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João Cabral de Melo Neto


 


O Rio - continuação

 



Da Usina a São Lourenço da Mata
 



Agora vou deixando
a povoação daquela usina.
Outra vez vou baixando
entre infindáveis partidos;
entre os mares de verde
que sabe pintar Cícero Dias,
pensando noutro engenho
devorado por outra usina;
entre colinas mansas
de uma terra sempre em cio,
que o vento, com carinho,
penteia, como se sua filha.
Que nem ondas de mar,
multiplicadas, elas se estendiam;
como ondas do mar de mar
que vou conhecer um dia.

À tarde deixo os mares
daquela usina de usinas;
vou entrando nos mares
de algumas outras usinas.
Sei que antes esses mares
inúmeros se dividiam
até que um mar mais forte
os mais fracos engolia
(hoje só grandes mares
a Mata inteira dominam).
Mas o mar obedece
a um destino sem divisa,
e o grande mar de cana,
como o verdadeiro, algum dia,
será uma só água
em toda esta comum cercania.
 


De São Lourenço à Ponte de Prata



Vou pensando no mar
que daqui ainda estou vendo;
em toda aquela gente
numa terra tão viva morrendo.
Através deste mar
vou chegando a São Lourenço,
que de longe é como ilha
no horizonte de cana aparecendo;
através deste mar,
como um barco na corrente,
mesmo sendo eu o rio,
que vou navegando parece.
Navegando Este mar,
até o Recife irei,
que as ondas deste mar
somente lá se detêm.

Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em que só o suor não secou;
e entra essa gente triste,
a mais triste que já baixou,
a gente que a usina,
depois de mastigar, largou.

Entra a gente que a usina
depois de mastigar largou;
entra aquele usineiro
que outro maior devorou;
entra esse bangüezeiro
reduzido a fornecedor;
entra detrás um destes,
que agora é um simples morador;
detrás, o morador
que nova safra já não fundou;
entra, como cassaco,
esse antigo morador;
entra enfim o cassaco
que por todas aquelas bocas passou.
Detrás de cada boca,
ele vê que há uma boca maior.
 


Da Ponte de Prata a Caxangá



A gente das usinas
foi mais um afluente a engrossar
aquele rio de gente
que vem de além do Jacarará.
Pelo mesmo caminho
que venho seguindo desde lá,
vamos juntos, dois rios,
cada um para seu mar.
O trem outro caminho
tomou na Ponte de Prata;
foi por Tijipió
e pelos mangues de Afogados.
Sempre com retirantes,
vou pela Várzea e por Caxangá
onde as últimas ondas
de cana se vêm espraiar.

Entra-se no Recife
pelo engenho São Francisco.
Já em terras da Várzea,
está São João, uma antiga usina.
Depois se atinge a Várzea,
a vila pròpriamente dita,
com suas árvores velhas
que dão uma sombra também antiga.
A seguir, Caxangá,
também velha e recolhida,
onde começa a estrada
dita Nova, ou de Iputinga,
que quase reta à cidade,
que é o mar a que se destina,
leva a gente que veio
baixando em minha companhia.

Vou deixando à direita
aquela planície aterrada
que desde os pés de Olinda
até os montes Guararapes,
e que de Caxangá
até o mar oceano,
para formar o Recife
os rios vão sempre atulhando.
Com água densa de terra
onde muitas usinas urinaram,
água densa de terra
e de muitas ilhas engravidada.
Com substância de vida
é que os rios a vão aterrando,
com esse lixos de vida
que os rios viemos carreando.
 


De Caxangá a Apipucos



Até aqui as últimas
ondas de cana não chegam.
Agora o vento sopra
em folhas de um outro verde.
Folhas muito mais finas
as brisas daqui penteiam.
São cabelos de moças
ou dos bacharéis em direito
que devem habitar
naqueles sobrados tão pitorescos
(pois os cabelos da gente
que apodrece na lama negra
geram folhas de mangue,
que não folhas duras e grosseiras).
 


De Apipucos à Madalena



Agora vou entrando
no Recife pitoresco,
sentimental, histórico,
de Apipucos e do Monteiro:
do Poço da Panela,
da Casa Forte e do Caldeireiro,
onde há poças de tempo
estagnadas sob as mangueiras;
de Sant'Ana de Dentro,
das muitas olarias,
rasas, se agachando do vento.
E mais sentimental,
histórico e pitoresco
vai ficando o caminho
a caminho da Madalena.

Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se filme de cinema;
via-me, rio, passar
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
vi o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.

Vi muitos arrabaldes
ao atravessar o Recife:
alguns na beira da água,
outros em deitadas colinas;
muitos no alto de cais
com casarões de escadas para o rio;
todos sempre ostentando
sua ulcerada alvenaria;
todos bem orgulhosos,
não digo de sua poesia,
sim, da história doméstica
que estuda para descobrir, nestes dias,
como se palitava
os dentes nesta freguesia.
 


As primeiras ilhas



Rasas na altura da água
começam a chegar as ilhas.
Muitas a maré cobre
e horas mais tarde ressuscita
(sempre depois que afloram
outra vez à luz do dia
voltam com chão mais duro
do que o que dantes havia).
Rasas na altura da água
vê-se brotar outras ilhas:
ilhas ainda sem nome,
ilhas ainda não de todo paridas.
Ilha Joana Bezerra,
do Leite, do Retiro, do Maruim:
o touro da maré
a estas já não precisa cobrir.
 


O outro Recife



Casas de lama negra
há plantadas por essas ilhas
(na enchente da maré
elas navegam como ilhas);
casas de lama negra
daquela cidade anfíbia
que existe por debaixo
do Recife contado em Guias.
Nela deságua a gente
(como no mar deságuam rios)
que de longe desceu
em minha companhia;
nela deságua a gente
de existência imprecisa,
no seu chão de lama
entre água e terra indecisa.
 


Dos Coelhos ao cais de Santa Rita



Mas deixo essa cidade:
dela mais tarde contarei.
Vou naquele caminho
que pelo hospital dos Coelhos,
por cais de que as vazantes
exibem gengivas negras,
leva àquele Recife
de fundação holandesa.
Nele passam as pontes
de robustez portuguesa,
anúncios luminosos
com muitas palavras inglesas;
passa ainda a cadeia,
passa o Palácio do Governo,
ambos robustos, sólidos,
plantados no chão mais seco.

Rio lento de várzea,
vou agora ainda mais lento,
que agora minhas águas
de tanta lama me pesam.
Vou agora tão lento,
porque é pesado o que carrego:
vou carregado de ilhas
recolhidas enquanto desço;
de ilhas de terra preta,
imagem do homem que encontrei
no meu comprido trajeto
(também a dor desse homem
me impõe essa passada doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta).

Vão desfilando cais
com seus sobrados ossudos.
Passam muitos sobrados
com seus telhados agudos.
Passam, muito mais baixos,
os armazéns de açúcar do Brum.
Passam muitas barcaças
para Itapissuma, Igaraçu.
No cais de Santa Rita,
enquanto vou norte-sul,
surge o mar, afinal,
como enorme montanha azul.
No cais, Joaquim Cardozo
morou e aprendeu a luz
das costas do Nordeste,
mineral de tanto azul.
 


As duas cidades



Mas antes de ir ao mar,
onde minha fala se perde,
vou contar da cidade
habitada por aquela gente
que veio meu caminho
e de quem fui o confidente.
Lá pelo Beberibe
aquela cidade também se estende
pois sempre junto aos rios
prefere se fixar aquela gente;
sempre perto dos rios,
companheiros de antigamente,
como se não pudessem
por um minuto somente
dispensar a presença
de seus conhecidos de sempre.

Conheço todos eles,
do Agreste e da Caatinga;
gente também da Mata
vomitada pelas usinas;
gente também daqui
que trabalha nestas usinas,
que aqui não moem cana,
moem coisas muito mais finas.
Muitas eu vi passar:
fábricas, como aqui se apelidam;
têm bueiro como usina,
são iguais também por famintas.
Só que as enormes bocas
que existem aqui nestas usinas
encontram muitas pedras
dentro de sua farinha.

A gente da cidade
que há no avesso do Recife
tem em mim um amigo,
seu companheiro mais íntimo.
Vivo como esta gente,
entro-lhes pela cozinha;
como bicho de casa
penetro nas camarinhas.
As vilas que passei
sempre abracei como amigo;
desta vila de lama
é que sou mais do que amigo:
sou o amante, que abraça
com corpo mais confundido;
sou o amante, com ela
leito de lama divido.

Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.

A não ser esta cidade
que vim encontrar sob o Recife:
sua metade podre
que com lama podre se edifica.
É cidade sem nome
sob a capital tão conhecida.
Se é também capital,
será uma capital mendiga.
É cidade sem ruas
e sem casas que se diga.
De outra qualquer cidade
possui apenas polícia.
Desta capital podre
só as estatísticas dão notícia,
ao medir sua morte,
pois não há o que medir em sua vida.

Conheço toda a gente
que deságua nestes alagados.
Não estão no nível de cais,
vivem no nível de lama e do pântano.
Gente de olho perdido
olhando-me sempre passar
como se eu fosse trem
ou carro de viajar.
É gente que assim me olha
desde o sertão do Jacarará;
gente que sempre me olha
como se, de tanto me olhar,
eu pudesse o milagre
de, num dia ainda por chegar,
legar todos comigo,
retirantes para o mar.
 


Os dois mares



A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.
 


Oferenda



Já deixando o Recife
entro pelos caminhos comuns do mar:
entre barcos de longe,
sábios de muito viajar;
junto desta barcaça
que vai no rumo de Itamaracá;
lado a lado com rios
que chegam do Pina com Jiquiá.
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.


Fim de "O Rio"

 

 

 

 


 

25/05/2006