Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Inez Figueredo


 

A paleta de Tiziano Vecellio e o infame
dourado da América Latina
(ou, Danae e a liberdade encarcerada)

 

A Míriam, Alícia e Lílian, amigas Porteñas, e aos dias de Callao.
 

O eclipse quase se cumpria quando a tia levou-a à janela e disse rindo-se – É uma menina e tem cara de milagre!

Aos onze anos cortaram-lhe uma franja na testa, cobriram-lhe os joelhos salientes com uma saia de sarja azul marinho e os braços ossudos com uma blusa branca de tricoline. Ao vexame da foto de olhos enormes, fixos no nada, seguiu-se a matrícula no internato. O medo chegou junto; percorreu salas, galerias e pátios; passou a acompanhá-la, todas as noites, ao dormitório.

Por muitos meses, quando sentia a enorme ânsia da solidão e a pena do afastamento de pessoas, objetos e hábitos, punha-se a repetir, como um eco, a canção das rodas infantis de sua rua:

PASSA-ME TUAS ASAS,
PASSARINHO, PASSARINHO,
FAZ-ME VOAR;
DEIXA-ME ESTAR,
PASSARINHO, PASSARINHO,
QUIETA NO AR.

Pouco a pouco, a despeito da sisudez, alguns gestos, convites e segredos alcançaram-na. Fez-se parte; com pouco tempo mais, era uma das donas da palavra decisória.

Na paixão das descobertas deu-se à luta; enfrentou a incoerência e empunhou o sonho. Alargou a conquista e extasiou-se com a fantástica visão de um Mundo Novo. Tutelou a aflição; na sombra, obrigou-se a não viver sem respirar o medo. Pretendeu ser invisível, onisciente, competente; numa ambição, desmedida, de ser parte da esperança.

Certo dia conheceu o companheiro; no outro o desejo. Transcenderam fronteiras: fruíra o essencial; fizera-se espaço à inter-relação. Ele e Ela, face a face, em busca ao ouro da liberdade.

A janela frente ao cemitério, olho da casa que acolhera a energia daquele amor, abria-se de par em par, naquele verão, aos espertos raios de luz: assomaram; lentos, enfeixaram-se sobre o belo e jovem púbis ressaltando o dourado que derramara-se sobre o coração, ventre, coxas e lençóis. Após, o companheiro tentara desgrudar o ouro aferrado às palmas; esfregando-as ao peito, olhos cerrados, murmurara exausto – DANAE - e entre eles, sobre a paleta suspensa, pairou, a vez, a palavra e a cor.

Tornaram-se cúmplices na busca do imarcescível e não se podia saber qual o iluso; qual o ilusor.

Numa noite, em mil folhas desdobradas, a prisão e a tortura. Delirante, a dor, trilhando um obcecado rito, fazia-se acompanhar dos versos da infância:

LEVE E LIGEIRO
PASSARINHO MARINHEIRO,
LEVA-ME AO MAR
O ‘SETE ESTRELO’,
PASSARINHO MARINHEIRO,
QUERO GUIAR.

Na pausa do martírio a consciência acendia-se; o mover-se, os encapuzados espectros espantavam o passarinho marinheiro. Outra vez e ainda outra vez, ela socorria-se dos versos da infância, no ritmo e diapasão próprio. Seu corpo cedia. A mente espreitava; mais uma vez, ainda mais uma vez... Finalmente alcançou a estrofe final que perseguira exausta:

ROUBA-ME AS ASAS,
PASSARINHO TRAIÇOEIRO,
QUERO PARAR.
DIZ-ME O VENTO,
PASSARINHO COMPANHEIRO,
BASTA SONHAR.

Rendeu-se. Induziu-se ao termo. Impossível interpor-se à morte e ao resplendor do zênite. Coragem, medo, sonhos, gritos, beleza, juventude; fezes, urina e sangue mesclaram-se ao dourado que se espraiara no porão e a tudo impregnava, infiltrando-se, até, sob a máscara dos encapuchados. Inerte fisalita, seu corpo viscoso agarrara-se à luz do amanhecer: raios de ouro esgueiraram-se por entre as grades, enfeixaram-se e esticaram-se, lentos, sobre o púbis sangrento. Fartos, muitos dirigiram-se ao lavatório e ensaboavam as fétidas e lascivas mãos, uma, dez, milhares de vezes, tentando livra-las, do brilho e do fulgor; dentre eles um velho, cerviz dobrada, atirando ao canto sujo um branco avental, estampado de ouropel, exclamara irônico: - DANAE, EIS TUA CHUVA DE OURO!

(Pincéis às mãos, o vulto consumido pelos anos, Tiziano fiava-se na mensagem de sua angústia secreta; na possível interpretação alegórica das mesclas, das cores, dos sons, das formas, da cena, do texto.... E ria-se, um sábio riso: daquela união, Ouro e Danae, Torre e Liberdade, da dissoluta e sensual atmosfera cromática, Perseu haveria de nascer: Cortaria a cabeça da Medusa e fundaria uma Nova Cidade.

Lentamente, em torno ao velho artista, o mundo da beleza e dos afetos desaparecia. Deixando-o só; com seus fantasmas poéticos, paleta, pincéis e a cobiça em cumprir, qual último legado, sua longuíssima atividade de criador: Da violenta dramaticidade do jovem ouro envelhecido, pintaria Perseu. Fa-lo-ia surgir sutil; da Medusa a cabeça gotejante às mãos, na face oculta, em pinceladas de um suspiroso ramo, sopraria a resplandecente cor do ouro. Em filigranas criaria; como o reflexo de um particular momento.)
 

 

 

 

 

18.07.2005