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                  Izacyl Guimarães Ferreira 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
            Ferreira Gullar e a poesia 
			necessária 
			 
			Homenagem aos 75 
			anos do poeta ( setembro de 2005 ) 
			 
			 
  
			
            Há poetas cuja obra constitui um mundo 
			pessoal, fechado em si mesmo, seja pelos assuntos – memórias, 
			sentimentos, flagrantes – seja pela dicção que os molda. Não importa 
			se são grandes poetas ou não, se comovem o leitor com maior ou menor 
			intensidade. Podem ser de agora ou de antes, contemporâneos ou 
			históricos. São sua obra, digam o que digam, valham o que valham, 
			para o leitor ou a crítica. 
			
            Tal fechamento, entretanto, não impede 
			a excelência desse tipo de poesia, nem a durabilidade, na estima dos 
			leitores, daqueles poetas que assim se expressam. O que pode 
			sustentar sua permanência é uma imprecisa soma de virtudes a que 
			atribuímos “beleza”, “sabedoria” e/ou “força”. A qual atribuímos 
			“qualidade superior”. 
			
            E há poetas cuja obra se torna companhia do leitor, por expressar 
			alguma coisa sua ainda não expressa, falar sua linguagem calada, 
			dar-lhe voz. São poetas cuja poesia é esperada sem que se saiba 
			quando chega, necessidade em geral ignorada, mas que se faz 
			indispensável quando satisfeita. 
			
            Tal poesia e seus autores poderão ser mais ou menos “importantes” 
			que os do primeiro tipo, no julgamento de hoje, de ontem, ou de 
			amanhã. Não importa esta consideração. Importa, como em qualquer 
			gênero de arte, é a sua capacidade de expressão e de comunicação. 
			Importa é a capacidade de alcançar um estado de identificação 
			universal, porque habita o centro dos valores e das expectativas do 
			ser humano. 
			
            Dou exemplos de poetas de quem já se disse algo a respeito - que 
			“completam a vida”, que “nos fazem um bem”, “era isso mesmo!”. Em 
			geral, são poetas que, sintonizados com a realidade ou a iminência 
			dela, antecipam o sentir geral e o fazem de forma acessível. Dois 
			exemplos, brasileiros, entre os maiores, seriam Bandeira e Drummond. 
			
            A importância e a qualidade extraordinária da poesia de Cecília, 
			Murilo, ou Jorge ou João Cabral, entre outros, em nada os faz 
			menores, pelo fato de serem eles, a meu ver, poetas construtores de 
			mundos pessoais singulares. Nem faz do ótimo Vinícius um nome tão 
			alto o ter aquela virtude de dizer o que todos ou quase todos sentem 
			e esperam ler ou ouvir. Nenhum juízo de valor nesta enumeração. 
			
            Creio que Ferreira Gullar se enquadra no modelo que um Bandeira e um 
			Drummond exemplificam, pela capacidade que sua poesia tem de vir a 
			uma espécie de encontro marcado com o leitor. 
			
            Não por acaso. Em mais de um depoimento Gullar declara que se fez 
			poeta para dar voz aos que não a têm – aos anônimos de sua terra, ou 
			de qualquer terra, aos humilhados e ofendidos. E seu compromisso 
			auto assumido, sua busca dessa voz plural é visível no que diz e em 
			como diz, no profissionalismo de sua busca de uma linguagem clara e 
			direta após os muitos experimentalismos que praticou e dos quais 
			soube tirar lição, e dar explicação, nos ensaios sobre arte e 
			poesia, em entrevistas e depoimentos. 
			
            Tomem-se livros como “Barulhos” e “Muitas vozes”, entre os mais 
			recentes, ao lado das buscas dos cordéis dos anos 60, das denúncias 
			de “Dentro da noite veloz” ou de “Na vertigem do dia”. Ou em poemas 
			isolados tais como o esplêndido “Traduzir-se” ou o que narra a visão 
			do avião “Electra” no ar, visto da janela em Copacabana. Sacudimos a 
			cabeça num sim, sorrimos do “achado”, recebemos o recado. Nem 
			toquemos no singular “Poema Sujo”, que embora pareça memória 
			exclusivamente pessoal, transcende o particular e se faz poema de 
			uma geração e de um momento histórico, em nada menos universal que 
			as denúncias das guerras, da ditadura e do imperialismo. 
			
            Tal capacidade de dizer o universal através de um quintal de São 
			Luís do Maranhão, do cheiro da tangerina ou da morte de Guevara não 
			se conquista à toa , ao sabor da inspiração, do sopro ou da 
			indignação. Gullar, mais de uma vez, em verso e em prosa, disse que 
			só cede à imposição do verso quando já não pode conter-se, mas que 
			tal ceder não vem de incontrolável sopro e sim da necessidade de 
			cumprir sua missão de contar, ou, digo eu, de Gullar ser poeta 
			profissional, o que não implica em escrever 24 horas por dia, mas de 
			realizar o seu trabalho com atenta consciência funcional, para, 
			confessadamente, dar voz ao real. 
			
            O real. Disso se faz sua poesia. Fazer poesia realista não é apenas 
			expor a nu o que se vê e pode ser exposto com jornalismo. Fazer 
			poesia assim, realista e clara, é opor-se ao subjetivismo fechado, 
			ao escapismo, ao “trobar clus” de tantas vertentes, abstratas ou 
			concretas, virtuais ou nebulosas. Não implica em descrição prosaica 
			embora possa roçar a prosa (como, pergunto, evitar a contaminação, 
			hoje?), não implica em descartar o amor individualizado numa mulher 
			ou numa saudade. Implica em expressar a vida vista e vivida, ao 
			alcance do leitor, com a sabedoria do fazer. 
			
            E esta é outra virtude de Gullar. Capaz de sonetos perfeitos, de 
			recursos sofisticados cultos e cordéis, de rimas de todo matiz, 
			criou sua linguagem no ritmo falante, não estrófico, cujas “cesuras” 
			– usemos o termo para nomear as quebras de linha (Cassiano 
			reivindicaria serem o que não são, “linosignos”) – são respiração, 
			marcação de leitura de verso livre. Recordemos, de passagem, que 
			todo bom poema pode ser ouvido, em voz alta, além de ser lido – além 
			do “barulho / quando rumoreja/ ao sopro da leitura”. 
			
            Ao falar sobre sua obra, mais de uma vez Gullar se refere à forma 
			como resultado e não como condicionante, e ao mesmo tempo relata o 
			trabalho do fazer e o efeito querido, consciente mas nem sempre. O 
			histórico de sua busca, desde o parnasianismo admirado pelo 
			adolescente maranhense, do espanto com a descoberta dos grandes de 
			22 e 30, Murilo e Drummond em particular, revela uma preocupação de 
			feitura que só a leitura apressada de sua obra não reconheceria, ou 
			a desatenção ao próprio pedido dele no abrir de um de seus livros: 
			“por favor, leia devagar”... 
			
            Chegar à descontração da maturidade após tanto rigor e tanto 
			experimentalismo (em entrevista cita a célebre frase de Gauguin 
			sobre pintar com a mão direita, depois com a esquerda e depois com 
			os pés, como um modo de contínuo aprendizado necessário) demonstra 
			seu profissionalismo, que recorda também o Picasso da “boutade” de 
			levar a vida inteira para pintar como uma criança. 
			
            Não cito pintores casualmente. A formação de Gullar incluiu a 
			pintura, e os amigos Mário Pedrosa e Oscar Niemeyer entre 
			tantíssimos outros terão muito a ver com a decantada visualidade, a 
			vigorosa concretude e a marcante exatidão que sua poesia ostenta, 
			desde quase sempre. Crítico de arte cujos textos são queridos 
			especialmente pelos criticados – entre os quais pintores tão 
			diversos como Iberê Camargo e Siron Franco – o conhecimento e 
			domínio da pintura que Gullar detém permeiam sua poesia por essas 
			características de plasticidade acima aludidas. O ex ou quase 
			pintor, o crítico, é também quem vê o mundo que o poeta escreve. 
			
            Não é mera casualidade Gullar escrever com tais marcantes 
			características, de visualidade (ou visibilidade), exatidão e concretude. Poeta de seu tempo (como creio que o transcenderá, 
			cumpre o que um escritor do porte de Italo Calvino prenunciava nos 
			anos 80, “para o próximo milênio”, e apontava como presentes em 
			grandes autores do passado, como especificidades da literatura, que 
			só a literatura pode ter e dar. 
			
            Em conferências que não chegou a proferir, em Harvard, pois faleceu 
			antes de completar as seis propostas ou pronunciar qualquer delas, 
			Calvino as enumerou: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, 
			multiplicidade, consistência. (V. edição da Companhia das Letras, 
			tradução de Ivo Barroso, 2000: “Seis propostas para o próximo 
			milênio”.) 
			
            Lembremos, na impossibilidade e inoportunidade de comentarmos aqui 
			os conceitos de Calvino, apenas algumas de suas considerações e dos 
			nomes que ilustram seus conceitos. Sobre “exatidão” cita Edgar Allan 
			Poe , Paul Valèry. Ponge, Flaubert e Lucrécio, entre outros, e 
			conceitua exatidão como capacidade de intuir e falar a linguagem das 
			coisas com a carga humana posta nelas, evoca o demônio da lucidez 
			que Valèry viu em Poe, traz o exemplo da precisão do cristal e do 
			calor da chama. 
			
            Sobre “visibilidade” menciona, entre os elementos formadores da 
			parte visual da imaginação literária, a observação direta do mundo 
			real, o mundo figurativo transmitido pela cultura, a interiorização 
			da experiência sensível, a memória “icástica”. E lembra Dante e 
			Balzac. 
			
            Ao longo dos textos das conferências Calvino não descarta, mas, pelo 
			contrário, exalta a imaginação, a fabulação, sobretudo ao tratar dos 
			conceitos de rapidez, (que não se confunde com pressa ou ligeireza) e 
			multiplicidade, aqui citando os exemplos de Goethe, Proust e 
			Borges, a noção de obra aberta e a ambição enciclopédica de Mann na 
			“Montanha mágica”. 
			
            Lembrar tais características ao ler Gullar é natural porque elas 
			estão presentes em sua obra, umas mais que outras, dado seu 
			compromisso essencial de dizer o real, o atual, dar voz a seus 
			semelhantes, registrar a vida. 
			
            Seu compromisso com a vida e sua dependência da poesia têm múltipla 
			presença explícita ao longo da obra, quando em lugar de dizer que 
			faz isso ou aquilo, que é tal coisa ou outra, diz que a poesia é que 
			faz ou é. Mais que recurso poético, tal substituição de sujeito 
			reflete a transferência de voz a que se propôs – pluralizar sua 
			autoria, ser porta-voz. 
			
            A popularidade relativa de Gullar (digo “relativa” por ser menor 
			que a que lhe é devida) não se deve só à mídia e às peripécias de 
			sua vida ou mesmo à exposição ganha como teatrólogo ou autor de teledramas, ou ainda, cronista e apresentador de TV . Ela se deve, 
			acho, ao que venho alinhavando aqui. Deve-se ao seu realismo, ao seu 
			compromisso com a compulsão de narrar a vida. 
			
            Não devemos confundir tal compromisso com qualquer projeto 
			programático, seja político no sentido amplo, ou meramente 
			partidário. A poesia de Gullar é política e social porque embora o 
			“sujeito lírico” seja frequentemente a pessoa física José Ribamar 
			Ferreira, seu nome de batismo, o que vai expresso é um “eu” que 
			relata experiência humana transferível a muitos quando não a todos 
			os leitores. Narrar a dor de um marginal ou frutas que apodrecem, a 
			estatística da mortalidade infantil no Piauí, a fundação do Partido 
			Comunista por homens comuns, pensar a mulher além dos quilômetros 
			que separam duas cidades, toda essa temática é realista, ou é 
			“engajada” ou é só atual e por tais vias chegam àquele encontro 
			marcado a que aludi acima. Porque Gullar é poeta do hoje, 
			essencialmente. 
			
            A memória presente com frequência, a especulação com o universo, a 
			morte, de amigos ou referência inescapável, são temas que vêm sempre 
			a partir de uma perspectiva do aqui e do agora. 
			
            Creio que um autor vale e deve ser julgado pelos seus textos, 
			independentemente do que se saiba de sua biografia, só sendo 
			indispensável recorrer a ela se tal recurso joga luz necessária à 
			compreensão do texto. No caso de Gullar, o conhecimento da biografia 
			ajuda (somos contemporâneos, somos conterrâneos e os fatos e dados 
			circulam) mas não é imprescindível, graças à clareza do que diz e 
			referir-se ao aqui e ao agora. 
			
            Sua aderência ao aqui e ao agora corre o risco da durabilidade. Será 
			contemporâneo como um clássico, no futuro? O tempo dirá, como tem 
			dito de tantos poetas que “ ficaram” e de outros, que renasceram, 
			como dos mais raros, que sempre estiveram, e são também numerosos. 
			
            Mas se estes últimos, como Homero, Dante, Shakespeare, Camões, e 
			nossos Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Castro Alves, marcados por 
			seu tempo, suas crenças e linguagens, permanecem, pode-se esperar 
			que os grandes de hoje, entre eles Gullar, passem ao futuro sua 
			visão de mundo, falem de nós, de nosso tempo, nossas perplexidades e 
			esperanças aos sucessivos herdeiros da Terra. 
			  
			 
			
			 
          	
			  
			
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