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José Hélder de Souza

 

Soares Feitosa,
Uma poesia nova ou inovadora?


 

Chegaram-me às mãos, em novembro de 1994, por intermédio de Clóvis Sena, três cadernos de poesia, livros ainda sem aquela forma pela qual os conhecemos, saídos de tipografias.

Tais cadernos são assinados por Francisco José Soares Feitosa. Impressos em folhas de tamanho carta, saídas de uma moderna impressora, de computador ainda mais moderno, pelo visto do modo como estão feitos os volumes.

Percorrendo as capas internas, identificamos o autor: um filho de Monsenhor Tabosa, sertão central do Ceará, descambando para o vale do Acaraú. Feitosa, de profissão, é fiscal do consumo, que, inopinadamente, começou, na maturidade, (50 anos) a escrever poesia segundo as notícias inscritas nos cadernos de poesia então recebidos.

Entre muitas outras coisas para ler, ficaram lá sobre minha mesa os três consideráveis (em se tratando de poesia) volumes do novo autor, Soares Feitosa, nomes de famílias bem cearenses, ainda mais dos sertões do vale do Acaraú. Lá um dia, o sol planaltino me invadindo a sala com o mesmo esplendor das tardes do Ceará, começo a folhear os livros do Feitosa. Constato ou descubro - e numa leitura mais atenta, ser uma obra - nascendo (e em progressão ?) de temática essencialmente cearense, aquela velha história: da minha aldeia é que vejo o mundo, dita desde Heráclito e repetida por muitos Tolstois e Pessoas.

Começa-se pelo próprio título dos livros, “PSI, a Penúltima”. Depois de imaginosas alusões de Feitosa à forma do sinal alfabético grego - um I (ou uma estaca ?) atravessado por um meio-arco (por uma cuia ou forquilhas ?) em que ele vê “candelabro, fogo, luz, glória” quando grafado em maiúsculo e, “mandacaru, sofrimento, seca e resistência” quando tal letra aparece em minúscula. Feitosa aí envolve seus conhecimentos de grego de outras coisas - muitas - com suas vivências cearenses e em mergulhos nas profundezas pelágicas da infância.

Entram aí o épico anunciado junto ao título, de cambulhada com as mitologias - várias - especialmente dos sertões nordestinos, mas especialmente do Ceará, com as tragédias das secas, seus homens crentes nos santos e nas lendas como a da raposa maldita que tem três cabelos do demônio entre os pêlos do rabo, a se arrepiarem quando o bicho - apresentado no poema como um símbolo do sertanejo andejo, retirante e sofredor, vítima dos efeitos da seca - ao topar com o homem, animal capaz de lhe aumentar tormento, eriça o rabo e arrepia os cabelos diabólicos.

O poema adquire belezas telúricas quando o autor, um crente de São Francisco do Canindé, nos diálogos com a raposa, lembra aspectos bem cearenses da natureza. O poema refere-se à seca de 1993, e os sofrimentos do sertanejo fazem lembrar as bondades, o contrário da falta de chuva, as farturas das invernias quando florescem os maxixes e canapuns; verde por toda parte, várzeas, capoeiras e campos do sertão.

O autor aproveita bem, daquele modo telúrico e lírico, anteriormente anunciado na capa dos volumes, a temática da seca e faz da raposa arisca e fugidia a grande metáfora do exodus, “— já disse, vou fugir, é do meu destino, sempre fugi” - do homem nordestino, cearense, diante da inclemência da estiagem e da incúria dos incapazes de construirem o açude Castanhão para regularizar as águas do rio Jaguaribe ou dar melhor utilidade às águas do açude Orós concluído há mais de trinta anos, sem melhor aproveitamento.

Trata o tema com erudição, sem cair no eruditismo hermético; lembra traços da cultura ou da lenda helênica: Piros esturricando o sertão raposa-Ceará, no bochornal do seu chão.

Destaco em seguida, dentro da temática cearense, num dualismo constante - seca-invernia, chuva-estiagem, verdura-sequidão, miséria-fartura - neste primeiro livro de Soares Feitosa, o longo (e variado - em verdade, Feitosa é um grande inquieto a esvoejar por sobre todas as coisas, nunca se prendendo a uma trajetória linear) poema Siarah (grafia antiga do geônimo) de grande força épica de mistura com o lírico, o que não é fácil de realizar.

O poema, escrito em setembro de 1993, plena seca de um ciclo de quatro anos de estiagem, celebra a construção de um canal, a trazer águas jaguaribanas para o sistema Pacoti-Riachão de abastecimento de Fortaleza e circunvizinhanças.

Ciro Gomes, então governador do Ceará, é louvado indiretamente - louvo eu também, louvemos todos nós - por sua coragem de construir o Canal para não ver Fortaleza (belíssima) morrer de sede: “do alto deste barranco, mil Secas vos contemplam” - diz Feitosa, repetindo Napoleão (Soldados ! Do alto destas pirâmides, quarenta séculos vos contemplam ! - depois de conquistar o Egito) e aludindo à inauguração da obra, depois de noventa dias de trabalho de 24 horas por dia, uma epopéia!

Na criação poética de Soares Feitosa, dentro da temática cearense, com suas coisas, seus bichos - preás, jumentos, tejuaçus, cupidos, lavandeiras, sabiás (o passarinho e a árvore) - seus acidentes geográficos - a Serra das Matas, onde está a terra da infância do autor e que tem duas vertentes de águas: uma para o rio Acaraú, outra para o Rio Quixeramobim -, os rios Jaguaribe, Macacos, Aracati Mirim -, o povo e seus costumes, - Anísia, a mãe do poeta, vendendo latas d’água da cisterna -, destaco o poema Panos Passados, com linguagem tipicamente de nosso povo, a começar pelo título da peça -, onde reencontro as falas sertanejas das bandas do Acaraú, no inverno, as chuvas - ou no verão canicular, o sofrimento.

Lirismo que transborda, em Panos Passados, dos sertões e chega até a beira do mar, os ventos e as velas das jangadas. O poema desenvolve-se, ou se inspira, em versos de Luciano Maia (poeta meu muito apreciado), também cantor do cosmos cearense, em seu livro Memória das Águas.

Há na poética de Soares Feitosa, e muito neste poema Panos Passados, uma constante recorrência à infância, às imorredouras e, como tais, saudades dos tempos de menino: os deslumbramentos, não só diante das moças nuas, no banho de rio, como foi o de Manuel Bandeira, mas diante das coisas mais simples como os banhos de chuva, das primeiras águas de dezembro ou de janeiro, debaixo das biqueiras das casas e que chamamos de jacarés.

No seu fazer poético, Feitosa procura seguir uma das regras gerais de Heráclito: “o escrito seja fácil de ler e de recitar”, de bom entendimento para todos. É o que se verifica na maioria de seus poemas e, ainda como Heráclito, o afã de encontrar no efêmero o permanente.

No volume O Domador - Ritual Fire Dance - agradou-me o poema Menino do Balde, trabalho em que vejo também as preocupações sociais do poeta. Foi, me parece, otimamente (para não dizer perfeitamente, chegando aos extremos) realizado: de uma situação simplíssima, em que um outro não teria visto poesia alguma - um menino de rua, no Recife, subindo num balde para alcançar de um carro parado no sinal e vender o seu singelo trabalho de limpador - Feitosa como que tirou um poema que direi heróico, exaltando a valentia, a luta dos meninos abandonados.

Menino do balde é apresentado como um guerreiro, não obstante seu tamanho; é o herói de uma guerra diária, surda e implacável. O tema se repete ou continua nos versos de No Céu Tem Prozac, poema comovente, triste, a tristeza da nossa miséria, os meninos morrendo de fome nos braços das mães, a criança preferindo a morte, o céu, onde a mãe lhe diz que há pão, muito pão.

Encontramos, ao longo da obra o que ouso chamar de simbologia errática, sem mensuração anterior, sem compromissos com outras escolas, encontráveis como em poemas Evanescências (canto da Recusa) o Raso da Catarina, medonho deserto sertanejo, de mistura com o paraíso perdido, Milton e Dante.

Quero deter-me agora, em especial, no poema Format C dois pontos. É no meu entender, um marco poético, de uma nova era, uma cultura que estamos, neste fim de século, apenas penetrando, o da cibernética - aí vêm os gregos novamente -, da informática, a época dos computadores - ah! o velho latim computando outro tempo, mais moderno que nós!

Format C Dois Pontos é um poema pleno de originalidade. Não tenho conhecimento de outro qualquer versando tão bem sobre o uso e a linguagem, a terminologia própria dessas máquinas maravilhosas - os computadores.

O trabalho recende inteiramente ao novo, de novidade plena, o autor muito feliz no jogo de palavras, com os termos próprios dos programas de computadores. Soares Feitosa toma de uma palavra desses programas: delete, que segundo tais designações serve para apagar o que se errou na digitação do texto ou simplesmente para excluir do “arquivo” um certo trecho. O termo, latim puro, como muitos outros da linguagem dos computadores, é usado nesse poema para dar uma extraordinária visão (computadorizada ?) da humanidade, desde o homem pré-histórico até o inventor dos computadores mas que também fez a bomba e “deletou” Hiroshima.

É interessante como Soares Feitosa desenvolveu o tema em torno da trajetória do homem, usando os “artifícios”, a terminologia das caixas mágicas dos Personal Computers, os micros.

E, como não poderia deixar de ser, por entre os deletes, undeletes, enters, saves, copieds, formats ou bad command or file name, Soares Feitosa vai imprimindo seus conceitos sobre o mundo e seus filhos, ora bons, ora “apagadores”; e mais, suas lembranças do mundo cearense até chegar ao micro cosmo do nosso Sobral, no meio do sertão do Acaraú. Inovou.
 


 

Soares Feitosa

Leia obra poética de Soares Feitosa

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Anderson Braga Horta