar seu fruto secreto.
Passa depois Boi-Sêco,
Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas,
pequenos arruados
plantados em terra alheia,
onde vivem as mãos
que calçando as outras, de ferro,
vão arrancar da terra
os alheios frutos do alheio.
 


O trem de ferro



Agora vou deixando
o município de Limoeiro.
Lá dentro da cidade
havia encontrado o trem de ferro.
Faz a viagem do mar
mas não será meu companheiro,
apesar dos caminhos
que quase sempre vão paralelos.
Sobre seu leito liso,
com seu fôlego de ferro,
lá no mar do Arrecife
ele chegará muito primeiro.
Sou um rio de várzea,
não posso ir tão ligeiro.
Mesmo que o mar os chame,
os rios, como os bois, são ronceiros.

Outra vez ouço o trem
ao me aproximar de Carpina.
Vai passar chã, lá por cima.
Detém-se raramente,
pois que sempre está fugindo,
esquivando apressado
as coisas de seu caminho.
Diversa da dos trens
é a viagem que fazem os rios:
convivem com as coisas
entre as quais vão fluindo;
demoram nos remansos
para descansar e dormir;
convivem com a gente
sem se apressar em fugir.
 


Encontro com o canavial



No outro dia deixava
o Agreste, na Chã do Carpina.
Entrava por Paudalho,
terra já de cana e de usinas.
Via plantas de cana
com sua cabeleira, ou crina,
muita folha de cana
com sua lâmina fina,
muita soca de cana
com sua aparência franzina,
e canas com pendões
que são as canas maninhas.
Como terras de cana,
são muito mais brandas e femininas.
Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.
 


Outros rios



Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.
É o que contam os rios
que vou encontrando por aqui.
Rios bem diferentes
daqueles que já viajam comigo.
E estes também abraço
com abraço líquido e amigo.
Os primeiros porém
nenhuma palavra respondiam.
Debaixo do silêncio
eu não sei o que traziam.
Nenhum deles também
antecipar sequer parecia
o ancho mar do Recife
que os estava aguardando um dia.

Primeiro é o Petribu,
que trabalha para uma usina.
Trabalham para engenhos
o Apuá e o Cursaí.
O Cumbe e o Cajueiro
cresceram, como o Camilo,
entre cassacos do eito,
no mesmo duro serviço.
Depois é o Muçurepe,
que trabalha para outra usina.
Depois vem o Goitá,
dos lados da Chã da Alegria.
Então, o Tapacurá,
dos lados da Luz, freguesia
da gente do escrivão
que foi escrevendo o que eu dizia.
 


Conversa de rios



Só após algum caminho
é que alguns contam seu segredo.
Contam porque possuem
aquela pele tão espessa;
por que todos caminham
com aquele ar descalço de negros;
por que descem tão tristes
arrastando lama e silêncio.
A história é uma só
que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos
com seus fogos a morrer.
Nelas existe sempre
uma usina e uma bangüê:
a usina com sua boca,
com suas várzeas o bangüê.

A usina possui sempre
uma moenda de nome inglês;
o engenho, só a terra
conhecida como massapê.
E o que não pode entrar
nas moendas de nomes inglês
a usina vai moendo
com muitos outros meios de moer.
A usina tem urtigas,
a usina tem morcegos,
que ela pode soltar
como amestrados exércitos
para ajudar o tempo
que vai roendo os engenhos,
como toda já roeu
a casa-grande do Poço do Aleixo.
 


Do Petribu ao Tapacurá



As coisas são muitas
que vou encontrando neste caminho.
Tudo planta de cana
nos dois lados do caminho;
e mais plantas de cana
nos dois lados dos caminhos
por onde os rios descem
que vou encontrando neste caminho;
e outras plantas de cana
há nas ribanceiras dos outros rios;
que estes encontraram
antes de se encontrarem comigo.
Tudo planta de cana
e assim até o infinito;
tudo planta de cana
para uma sô boca de usina.

As casas não são muitas
que por aqui tenho encontrado
(os povoados são raros
que a cana não tenha expulsado).
Poucas tem Rosarinho
e Destêrro, que está pegado.
Paudalho, que é maior,
está menos ameaçada,
Paudalho essa cidade
construída dentro de um valado,
com sua ponde de ferro
que eu atravesso de um salto.
Santa Rita é depois,
onde os trens fazem parada:
só com medo dos trens
é que o canavial não a assalta.
 


Descoberta da Usina



Até este dia, usinas
eu não havia encontrado.
Petribu, Muçurepe,
para trás tinham ficado,
porém o meu caminho
passa por ali muito apressado.
De usina eu conhecia
o que os rios tinham contado.
Assim, quando da Usina
eu me estava aproximando,
tomei caminho outro
do que vi o trem tomar:
tomei o da direita,
que a cambiteira vi tomar,
pois eu queria a Usina
mais de perto examinar.

Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.

Muitos engenhos mortos
haviam passado no meu caminho.
De porteira fechada,
quase todos foram engolidos.
Muitos com suas serras,
todos eles com seus rios,
rios de nome igual
como crias de casa, ou filhos.
Antes foram engenhos,
poucos agora são usinas.
Antes foram engenhos,
agora são imensos partidos.
Antes foram engenhos
com suas caldeiras vivas;
agora são informes
partidos que nada identifica.
 


Encontro com a Usina



Mas nas Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.

Por esta grande usina
olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina
que toda esta mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
de brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a da pedra curta
furada de suor.

Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que, na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia.

E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora da vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
via morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, que visto.



Continuação


 

 

 


 

25/05/2006