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J. Romero Antonialli


Uma análise do poema Ritmo, de Mário Quintana

 

Ritmo
Mário Quintana
 

Na porta

a varredeira varre o cisco

varre o cisco

varre o cisco
 

Na pia

a menininha escova os dentes

escova os dentes

escova os dentes
 

No arroio

a lavadeira bate roupa

bate roupa

bate roupa

 

até que enfim

             se desenrola

                           a corda toda
e o mundo gira imóvel como um pião!


1 - GARIMPANDO ...

Vamos, agora, a fim de pôr a descoberto alguns pontos de estranhamento, apresentar duas versões “normalizadas” do poema, com base num paralelismo construído a partir da estrutura estrófica geral:

RITMO

Na porta

a varredeira varre o cisco

varre o cisco

varre o cisco
 

Na sala

a escovadeira escova o piso

escova o piso

escova o piso
 

No tanque

a lavadeira lava a roupa

lava a roupa

lava a roupa
 

até que enfim

             chega a seu cabo

                          a faina toda

e o mundo gira célere como um pião!

 

RITMO

Na porta

a varredeira varre o cisco

varre o cisco

varre o cisco
 

No tanque

a lavadeira lava a roupa

lava a roupa

lava a roupa
 

No quintal

a capinadeira capina a terra

capina a terra

capina a terra
 

até que enfim

             chega ao término

                             a labuta toda

e o mundo gira plácido como um pião!

A um ler desatento ou descompromissado, pouca ou nenhuma mudança as versões acima teriam provocado no nível essencial do poema: o fundamental estaria preservado, em seus aspectos fundamentais, no todo da mensagem veiculada. Apenas, haveria ligeiras transformações no nível mais superficial do texto, transformações que não afetariam, de maneira significativa, o conteúdo básico daquilo que o poeta buscava exprimir.

Mas, não nos esqueçamos: estamos diante de um poema. De um poeta, de um senhor poeta! Uma pessoa a quem a palavra é algo quase sagrado, a quem cada palavra tem uma realidade única, singular, mergulhada nos mesmos mistérios do Verbo! Para ele, não há diferenças pequenas, não há diferenças grandes: o que há são diferenças, marcas únicas e profundas de identidade que se manifestam através, não de marcas evidentes, mas de marcas, às vezes, extremamente sutis.

Vejamos, agora, a estrutura básica do poema:

Æ Na porta a varredeira   varre o cisco   Æ  (*)
Æ Na pia a menininha   escova os dentes   Æ  (*)
Æ No arroio     bate Æ roupa   Æ  (*)
                

até que enfim

Æ a corda toda   desenrola   se   Æ  (**)
      e        
  Æ o mundo   gira        imóvel ...
                 como um pião

 

Vemos, agora, que a alternativa lavar seria pouco mais que redundante, quanto a este aspecto, e que bater, pela sua dinâmica única (o sentido vertical do movimento), deve ter sido escolhido por alguma razão bastante ponderosa!

Uma mola que se desenrola baseia-se em um impulso; um fato que se desenrola é um fato que se estabelece; um pergaminho que se desenrola vai revelando cousas antes ocultas ...

Mas, continuemos, em nossa lide (fascinante) de garimpeiros ...

Algo que podemos notar, sem muito esforço (depois de dito, insere-se na categoria do “óbvio ululante!), é que:

A vassoura é feita de cerdas.

A escova é feita de cerdas.

A roupa é feita de cerdas!

E a corda do nosso poeta também é feita de cerdas! Das cerdas - entrançadas, confundidas, confusas - da vassoura, da escova e da roupa. Uma corda bastante peculiar, não há dúvida nenhuma!

E o mundo é propulsionado, tal como um pião, por esta corda de  fibras entrelaçadas, que têm origem em três planos:

n     no plano da varredeira;

n     no plano da menininha;

n     no plano da lavadeira.

Examinemos a questão dos artigos:

  • Para a varredeira, o cisco. Pode   até ser dela. Sendo singular, tende para a unidade, para o pouco.

  • Para a menininha, os dentes. São dela. Sendo plural, tende para  o muito.

  • Para a lavadeira, Æ  roupa. Não é dela. Sendo nada, para o nada tende.

Uma última consideração. O poema todo se organiza num ritmo ternário, tanto num plano formal, como num plano semântico. E é exatamente este seu caráter que permite um aprofundamento cada vez maior em direção à inesgotabilidade de sua mensagem.

 2- ORGANIZANDO O GARIMPADO

A corda que impulsiona o mundo normalmente se apresenta enrolada, ocultando-se a si mesma, em suas particularidades mais marcantes. E é representada por três segmentos altamente significativos, os quais a fazem inteira. Estes são os três segmentos essenciais a que podem ser reduzidos todos os demais. É neles que está a chave para se entender a corda. E, para isso, mister é estendê-la, desdobrá-la, desenrolá-la.

O poeta, ao desenrolar a corda, com grande esforço, para não deixar se iludir pelo aparencial, logo se depara com um segmento que ele representa pela varredeira, que se acha cognatamente dedicada a seu ofício. Logo a seguir, encontra a menininha  e não uma outra -eira  ou -deira da vida. E, finalmente, tem de voltar ao -deira, chegando à  lavadeira.

 Podemos notar que  o segmento nuclear, que está no centro, é a menininha, que quando faz, faz para si mesma, em um investimento pessoal (de algo que não pode ser delegado). Para a menininha, o mínimo  trabalho, e só em benefício direto próprio. E isso em um lugar altamente reservado. É menininha: uma aura afetiva a envolve. É menininha: é frágil, necessita de proteção.  É menininha: é um ser de pouco significado, de pouco peso, na ordem das coisas: o que faz ou pensa não tem qualquer reflexo no mundo. E quem é, na ordem das coisas, a menininha? - Não a patroa de hoje, mas a de amanhã: a garantia de que o mundo girará, sim, mas para ficar imóvel, para permanecer imutável no âmbito de suas relações fundamentais.

A menininha não precisa fazer para ser, para entrar na posse do poder. É na pia (batismal) que lhe é conferido o  poder hereditário de comer, de consumir, de exercitar os dentes em tudo que lhe aprouver. Limpamente, sem se deixar manchar, sem jamais ter do que se envergonhar por isso. (E haveria a consciência de crime de lesa-      humanidade naquele que, dominado pela ambição desmedida, ou pela ambiência da ambição desmedida - aqui a força do artigo os  -  condena seu semelhante  à miséria?)

O segmento “de cima”, periférico em relação ao núcleo, é representado pela varredeira, que se avizinha da casa (está-lhe à porta), não para dela desfrutar, mas para mantê-la em ordem para outrem. Para ela, que varre, o cisco, a sobra, aquilo que pode ser jogado fora por imprestável. Para ela o pouco, o minimamente suficiente.

Mas, tanto para a menininha como para a varredeira, o ritmo ternário (de começo, meio e fim), sendo o começo igual ao fim (num perpétuo girar vicioso), se processa num plano horizontal, sintagmático, de contigüidade pacífica, em que ambas experimentam um certo tipo de posse. Para uma, com a posse centra da no os  (no plural, no muito), predomina o movimento para dentro, de acumulação para si mesma. Para a outra, com a posse centrada no o (no singular, no pouco, no mínimo, no “mínimo”!), predomina o movimento para fora, para lá de quem faz, fazendo pouco para si (e muito para o outro).

O outro segmento, o “de baixo” (absolutamente de baixo), situado num plano periférico, marginal, inferior, distanciado da casa e das relações do poder (do poder ter, sem pouco ou nada fazer), apresenta um ritmo também ternário, mas num sentido vertical. (Bate roupa usa o poeta! Poderia ter usado lava, mas não o fez, desprezando uma solução mais simples e direta - e de alto potencial poético!)

 A lavadeira, que representa os totalmente despossuídos, tem, em relação ao girar imóvel do mundo, um ritmo que, processando-se num plano vertical, lhe permite contemplar o alto e o baixo, opondo-se, destarte, drasticamente, aos dois dois segmentos anteriores.

Aqui, o nível paradigmático, que poderia propiciar substituições, movimentações, alterações no quadro do status quo. O segmento correspondente a este nível poderia fazer alguma coisa, mercê da alta consciência descompromissada de vida de que é portador, mas não o pode, já que, relegado à margem do arroio, não faz parte do seu fluxo vital. Da margem, tem uma vista privilegiada do arroio, mas nada pode fazer em relação à maneira como flui, mesmo porque não flui para ele, o marginalizado.

O ritmo vertical do bater, enfatizando o esforço, a força, o poder, a potência, mostra que é neste segmento que jaz inerte um alto potencial megatônico de mudança. E o que é preciso para que este poder entre em erupção, redimindo a miséria total em que milhões de humanos malvivem? O patético do homem-gabiru, dos meninos que moram em cloacas, de homens que revolvem lixos e lixeiras em busca de detritos repugnantes que possam mitigar-lhes horrendamente a fome?

E nas margens da vida, os miseráveis sem opção vão batendo, surrando, puindo os escassos trapos com que se cobrem , acossados pelo vergastar incessante (ternariamente eterno) da fome, do frio, da morte. (É isto que sugere o movimento de bater, de subir e descer, batendo e espancando.

Assim, no mundo, na sociedade humana  -  humana (? ) -  há três patamares, três degraus:

Caixa de texto: o dos que têm;
Caixa de texto: o  dos  que  fazem, para que os
que têm tenham cada vez mais;
Caixa de texto: o dos que  estão à  margem,  alijados do
esquema  (porque supérfluos?).   Os que
realmente  sentem,    na ausência de qual-
quer artigo, a grande injustiça do mundo.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois desse estrênuo desenrolar da corda, o poeta pode dizer: “até que enfim”! Análise feita, nada mais há para se dizer de substancial.

Assim como a cordinha, ao desenrolar-se, faz girar o pião, assim também o desenrolar de toda a corda (em seus três segmentos essenciais) faz com que

n     através das cerdas fortes que estão na vassoura,

n     através das cerdas frágeis que estão na escova;

n     através das cerdas frouxas que estão na roupa,

       o mundo gire com um objetivo: para que nada mude.

O verbo desenrolar, no poema, se reveste de três sentidos:

1)    acontecer;

2)    propulsionar;

3)    revelar,

que se relacionam, respectivamente, com o alienamento da menininha, com o fazer não-para-si da varredeira, com o desvelamento cru da injustiça do mundo, que se mostra em toda sua terrível força na lavadeira.

As coisas meramente ACONTECEM, num processo natural (aparentemente) de adição, de agregação, de acumulação, para uns. De aqui, a força aditiva do e, do único e em todo o poema.

As coisas se REVELAM em toda sua crueldade, mas isso não é o suficiente para que se detenha, ou mesmo se atenue, o processo:  a consciência das menininhas e também das varredeiras parecem estar anestesiadas. De aqui, a força adversativa (intensamente dramática) daquele e.

As coisas se PROPULSIONAM, são propulsionadas, são feitas por alguém que pode fazê-las. Se algo existe, como expressão cultural, é porque alguém o fez. E é dentro desta óptica que repousa a grande justificativa para os desencontros e desequilíbrios do mundo. Ideologizado, o conceito passa a subjazer a toda explicação das desigualdades sociais: a causa do que acontece no mundo tem origem no esforço que cada um despende (ou despendeu) na vida, aproveitando a sua liberdade de iniciativa. Os ricos muito fazem (ou fizeram) e com muita eficiência; os remediados pouco fazem, com pouco se contentando; os miseráveis nada fazem, por isso que são descartáveis. A causalidade se absolutiza. De aqui, a força explicativo-causal daquele e.

                                                                                      
                                                              --------->  VASSOURA (instrumento)
 MUNDO ----->  CORDA -------> CERDA --------->  ESCOVA     (instrumento)
                                                               ---------> ROUPA        (instrumento)

  • A menininha tem instrumento, mas não quer que nada mude.

  • A varredeira tem instrumento, e bem mais forte que o da menininha, mas foi cooptada  por ela.

  • A lavadeira poderia provocar mudanças, mas não tem instrumento.
     

No dia 04/05/93, no Largo do Paissandu, em São Paulo, por volta das 21 horas, um homem em cerdas puídas, junto de sua desconjuntada carrocinha-albergue. E em cima da carga de coisas jogadas fora que amealhara, um cartaz em letras bem grandes e nítidas e negras:

NÓS TEMOS O DIREITO DE VIVER!

Aqui, talvez, o esboçar-se de um instrumento ...
 


Mário Quintana
Leia ao obra de Mário Quintana
 

 

 

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Marco Lucchesi