Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Iracema Sales


 


Os limites do desejo



12 de Julho de 2005


 

Desvendar o significado da palavrinha “semimágica” chamada desejo é um desafio que se arrasta ao longo dos séculos. Para alguns estudiosos, viver é desejar e, nesse aspecto, o desejo se confunde com a própria vida, enquanto para outros, nasce justamente de uma carência.

Da Filosofia, passando pela Psicanálise e outras áreas do saber, acaba esbarrando no campo político.

“O problema é que há um desgaste da política tradicional, do qual nem os políticos e nem a Imprensa, nem mesmo parte da academia, se deu plenamente conta.

Na própria política, as lideranças que surgem são as que de algum modo rompem com a convenção.

É o caso de Fernando Gabeira, Mário Juruna e outros”, analisa Renato Janine Ribeiro, filósofo e professor de Ética Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretor de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) do Ministério da Educação, admitindo que as pessoas conseguem responder melhor qual a vocação profissional do que qual o parceiro que, efetivamente, desejam ter.

O certo é que o conceito continua tirando o sono de muitos estudiosos e deixando sem graça alguns outros que surpreendidos com a pergunta banal: “Qual é o seu desejo?.

Sem arriscar eleger um mito para o Século XXI por estar apenas começando, considera o desejo um valor decisivo hoje.

Diário do Nordeste - O senhor concorda com a afirmação de que cada século tem o seu mito, como por exemplo, o do século XX teria sido o progresso e que o do atual seria o desejo?

Renato Janine - Eu ainda não me atreveria a dizer que há um mito de um século que está começando! Mas, que o desejo é um valor decisivo hoje, é. O problema é que não sabemos exatamente o que quer dizer essa palavra semi-mágica. Por exemplo, conforme a linha de psicanálise que se escolha, vai significar coisas diferentes.

— Quais seriam então os principais desejos de homens e mulheres do século XXI?

Renato Janine- No emprego mais usual da palavra desejo, ela valoriza anseios que, em última análise, estão ligados ao corpo - comida, bebida, sexo, conforto. Representa então algum ceticismo em relação aos valores espirituais, não que estes sejam negados, mas porque parecem ter justificado sofrimentos desnecessários: por exemplo, a campanha da Igreja cristã contra o sexo causou muita dor e desgaste que não precisava haver.

— Dentre esses desejos, estão incluídos também projetos coletivos ou são mais voltados para o individual?

Renato Janine- O problema nessa idéia de desejo é que ela tende a desvalorizar o coletivo, em proveito do individual. O futuro, em favor do presente. Ela tem aspectos positivos, na medida em que critica ideologias que se aproveitaram de nós. Questiona vínculos que atavam uma pessoa a outras, em condições injustas ou iníquas. Mas também enfraquece os vínculos em geral. Fica difícil, assim, as pessoas continuarem ligadas as outras - ou as causas que as transcendam - quando essa ligação se torna onerosa. Mas o que é a vida se for só bônus, sem ônus algum?

— Como a política se apropria desse discurso da “sociedade do desejo” e até certo ponto o reproduz através de projetos que não refletem o coletivo, mas sim, os anseios individuais?

Renato Janine- Prefiro, quando vou valorizar um projeto que você está chamando de individual, usar o termo “pessoa”, que indica um sujeito ético, e não o termo “indivíduo”, que acaba tendendo ao egocentrismo. Pode haver projetos pessoais relevantes. Eles sempre acabam nos vinculando a outras pessoas. Por exemplo, o projeto de ter mais conforto não precisa excluir o conforto dos outros, assim como o desejo de uma vida sexualmente feliz melhor se realiza a dois.

— O senhor acha que a política seria a porta de entrada para reverter essa situação através de uma participação maior da população nos projetos políticos em todos os âmbitos da vida social?

Renato Janine- O problema é que há um desgaste da política tradicional, do qual nem os políticos, nem a imprensa e nem mesmo parte da academia se deu plenamente conta. Na própria política, as lideranças que surgem são as que de algum modo rompem com a convenção. É o caso de Fernando Gabeira, Mario Juruna e outros.

No campo da paixão e desamor

— Como o senhor analisa à luz da discussão entre o público e o privado, a união de casais que externam suas relações no campo da sua trajetória política? Temos exemplos no cenário político brasileiro de alguns como Marta e Eduardo Suplicy e Patrícia e Ciro Gomes cujas relações chegaram ao fim. Até que ponto há incompatibilidade entre projeto político, que fica no campo público e do afetivo, amoroso, no espaço privado? Isto é, a política ajuda ou atrapalha nessas relações?

Renato Janine- Relações se desgastam, na política ou fora dela. Não creio que em nenhum desses dois casos o casamento se tenha desfeito em virtude da exposição pública. Foram relações longas, certamente felizes, substituídas a certa altura por uma nova perspectiva. Isso acontece em todos os lugares. Talvez o que Ciro Gomes tenha conseguido, e Marta Suplicy não, foi poupar-se do ônus que uma separação acarreta junto à opinião pública.

— Outra característica da atual sociedade é a competição. Ela pode contribuir para prejudicar um projeto de vida a dois?

Renato Janine- Concorre para isso, sem dúvida. Quando se afrouxam os elos, um resultado bom é que se eles são apenas elos, isto é, correntes, afrouxá-los, nos liberta. Mas, se eles forem laços, ou se pelo menos para uma das partes forem laços, como fica? Em outras palavras, muitos de nós nos defrontamos com uma paixão, mas já temos alguém. Como decidir se mantemos uma relação que perdeu o brilho mas continua sendo de amor, ou se investimos numa paixão que, por definição, tem um forte teor de auto-engano? Não há paixão sem equívoco. Agora, muitos fatores enfraquecem a capacidade de firmar elos, hoje em dia - e boa parte deles se concentra numa idéia só, a de egocentrismo. Faz parte disso a competição.

— Quando se fala em desejo vem em mente um objeto desejado, quer pessoa ou projeto de vida. Caso não seja realizado, vem a frustração. O senhor acha que há uma relação entre violência e desejos insatisfeitos por parte da população em todos os níveis de sua vida, isto é, o salário do desejo é a frustração?

Renato Janine- O desejo necessariamente frustra. Ninguém realiza todos, ou sequer a maior parte, dos seus desejos. A maturidade é estar satisfeito com uma proporção razoável e não muito egocêntrica do que desejamos. A violência, por sua vez, aumenta quando desabam os biombos que justificavam a insatisfação. Gerações anteriores suportaram muita coisa ruim, em nome do dever e da religião. Esses termos se debilitaram, e com isso se abrem duas possibilidades: primeira, nos libertarmos do sofrimento, mas sem fazer sofrer o outro (é a boa via); segunda, só nos preocuparmos com nós mesmos a pretexto de realizar nossos desejos. A segunda via é muito preocupante.

— E, como fica o amor (tanto o fraternal, quanto entre duas pessoas) dentro dessa sociedade onde o desejo é o principal objeto a ser perseguido? O amor se diferencia ao longo dos séculos também?

Renato Janine- O amor não coloca tanto problema quando a sexualidade está fora do seu horizonte: é o caso do amor fraterno e do amor entre amigos. Ele é ameaçado, porém, quando é sexuado. Talvez porque o amor é sempre uma dádiva, um querer o bem do outro, e o desejo sexual é ganancioso, guloso, até agressivo e em alguns casos destrutivo. Conciliar os dois não é fácil. Há milênios se procura isso. Uns conseguem, outros não.

— Qual a principal característica do amor dentro do contexto de uma sociedade globalizada onde os sentimentos também estão fragmentados? Como o senhor analisa, por exemplo, o comportamento sobretudo dos jovens que preferem se relacionar pela internet?

Renato Janine- Não creio - se pensarmos em amor sexuado, que deve ser o caso dos jovens - em amor virtual. Sem o toque físico, dificilmente um jovem ama. Mas, com a maturidade e também o declínio dos hormônios, podemos chegar a belos romances, como o do filme Nunca te vi, sempre te amei, que recomendo vivamente.

— O que dizer dessa busca de novos amigos ou “amores” nas salas de bate-papos da internet?

Renato Janine- Tanto quanto sei, o que se pretende até mesmo nas listas de discussão acadêmicas é, chegando-se a um certo ponto, as pessoas se encontrarem. São formas de conhecer o diferente, o outro. Esse é um tema de curiosidade enorme, hoje em dia. Mas a uma certa altura se quer conhecer de ver e talvez tocar. Isso é perfeitamente compreensível. O problema de nossos dias é que o descarte do outro ficou fácil demais.

— Como a filosofia analisa o amor ao longo da evolução das sociedades? Cada sociedade cria a sua forma de amar? Qual seria a deste século?

Renato Janine- Não dá para prever. Não é tampouco um tema específico da filosofia, embora ela tenha tratado dele -e quase sempre valorizando a relação mais firme, mais de longo prazo, de amor mesmo. Há mudanças ao longo dos tempos e, embora nas últimas décadas do século XX se tenha valorizado muito a “liberação” sob todas as suas formas, o que preocupa hoje é o desvinculo, a falta de compromisso, o desamor. Temos que reverter essa tendência.

— Qual a relação que o senhor faz entre desejo e consumo?

Renato Janine- O desejo é algo mais firme e duradouro do que o consumo e o prazer. Estes podem ser a imagem mais fácil, mas também mais superficial, do desejo. Por isso, uma pergunta importante é: qual é o seu desejo? De verdade. Não o desejo superficial (por algo que me saciará e me cansará em minutos), mas o desejo de verdade, como quando pergunto a alguém o que ela quer ter como profissão. Infelizmente, parece que as pessoas conseguem responder melhor qual a vocação profissional que responde a seu desejo do que se lhes perguntamos qual o parceiro que, efetivamente, desejam ter.


Iracema Sales
da editoria de Reportagem

 

 

 


 

27/04/2006