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Jornal do Conto

 

 

José Geraldo


 

Firmeza de ponta a ponta

 

Plenamente consagrado como um dos nossos melhores prosa­dores contemporâneos, Caio Porfírio Carneiro publicou, em 1995, A Partida e a Chegada, seu décimo terceiro livro de prosa de ficção e nono no gênero da narrativa curta. São doze histórias que o homem que fuma cachimbo conta a seu interlocutor, em uma noite de Lua cheia, as quais constituem o desenvolvimento de um resumo que precede a narrativa propriamente dita, estando dito material dividido em cinco partes, na primeira e na última das quais se desdobra o título do livro. Exceção feita às duas partes extremas (ambas integradas por um título) os contos agrupados apresentam traços comuns e, de certa forma, identificam-se quanto aos temas em que se apóiam.

Em A Partida, em que apenas um conto, A Carícia, num bem sucedido assalto a uma agência bancária, um dos protagonistas, ao término do serviço, e enquanto seu comparsa se retirava, faz com que todos se deitem no chão, e cede à tentação de alisar as pernas de uma funcionária, que aborda mais tarde, num bar nas proximidades do Banco. Combinam encontrar-se dias depois no mesmo local e ela, ao despedirem-se, relembrando as carícias em suas partes íntimas, tem uma intuição de que foram feitas por ele e denuncia-o. No dia do encontro combinado, arma-se uma operação para capturá-lo, mas ela se arrepende e ao vê-lo faz um discreto sinal para que não se aproxime.

Na segunda parte — Últimas Esperanças — os três contos se caracterizam pela falta de uma lógica consistente, do que colhemos exemplo em Dueto, quando as duas únicas personagens, gente da roça, sem instrução e portanto sem condições e sem interesse por assuntos que tais, discutem política econômica no exato momento em que vão iniciar um relacionamento amoroso, e entendemos que, de forma mais consistente, se caracteriza no fecho de Sarapanga, quando, morta a personagem-título, reunida na praça, a multidão (hipotética, naquele lugarejo) orou por aquele homem de cem anos, que subia aos céus no carro de Elias.

Na terceira parte está o ponto alto do livro. São três contos enfeixados no subtítulo Memórias de Agonias, os quais, inclusive pela epígrafe que lhes é comum — Eu não conto narro. Não invento foi — têm tudo para constituírem-se na realização literária de acontecimentos vivenciados pelo ficcionista que, com seu livro anterior — Reminiscências — dá conta a seus leitores que não é indiferente à literatura memorialística. Mas o que se nota em O Crime, A Retirante e O Acidente é urna tensão, ou densidade dramática, não encontrada no restante do volume, salvo no último título. E o que há é uma constante de mortes — do padre (violentamente assassinado), da retirante (que sozinha, não resiste ao parto, acontecido sob a sombra minguada da canafístula) e do quitandeiro (que numa manhã de chuva, escorregou ao pular do trem em movimento em que habitualmente subia e descia para cumprimentar os passageiros e resvalou para os trilhos) — e de cruzes, fincadas por mãos piedosas, para marcar os lugares fatídicos. Memórias de Agonias é o único segmento do livro em que a ação se passa em espaço caracterizado: — Caucaia, com menção a Fortaleza e Juazeiro, em O Crime; — Fazenda do Pau Caído, com referência a Santana, Serra Verde, Sobral e Camocim, em A Retirante; — Fortaleza, com citação de Porangaba, Baturité e Otávio Bonfim, em O Acidente. Todos esses pontos situam-se no Ceará, estado natal de Caio Porfírio, que, em A Retirante, além de fazer menção expressa à família Carneiro, que é a sua, e aos parentes Araújo e Cavalcante, conduz mais claramente o leitor ao caráter autobiográfico da narrativa, ao dizer: Mariquinha gerou dez filhos, o sexto deles este autor, que ouvia, desde tenra idade, a mesma repetida história. Mas isso, além de mera especulação, é extra-literário...

A quarta parte, Carências , compõe-se de quatro contos, em três dos quais ocorrem ligações sexuais entre adolescentes, no plano do fenômeno sócio-familiar contemporâneo da liberação feminina, tratada em Os Dois e Noite, em termos de licenciosidade. Em Os Dois, um par de estudantes de segundo grau vai passar os três dias de um feriadão na casa do pai de um amigo do rapaz, sendo que a moça, na faixa etária provável dos dezessete anos, não encontrou maiores dificuldades de convencer a família de que ia com umas amigas a Campos de Jordão. Em A Vizinha, depois de alguns encontros, a moça da casa ao lado, por telefone, pede ao rapaz que vá a seu encontro, porque tinha uma coisa a lhe dizer. Estava só, levou-o ao seu quarto e, quando pediu que ele se vestisse porque seus pais não tardariam, revelou que no dia seguinte iria de mudança para o Norte. Na mesma tônica de uma personagem passar a viver em outra cidade, em À Sombra da Árvore, o rapaz passa a seguir e, mais tarde, a sonhar com a moça que viu descer a calçada e a calcinha para urinar no mato, até que fica sabendo, pela própria mãe, que o pai dela, que era médico, tinha-se mudado com toda a família, visando a clinicar na capital. Em Noite, enquanto espera o sinal abrir, o rapaz convida a moça para sentar-se ao seu lado. Praticam sexo no veículo, na boate e no mato, bebem em alguns bares e nisso passam a noite. Ao amanhecer, ele deixou-a no mesmo ponto em que a vira. Se em nenhum dos quatro contos da série se faz menção ao nome dos protagonistas, aqui fica expresso que um não chegou a saber o nome do outro.

Em A Chegada, quinta e última parte, a exemplo do que ocorre com a primeira, há apenas um conto, A Disputa, em que se relata que, ao entardecer, no casarão de onde lembrava-se ter sido retirado um dia, após uma morte trágica, e que se defrontava com a casa em que morava, o menino via um vulto feminino. A aparição resiste a tudo, inclusive ao exorcismo levado a efeito pelo Bispo e, diante desse insucesso, uma tarde, o pai se dá por vencido e (numa atitude oposta à que até então adotara) autoriza o filho a caminhar em direção ao vulto, que chama por ele. O menino entra no casarão, que afirma ser — meu velho conhecido, para meu próprio espanto — e diz: —Voltei, mãe. Mãe, voltei. E assim talvez se conte como o espectro vence a disputa pelo filho.

O mais, é enaltecer o vigor de expressão, o poder de síntese, a habilidade de tratar ambientes e personagens, que fazem de Caio Porfírio este ficcionista que o Brasil tanto admira.
 



Caio Porfírio Carneiro
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