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Izacyl Guimarães Ferreira


 


Tratamentos do real e do imaginário



 

Ivan Miziara é um poeta maduro, com cinco livros publicados entre 1981e 2006, todos em constante diálogo com grandes autores – através das epígrafes e eventuais alusões. E seja qual seja a matéria com que o poeta trabalha - amor, vida, morte, memória – ele acentua a consciência de estar escrevendo, de estar procurando e encontrando as raízes de sua poesia na realidade que o circunda, no “cotidiário”, bom neologismo que titula seu primeiro livro.

Neste, com fotografias de Bruno Caramelli (como a apoiar-se nas fotos para com elas prender-se à realidade), diz no primeiro poema, de título “Preferências”:

Ser poeta é de ofício
das mais altas preferências
- um lenço de estribilho
um maço de rimas nobres
um pedaço de quadras e
sonetos
um facho de verso escoimado
Pode até ser palavra
descabelada e solta
na página em branco
Porém, no entretanto,
eu só faço uma exigência:
no verso eu prefiro sempre
a carcaça da vivência

 

Mais adiante, no poema “A borboleta”, em que acompanha a luta do bichinho para sobreviver e quer vê-la como Nijinsky rasgando as veias absurdas do ar, termina por assistir que ele persiste aos trancos (numa) esperança claudicante. Como a borboleta o poema é para ele “ave ferida”, o poeta diz a Deus que o verso é duro. Diz mais: ora o poeta é louco. Ora é cego. Mas se engana. O olhar é seu sentido essencial. Ver é dizer.

Porque nestes primeiros poemas bem como nos seguintes, Ivan Miziara jamais descrê da poesia, de seu poder de nomeação e de revelação. O que no percurso de 25 anos até agora está mudando é seu tratamento da realidade. Sem que haja perda do “cotidiário”. O quotidiano, menor, e a contingência maior, do viver, sublinham sua poesia, numa evolução que é de formas e de percepção do mundo, presente sempre sua consciência do afazer poético.

Se na estréia a realidade é tratada com apoio no espelho das belas fotos de Caramelli, já no segundo livro, “Vestígios & Resíduos”, ainda dos anos 80, entra em cena a memória, há um certo desencanto com as coisas, e as fotos dão seu lugar a outras formas das artes plásticas. Setores do livro são chamados de “estudos para aquarelas”, “oil on canvas”, “guache em papelão”, “spray na parede do metrô”. Parece clara de novo sua adesão à visualidade, à tentação de mostrar, com a magia da palavra / a vida recriada. Digo mais: sua poesia é como seu respirar; não pensamos estar respirando, mas viver é respirar, e não concebo Miziara em silêncio. Ver, escrever, carregando o que dizia ao começar, carregando a carcaça da vivência.

Vivência é o “assunto” desse livro de vestígios e resíduos. Já dizia alguém, um poeta, que “não se pode enganar a linguagem”. Ou a memória. Se esta pode aparecer modificada, a imagem está no centro da distorção, que será mentira ou arte, esta forma de transformar o possível, o perdido, o confuso e o improvável em verdade. A partir daí e nesse livro a realidade que verá Miziara será outra. Pois mudou a lente com que escreve.

E temos o terceiro livro: “Inventário da luz”. Belo título, com a epígrafe muito adequada de Fernando Py: “Irradiante é essa luz /concentrada no olhar”. Os poemas falam de geometria de reflexos, luz que se desmancha em graves matizes, cor do silêncio. Miziara “conversa” com Hilda Hilst, Adélia Prado, Ana Cristina César, Denise Leverov e Robert Lowell, em poemas curtos, contrastando com os do livro anterior, mais “soltos”, e a luz inventariada é sobre o amor, num lirismo contido e vigiado. Uma tal mudança revela a contínua busca do poeta.

Já de 2006, o quarto livro se chama “Pela água”. Entre muitos textos breves, aparecem os agora habituais poemas seqüenciais, numerados, e prossegue o diálogo com grandes nomes. Ao Brecht da estréia se somam Paz, Dylan Thomas, Eugenio de Andrade, Sylvia Plath, entre alguns outros. Além do clima que as epígrafes prenunciam, há na presença desses nomes uma indicação de leituras, sobretudo chaves para a compreensão da poesia de Miziara, que vem se tornando algo enigmática nestes anos zero do novo século. Não que “Pela água” seja hermético. Continua aqui a clareza típica do poeta, havendo só um começo da dificuldade com que o último livro, “Elegias”,também de 2006, nos irá surpreender.

O ganho aqui é do domínio vocabular, do enjambement, um tom de fala que já vinha do primeiro livro e se escondera um pouco no “Inventário da luz”. Abertamente lírico, o amor domina a temática dos poemas. São de especial interesse as séries “Considerações acerca da manhã”, “Pelo fogo”, “Pela água”,”As mãos espalmadas” e os “Sonetos de traição e separação”. O interesse está na seriação, na abordagem dos temas ora por distintos ora por contíguos ângulos. E pela naturalidade da fala, da conversação com a amada, ou com quem o poeta dialoga, o costumário tu da poesia. A tônica anterior da visualidade não se perde, apenas se dilui. A mudança é de tratamento do real. Há mais abundância de metáforas, mais presença do imaginário. E um aprofundamento do afetivo, algo apenas esboçado na memória tratada no segundo livro – ali descritivo, aqui interiorizado, salvo erro meu. Não obstante, há no livro alguns poemas bastante visuais, que diretamente nomeiam lugares, no setor “Náufragos”, que alinha esparsos e não séries, como as citadas.

A maior mudança ocorre nas “Elegias”. Em companhia de Eliot, Lorca, Dante, Platão,Guilllevic, Borges, penetramos numa área bem diferente do fazer de Miziara. Mais sombra que luz, mais indagações que indicações, e outra forma de escrever. Blocos compactos de versos carregados de um
mistério envolvente, uma realidade refratada por um imaginário inquisidor de sentidos, um aprofundamento das naturais angústias, ou das incertezas vitais do homem. Se o eu marcava a estréia, se o tu foi habitual nos outros livros, neste, apesar do direcionamento destes pronomes aparecer com frequência, a voz dominante é o nós.

Pelo imaginário desentranhado da realidade pela palavra um poeta atinge a universalidade. Também aqui, neste livro, Miziara é plural, mais que antes, pois nunca mostrou-se introvertido: sua poesia, mesmo quando na ótica subjetiva do jovem, sempre buscou a comunicação, através da amostragem do dia, da revelação do outro, da fala amorosa que não se clausura entre quatro paredes, mas, sendo pessoal, não é impessoal.

No entanto, “Elegias” é livro que requer leitura pausada. As imagens são terrestres, as preocupações são as do ser humano. A morte é personagem constante. O poeta escolhe e acolhe o diálogo, há uma dor cósmica apenas revelada nos versos curtos quase truncados, na vertiginosa imagética dessa fala que percorre todo o livro, até os “Onze sonetos sem sentido” que o fecham. É de Borges o tom: “Deus move o jogador, e este, a peça”.

Alguns versos:

Da beleza nasceu o verso
E todas as coisas que não são
Coisa. Como o réptil verbo,
No princípio um camaleão.

Noutro soneto, entre os onze em que predomina a preocupação com a vida,
seu sentido, indagará:

Onde está a dor inútil e muda
Rangendo no peito?
.....................................................

Concluirá:
Ó dor que só em meu corpo medra

E em minha carne faz a festa.
Tenho a vida diante de mim,
A angústia e um sofrer sem fim.

 

Há leitores que querem conhecer a vida do autor, para entender a origem dos textos. Não vejo esta necessidade. Aceito o escrito sem procurar saber o que o motivou. Basta-me a comunicação, quando há. Pode-se pensar em perda pessoal ao ler “Elegias”. Pode-se pensar que todos tivemos, teremos perdas. Um livro de poemas não deve ser lido como se fosse uma biografia. Bastam a beleza, a força, a qualidade do texto. Este livro se encerra com um soneto duro e universal. Com ele encerro minhas anotações de uma leitura que me revela um poeta que deve ser levado em conta.

O sonho que, à noite movimenta as
Incontáveis hélices do Universo;
Pá que faz girar o pó, as tormentas
E todas as arruelas do Tempo;
Prisma inconcebido de luz e trevas,
Ar e aguardente, cópula dos deuses;
Giramundo que nos encanta e leva
Num passeio, entre nuvens, solitário;
O sonho que elide a farsa e a palavra
E todos os símbolos reais ou irreais
É a luz da Natureza, uma cascata,
Um turbilhão, uma correnteza
Que, ao nos carregar, é revelação:
Já não somos mortais – só surpresa.

 

 

 

 


 

25/01/2007