Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Lêdo Ivo numa leitura dupla

 

“Quem tem medo de Lêdo Ivo? - pergunta com razão Ivan Junqueira no arguto prefácio à edição da Poesia Completa do autor. Eu diria que muita gente. Pareceria haver um receio geral, em particular nos meios universitários menos atentos, ao risco de assumir posições, de emitir julgamentos sobre obras extensas, grandes nomes ainda ativos.

Mas os equívocos a que está sujeita qualquer interpretação de textos fazem parte dos trabalhos do docente, do crítico ou do simples comentarista. Correrei o risco.

Creio que a poesia de Lêdo Ivo pode ser acompanhada pela leitura de três documentos: duas auto-biografias e um livro de versos que ouso chamar de Poética. Uma leitura dupla, portanto: da sua poesia e da sua poética.

O primeiro documento é seu esplêndido Confissões de um poeta, obra de 1979, reeditada em 2004 pela Academia, vindo, com a reunião dos poemas, edição Topbooks, comemorar os 80 anos do autor. Os outros documentos são a mini-poética O Soldado Raso, datado 80-88 e incluído no cânone do poeta e o tão revelador O Aluno Relapso (Massao Ohno, 1991), texto que também merece reedição.

Sorte nossa que Lêdo Ivo, tal como Manuel Bandeira através daquele estupendo Itinerário de Pasárgada, nos acompanhe em prosa e verso, um privilégio que poucos poetas concedem.

Nas Confissões Lêdo Ivo conta coisas, recorda pessoas e lugares, narra sua vida de menino e homem de letras, faz prosa tocada pela aura da poesia, emite opiniões preciosas sobre o afazer poético: eis-nos diante de conceitos e até conselhos, ainda que ele os expresse discretamente, como reflexões, e diga à página 337 que o melhor para os jovens seria não pedir opinião a ninguém, ser diferente.

Registremos algumas destas reflexões e reminiscências e , paralelamente, sem pretender segui-los passo a passo, tratemos de ver como pensamentos e fatos reaparecem vitalizados nas centenas de poemas de seu cânone, sem perdermos de vista o verso de Curral de Peixes, página 297 da Poesia Completa: Minhas imagens são meus pensamentos. Ou este outro, de Crepúsculo Civil, 813: Não minto nem digo a verdade.

Nascido no nordeste úmido das Alagoas, na Maceió portuária aberta para o oceano com seu farol contra os ventos e a escuridão, atrás as águas fechadas das lagoas, Lêdo Ivo recordará sua infância e seu chão com imagens de forte visualização mas com a bênção da imaginação.
 

“Foi assim toda a minha meninice, tem sido assim toda a minha vida: uma luta perpétua entre a terra da realidade e o mar do sonho, um litígio incessante entre a razão e a imaginação”.(pg16)
 

Seu primeiro livro de versos se chama As Imaginações e traz uma pertinente epígrafe de Rimbaud: “Je suis maître en fantasmagories.” Nele, o primeiro poema celebra Esmeralda : O internato em que estavas/voava comigo nas manhãs sem nuvens é como começa; e termina: E continuavas voando, entre o farol e o mar,/ballet de minha adolescência.
 

“Quando, aos 16 anos, ousei enviar a Manuel Bandeira alguns versos, dele recebi um cartão em que dizia: “Há muita magia verbal em seus poemas” - observação que durante meses ficou repercutindo dentro de mim” diz Lêdo no capítulo “Os sítios hipotecados” (pg23).
 

E a palavra magia, que vai aparecer em numerosos poemas, será título de livro, no plural, vinte anos depois. Mas vocábulos estranhos como “hipotecado” e outros termos jurídicos pronunciados pelo pai, que o menino atento ouvia, irão multiplicar se em raridades, surpresas e junções, ao longo de toda a obra do poeta, já desde o começo: “Balada arbitrária”, a lua tem “crapulice” e “Doralice vomitou a infância” ...

Desde sua estréia o jovem poeta proclama ser “um comício. Uma revolução.” Que faz de maneira desabrida e emocionada, porém não só em versos longos- há versos e poemas curtos, há sonetos.

Numa frase da página 34 confessa: “Rogo ao deus dos poetas e escritores: livrai-me da perfeição. Tenho medo dela.” E apesar de dizer em outra ocasião que estilo não se conquista, é um dom (pg 169) Lêdo Ivo, que nos disse ter sido chamado de mestre quando jovem e hoje se considera um aprendiz, terá sido atendido por aquele deus. Mas se não é um poeta perfeito, é sem nenhuma dúvida um autor de muitíssimos versos perfeitos e muitíssimos poemas perfeitos. (Não acreditemos totalmente em Valéry quando diz que os poemas não são terminados mas abandonados.)

Se é certo que na admitida imperfeição haverá momentos de Lêdo menos valiosos ( e que poeta não os tem? ), sua faustosa, brilhante linguagem, ora medida e controlada com vigilante ouvido e alerta senso crítico, ora exaltada, criou um estilo inconfundivelmente seu.

O poeta “de nome curto e versos compridos” numa geração de jovens (os de 45) de nomes compridos e versos curtos, famosa boutade de Sérgio Buarque de Holanda, já vai deixando sua marca no segundo livro, Ode e Elegia, onde propõe na “Elegia Didática” que o poeta e amante acorde para a alegria triunfal de um só verso. De alegrias assim é rica a obra de Lêdo. Exemplos:
 

Desabo em ti como um bando de pássaros.

E assim me extingo, extinto por não ser
o que na areia fica entre dois passos...

Ó inocência das coisas que só se realizam nuas!

E serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.

 

À página 74 das Confissões há uma frase discreta, embora de grande vigência no trajeto do poeta: “viver é surpresa e mudança”.

Com Ode à Noite, de 1946, a controlada explosão que é de ritmos e de imagens nos livros anteriores, opera-se uma visível mudança, ainda que não surpreendente num poeta em que a surpresa vai-se tornando uma esperada sucessão de mudanças, sobretudo de formas. Trata-se aqui de um único e longo poema em decassílabos, livremente rimado, ora ao final ora também no interior dos versos, no qual há muitos momentos memoráveis como estes:
 

Existo em mim apenas quando atento
à doce inteligência despertada.

Dentro do tempo sonha a eternidade
como o trigo se sonha na semente.

Sonho de minha vida! Juventude
de sonoro esplendor pacificado!

as fontes matinais que estão nascendo
na jaula de cristal do despertar.

 

O capítulo XIII, “O vento em Salem”, alinha idéias de manual de poética, todas de grande utilidade para novos e veteranos, pois resultam não de uma teoria abstrata, norma ou manifesto, mas sim da rica experiência acumulada, então por um poeta de 50 anos. Citemos algumas: “Dois de meus versos mais autobiográficos estão  em “A contemplação”: É somente no artifício/que a eternidade nos tece. Logo adiante: “Desde o início eu tinha a consciência de que o  poema é um artefato, o produto de um determinado artifício; e a durabilidade ou posteridade de um poeta depende de um agenciamento de sons, figuras, ritmos, rimas, cadências, imagens, música, significações geradas pelo encontro ou choque de palavras. / Assim como não temos um corpo (somos o nosso corpo)a poesia não tem uma forma. É a sua forma.” (pgs 99 e 100.)

Vai mais longe: “O conteúdo é uma invenção da forma. / Começo onde começa a forma; e acabo onde ela se deforma ou se desintegra./ A poesia é rigor e claridade.” (Pgs.118 e 119)

Para obter tais resultados e efeitos (pensemos no que escrevera Poe sobre criar efeito) Lêdo lança mão de tudo a seu alcance, um alcance de cultura, de leituras. De Vinicius aos surrealistas, de Murilo aos franceses do século, entre ode e elegia, entre Dionísio e o canto metafísico, orgiástico ou elegíaco, o poeta absorve e reprocessa o passado, a tradição, faz-se contemporâneo: Vou sempre além de mim mesmo/em teu dorso, ó verso, diz em Cântico (1949).

As lições continuam, são material para oficina de poesia, para notas de edição crítica de há muito devida ao poeta. Do capítulo XXVI, “Intervalo”: “Como poeta quero que ouçam também o meu silêncio e não apenas as minhas palavras”. Ele disse “ouçam”... Trata-se de poeta para quem a música importa, como em seu bem lido Verlaine: “De la musique avant toute chose”. Entre as sonoridades do velho francês e as explosões do adolescente Rimbaud circulou boa parte da aprendizagem vertiginosa de Lêdo Ivo. Que nos disse mais ainda : “A poesia é um sortilégio verbal que tanto pode ser produzido pelo rigor como pelo excesso./ Poesia: a celebração do universo pela linguagem./ O poeta deve criar as suas próprias regras.” E também que a regra é o convite à transgressão (pg 206)

Em O Acontecimento do Soneto, de 1946, o excesso que antes poderia ecoar Claudel ou Vinícius mas já é de Lêdo, faz-se rigor por vezes camoniano, mas o vocabulário já é de Lêdo. Esse é um dos traços mais instigantes da personalidade do autor. Sua capacidade invejável de transformar leitura alheia em escrita própria. “Não tenho influências, tenho convivências. /Só nos influencia o que já está em nós mesmos”.(pgs. 230 e 297)

Quando diz que o soneto não se faz, acontece, está dando uma chave para seu processo criativo, que nos faz recordar o Bandeira da frase “o primeiro verso é com Deus, o resto é comigo”, ou nosso outro mestre, Drummond, que fala de uma idéia que gera um ritmo. Assim também, do sopro solene do decassílabo nasceu, documenta o próprio Valéry, a obra prima que é Le Cimitiére Marin. Pois bem: se o soneto acontece e é forma fixa rigorosa, não será incorreto pensar que Lêdo Ivo aceita a noção de inspiração, porque acredita em sua capacidade de trabalho verbal. “A forma é o verdadeiro conteúdo da poesia” diz à página 269. Acontece. Já dissera antes: “Pertenço à linhagem dos que acham sem procurar”. (pg.194)

Magia, voluptuosidade, erotismo, memória, reportagem lírica, nada escapa à ânsia de dizer que nosso poeta vai acumulando ao longo de seus textos. O que nunca faltará em seus textos é cântico, celebração, palavra rilkeana e sua; entusiasmo, palavra holderliniana e sua. Odes. Onde cabível o olhar de compassiva denúncia ou lamento, faz crítica ou elegia. Em suma, nunca falta envolvimento, comprometimento, com o quotidiano e com a cultura, nesse poeta que confessa odiar em poesia as vanguardas e os que considera caipiras, pela presunção delas, pela incompetência desses. Porque teve sempre profunda consciência de ser poeta “profissional”(pg 301), de estar sintonizado com a cultura da língua e de seu ofício. “Sou um poeta. As palavras me obedecem”, proclama adiante(pg.321).

Tal obediência caracteriza os sonetos acontecidos em 1946, por certo, pois a forma fixa e exigente do soneto pode, se o trato for desatento, destruir sua arquitetura. Lembrava bem Augusto Meyer, em prefácio à Coroa de Sonetos de Geir Campos (Organização Simões, 1953): “só é bom o soneto que não ostenta a sua sonetice”.

E a mesma obediência será marcante ainda num poema de Estação Central, quando partindo daquelas frases de cartilha de alfabetização, trabalha a poética social, engajada, que outros autores tratam no limite da prosa, e Lêdo com este rigor de forma e tanta música:
 

Na escola primária         Um dia num muro
Ivo viu a uva              Ivo soletrou
e aprendeu a ler.          a lição da plebe.

Ao ficar rapaz             E prendeu a ver.
Ivo viu a Eva              Ivo viu a ave?
e aprendeu amar.          Ivo viu o ovo?

E sendo homem feito Na nova cartilha
Ivo viu o mundo Ivo viu a greve
seus comes e bebes. Ivo viu o povo.

 

Muito mais viu Lêdo Ivo, poeta capaz de enxergar o grande e o
pequeno, a beleza e a miséria de homens e bichos, celebrar o amor
e lamentar a morte como se fosse o primeiro a enfrentar assuntos
tão frequentes. Porque é capaz de mostrar-nos o visível com olhos e verbos tornados novos, de conjurar o invisível com imagens quase táteis. Pintor de naturezas vivas – marinhas alagoanas de carcomidos barcos ou coisas e seres do chão e do ar – seus morcegos e gaivotas, seus caranguejos e escorpiões, o esplendor e a ferrugem do tempo. É de perguntar-se como encontra tempo (embora 60 anos escrevendo poesia não sejam poucos) para tanta observação e vivência do mundo, como se o poeta estivesse desde sempre destinado a cumprir a missão de revelar, de narrar, de testemunhar. E a cumpre.

Diz ele nas Confissões que sua obra é sua vida. À página 208 declara: “Meus poemas, reunidos, formam uma autobiografia. Compõem a história de minha vida secreta – uma existência transformada em sinais, que exige uma leitura atenciosa, como a dos códigos e semáforos”. Na seguinte, “Quero que seja lido vagarosamente mesmo o que escrevo depressa.” Porque o inventário de suas observações exige a atenção que nos pede, está a exigir estudo que além do levantamento da poética fizesse também o levantamento da geografia e da história que a obra do poeta engloba, desde a pequena Maceió provinciana ao Rio ainda capital e cosmopolita, e além o périplo pelo mundo, que vê e diz não como turista – viajante, a ver o tempo mais que o espaço.

Quer no caudaloso poema quanto no minucioso texto, o que se lê é uma compulsão insaciável de registrar o visto, o sentido, o pensado. Poeta que tem “necessidade de inefável e de absoluto”, que diz ser a forma seu verdadeiro amor, Lêdo está sempre a redirecionar nossos sentidos, a dizer-nos que há mais, há muito mais, adiante. E ainda, repetidamente anotando o texto, reiterando que sua vida é também a da linguagem, o poeta nos traz para dentro do poema: incorporado às completas, carregado de humor, espécie de Mafuá do Malungo de metapoesia, escreve este curiosíssimo O Soldado Raso, cerca de uma década após as Confissões, retomada da vertente auto-analista de sua poesia. Ali se lê:
 

Não creio na inspiração//Mas que ela exite, existe! Assustando o crítico, E porque não me decifras/ eu te devoro. Adiante, expresso “operário”, expõe os instrumentos e utensílios de seu operoso ofício: Sílabas, palavras, /som, signo, imagem /metáfora, magia!/ Operário da linguagem... E mais estes valiosos esclarecimentos: Meu excesso é rigor./Sou único e plural /como o pão e a flor.//Ao inventar reconheço / que a Poesia é Imitação,/herança no nevoeiro.//E pergunto às tempestades: /a quem imitou Homero? Contradizendo-se em parte, pois já dissera que não se deve escutar a ninguém, ser diferente, dá este conselho aos iniciantes do ofício: Jovem poeta, / não fique triste /mas verso livre /não existe. /No rigor e no excesso /poesia é ritmo, /números exatos/ como na tábua/ de logaritmos.
 

E ainda este magnífico ajuste de contas com o amigo, seu par e seu oposto, de geração e de temperamento, pleno de humor e provocação:
 

A Verdade Crítica

Acusam-me de longo         (certo ou errado)
e torrencial                vindo ao meu quintal
quando sou tão breve        dirá a verdade:
e me cinjo sempre           que sou mais exato
ao fundamental.            e rigoroso
Mas um dia um crítico        do que João Cabral.

 

A blague do poema acima chama a atenção do leitor para a bem pouco reconhecida arquitetura de nosso poeta. Vejam-se, além dos sonetos, que surgem em vários dos livros, posteriores ao “acontecimento” de 1946, vários deles escritos em metros curtos, sempre mais exigentes quando postos em formas fixas, poemas como este precioso “Caça e Pesca”, de A Noite Misteriosa:
 

Paço de pedras puras onde a morte
bica a plumagem da ave da aventura
espaço que conquisto passo a passo
tesouro amealhado que desfaço
e se faz caça além da alça de mira
e no vento do mar se muda em nave
que veleja na rota de sargaços
e jamais fere o peixe afortunado
- na moeda enferrujada caça e pesca
são efígies de igual busca insensata
e, postas na balança, tudo ou nada.

 

É de indagar-se quantas leituras permite tal poema. Conceptista, contorcido barroco de uma só frase repleta de sonoridades, fala de poesia e fala de vida, de busca de certeza na alça de mira e de dúvida na rota de sargaços, moeda enferrujada a dupla efígie que um homem (e um poeta) contempla, maduro, sob a noite (sempre ela) misteriosa, frente ao que pode ser tudo, ou nada. Contenção numa estrofe quase gongórica, onde o verbo não se amarra.

E aquela mudança e aquela surpresa de que o poeta é consciente volta a operar-se ao longo desse livro (1973-1982),onde há compaixão pela vida marginal e subjetivismo, metafísica e a volta à Maceió de “todo santo dia”.

Não há volta melhor, em sua companhia, que o terceiro documento, de tão irônico título - O Aluno Relapso. É um retorno aos textos confessionais e reflexivos da primeira autobiografia. O menino primeiro aluno da aula, que invejava o colega transgressor, se transforma no poeta que cedo transgride, enquanto o invejado colega é agora um respeitado jurisconsulto. Mas o menino estudioso na escola foi também estudar para ser poeta (pg.92), aprendendo logo o que se deve aprender e o que se deve receber de dentro. E repete a palavra mágica: dom, chamamento interior. Chama que traz o poema pronto, lição que Lêdo vem ensinando desde quando perseguido pelos navios de sua infância e pela noite misteriosa que o ilumina. Esse livro, tanto quanto as Confissões, traz o recado íntimo do poeta. Somados, os dois compõem um dos melhores tratados de poética em nossa língua, sequência ao do mestre Bandeira, por ultrapassarem o normativo das versificações e alcançarem o estatuto da sabedoria.

Na consciência da diversidade, na obsessão pela forma, no repúdio à perfeição e às vanguardas “arqueológicas”, proclama que o poema se elabora no inconsciente, que é um sortilégio organizado, que a teoria do poema é o próprio poema. O capítulo “A água mais bela” (pg 21) é especialmente revelador do pensamento poético de Lêdo Ivo. Diz ele a certa altura : “Desejo que a nostalgia da desordem esteja presente nos meus poemas mais organizados e acabados. Ela é minha última saída”. E acrescenta que “a exatidão é uma ficção.” Aparente contradição de quem se diz exato, mas assim, dialeticamente, valha o ângulo, retoma os aforismos, os versos esparsos e metapoemas curtos, compondo uma aula que irá culminar nas últimas páginas do pequeno livro, um texto de exemplar riqueza, no qual retornam conceitos já expressos nas Confissões e que me ajudam a elaborar umas poucas conclusões, que diante de Lêdo Ivo serão sempre provisórias.

Em toda a sua escrita, em verso e em prosa aparecem preocupações e realizações essenciais à compreensão da própria obra . Exemplos, o duelo entre excesso e rigor, mais a insistência em dizer que num está o outro. “Os críticos se habituaram a destacar o meu vigor, quando o mais acertado seria que eles atentassem para o meu rigor e reconhecessem minha exatidão. (pg.42) Cabe ressaltar que para Lêdo Ivo rigor não é verso curto e medido mas verso bem feito em qualquer metro, que exatidão é expressão comunicada, é beleza bem exposta.

Um segundo duelo, que a poesia registra e resolve, é o da verdade versus mentira ou da realidade versus imaginação. Cito: “A função da literatura não é a de refletir a realidade, e sim a de criar uma realidade que só a linguagem tem condições de reproduzir. A literatura é a realidade da linguagem e não a realidade da vida, que se exprime através de uma des-linguagem.”(pg 30)”Os poetas e os escritores mentem muito.”(pg.47) E adiante cita Shakespeare: the truest poetry is the most feigning, possível origem do celebérrimo texto de Pessoa sobre o poeta ser um fingidor.

Depoimento que os entusiasmos e as celebrações de seus versos estão a confirmar aparece no capítulo “Um clássico não chora.” Declara o poeta: “Para mim a criação poética é uma alegria./ é a felicidade / é o meu exercício de liberdade, a minha respiração espiritual.”

Noutra ordem de coisas, seus temas, que as autobiografias “explicam” e são a noite, desde o crepúsculo da ode do jovem poeta ao plenilúnio que titula seu mais recente livro. Noite mais noite  que a noite de sonhos e sem insônias, noite que é abertura à magia da linguagem e ao cosmo contemplado na peninsular Maceió de águas negras iluminadas pelo farol. “A noite escura é a minha claridade.” (pg.67)

E é ainda a mulher, da iniciação sexual juvenil ao mais galante trovadorismo, da descrição visual e do erotismo sem limites à sublimação do sonetista.

O mar é presença, vista e cheiro, é metáfora e vivência - Mar Oceano é título de livro e expressa todas estas vertentes da palavra. Página 40, um dístico solto, a reinventar a imagem clássica de Manrique:
 

O mar igual à proa dos navios
bebe, morto de sede, a foz dos rios.

 

Deus é personagem tardio em sua poesia e nas auto biografias. É um Deus de procura e interrogação, não de aceita crença. Como as suas meditações sobre a eternidade, que anotadas nas auto-biografias são reiterações nos poemas, junto às considerações sobre o nada, o vazio, paralelas aos constantes flagrantes das coisas corroídas, decaídas, vistas no presente ou trazidas da memória dos portos, trapiches, armazéns.

Posteriores às confissões do aluno relapso e do soldado raso, ressurge a disputa constante com a crítica. Um poeta de estréia “deslumbrante” para ninguém menos que Murilo Mendes, tendo a amizade e o apoio dos maiores (Bandeira e Drummond) e o apreço dos melhores críticos de então (Dr.Alceu, Álvaro Lins, Sérgio Buarque de Holanda, Fausto Cunha), Lêdo Ivo veio a enfrentar o silêncio e as restrições dos que o viram desgarrar-se da geração e rejeitar as vanguardas. ( Conta ele que mais de uma vez fora expulso do grupo de 45 por Péricles Eugênio da Silva Ramos.)

A extensão de seu cânone (não maior que os de Drummond ou de Cecília ) meteria o medo a que aludi no início. Mais: numa época de encantamento (merecidíssimo) com a poética de seu amigo João Cabral – tão consolidada a ponto de não mais causar surpresas – a constante variação de Lêdo Ivo pareceria incomodar aos acomodados.

E Lêdo volta a enfrenta-los no último poema de Curral de Peixe – “O poeta e os críticos”:
 

Poeta da noite e do sonho
que ousa interrogar Deus
sem nem mesmo conhecê-lo
direito por linhas tortas,
assim foi estampilhado
por um crítico sagaz.
Mas um outro proclamou:
És poeta da claridade
................................
Um terceiro o definiu
como poeta do amor
e do corpo feminino
.............................
Um resenhista apressado
o limitou aos navios
que ele viu quando menino
.......................................
Um crítico o festejava
pelos seus versos lacônicos
enquanto outro o censurava
pelo seu ritmo oceânico.
......................................
Já que os críticos divergem
no tamanho de meu metro
......................................
Porque sou um e sou vários
.......................................
Quem sou, quem fui, quem serei?
........................................
Eu sou eu ou sou o outro?
.......................................
Tantas perguntas, e o dia
como uma nuvem passava!
Só o vento lhe respondia
no silêncio do céu mudo:
- És como eu sou. Nada sei.
Sopro noite e dia. E é tudo.

 

E assim desafiante vem vindo, consciente da infinda querela sobre que tipo de poesia faz, aberto discurso recorrente ao longo da vida como da poesia e da prosa confessional do poeta.

Em versos tomados quase ao acaso, eis exemplos, versos soltos, por certo, mas esclarecedores da maneira muito sua de conciliar opostos:
 

Minha noite é o dia ( Finisterra, 542 )

Mudo todos os dias ( Plenilúnio, 1027 )

Tudo o que é claro é obscuro ( Plenilúnio, 1044)
 

Poeta de totalidades, as palavras que expressam o todo, o tudo e o nada, a eternidade, o Tempo, Deus, percorrem todo o cânone:

Tudo o que existe é necessário à ordem e à desordem do mundo /Tudo passa, só não passa o que passa ( Curral de Peixe 934 )

Onde está Deus? / Onde encontrar Deus?  (A Noite Misteriosa 672 e 4)

Nada sei sobre mim,/quem sou ou de onde vim.//E já que nada sou // Nem mesmo a vida resta//Tudo na vida some. / E o vento sopra e leva / as letras do meu nome. (Poema A partícula, O Rumor da Noite, 975)
 

Eis os últimos versos do último poema do último livro da Poesia Completa de Lêdo Ivo, O Desejo :
 

O meu Deus é relâmpago,
o breve resplendor
antes do grande sono.
Recuso-me a durar
e a permanecer.
Nasci para não ser
e ser o que não é
após tanto sonhar
e após tanto viver.

 

Mas o poeta tem muito ainda a dizer-nos, sobre sua vida interior e o mundo exterior. Sobre a obra feita, o máximo a que pode aspirar um leitor é anotar algumas aproximações. Um endosso, à página 97 de O Aluno Relapso : “Cada poema tem a sua história, é o fragmento de uma existência secreta, um estilhaço da biografia do poeta – embora o amador de versos deva ser alertado para a evidência de que, quer atravessando o claror do dia ou a misteriosidade da noite, o poeta é o portador de uma sinceridade sempre ungida pela mentira inerente à criação poética.” E encerra, página 100: “Vejo constelações no dia claro. Ouço o rumor do mundo. Dei um sentido à vida. Dei uma forma à realidade. Que mais quero? E o que mais querem de mim?”

Eu digo que queremos mais, do mesmo Lêdo Ivo “oceânico” e do Lêdo Ivo “lacônico”, autor de riquíssima obra, que nunca será demais agradecer e aplaudir.


Izacyl Guimarães Ferreira escreve, traduz e comenta poesia. Autor de 14 livros de poemas, preside o Conselho Consultivo da UBE (União Brasileira de Escritores)e participa do conselho editorial do jornal da entidade, “O Escritor”, onde assina a seção “Poesia, Poetas, Poemas.”

 

Ledo Ivo

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06.10.2005