Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Ivan Lira

ivanlira6@uol.com.br

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Ensaio, crítica, crônica, resenha & comentário: 
  • Existirmos (Torquato Neto)


Fortuna: 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Ivan Lira

 

 

Existirmos

 

O velho homem conduz o homem moço pela mão. Atravessa os cômodos da casa e alcança um quarto reservado. Era ali o reduto juvenil do seu filho. O homem moço se acomoda, deita em uma rede e se põe a olhar o retrato do antigo dono do lugar quando criança. Nenhum cansaço resiste a um repouso naquela rede e nenhuma saudade fica quieta diante daquela foto da bela infância do amigo. Há vazio no espaço, no físico e no sentimental, diante da ausência do poeta/parceiro que de tão irrequieto resolveu demarcar o tempo da sua vida, estabelecendo que ela deveria cessar ainda na juventude com uma trágica abreviação.

A cena do parágrafo acima cabe em uma novela; ou em um romance; ou em um conto ou, simplesmente, em muitos quadros da vida real. E foi justamente num destes que se operou o encaixe. O velho homem, um promotor de Justiça em recesso, prenome Hely, devolvia ao homem novo, o Caetano vate, veloz e Veloso, o que este paradoxalmente nunca tivera: a ambiência doméstica de Torquato, o Neto, filho de Hely. Nesse lugar Caetano sentiu pulsar a canção, como numa parceria transcendental, e deu a luz cristalina a "Cajuína", uma das mais belas das suas composições. "Existirmos: a que será que se destina? / Pois quando tu me deste a rosa pequenina / Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina / Do menino infeliz não se nos ilumina / Tampouco turva-se a lágrima nordestina / Apenas a matéria viva era tão fina / E éramos olharmo-nos intacta retina / A cajuína cristalina em Teresina."

Anos, muitos anos depois, lá mesmo na capital piauiense, que em natural volúpia se beija, a um só tempo, com os rios Poti e Parnaíba, Torquato Neto foi objeto de uma conversa que tive com Roberto, outro Veloso, entre goles refrescantes e cristalinos de cajuína. Reportou-me a ida de Caetano a Teresina, o encontro com os pais de Torquato Neto, a quase compulsória hospedagem na casa destes e a inspiração para a música acima referida. Falou-me do espírito irrequieto e radical de Torquato, fruto do meio-norte que saiu verdoso para a Bahia, onde estudou e foi expulso de um colégio de padres, intolerantes com a sua agitação cultural. Acostou-se a uns iguais e daí surgiu o Tropicalismo, movimento poético e artístico que não se suportou nos limites da terra do Senhor do Bonfim e foi ditar

regras ao marasmo intelectual que invadia o país no pós-revolução meia quatro, a partir do Rio de Janeiro. Com quem? Bethânia, Gil, Caetano, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Rogério Duprat, Capinam e outros. Era uma espécie sui generis de anarquismo politizado, com estética diametralmente oposta à comportada Bossa Nova, sem enfrentamento radical entre os membros dessas correntes.

Disposto a balançar as estruturas do stablishment criativo, circulou bastante. Fez roteiros de shows (Ensaio Geral, Pois é, Maria Bethânia), escolheu trilhas de novelas (Irmãos Coragem e Minha Doce Namorada), foi redator da revista Cláudia, do Jornal do Brasil e do Estado de São Paulo, além de celebrar casamentos poéticos em diversos lados, que renderam filiação díspar e genial, como "Go Back", com Sérgio Britto ("Você me chama / Eu quero ir pro cinema / Você reclama / Meu coração não contenta /... / Só quero saber / Do que pode dar certo / Não tenho tempo a perder"), consagrada na discografia dos Titãs ou "Pra Dizer Adeus", com Edu Lobo (Adeus / Vou pra não voltar / E onde quer que eu vá / Sei que vou sozinho /... / E no entanto eu queria dizer / Vem / Eu só sei dizer / Vem / Nem que seja só / Pra dizer adeus").

E a cena criativa de Torquato foi por ele mesmo encerrada na madrugada de 10 de novembro de 1972. Após comemorar o 28º aniversário em uma boate carioca, trancou-se no banheiro do seu apartamento, ligou o gás do aquecedor após rabiscar um bilhete com a frase radical: "Para mim, chega!". Deitou e morreu.

Para mim, não chega. É pela poesia de Torquato que vale existirmos, em resposta ao verso de Caetano.

Direto para Torquato