Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Henrique César Pinheiro


 

MEU AMOR, MINHA VIDA QUANTA SAUDADE

 

Cursei faculdade no tempo que os cursos ainda eram anuais. A turma que iniciava, exceto os que ficavam pelo meio do caminho, ia do primeiro ao último ano da faculdade junta. Assim se formava uma turma, um grupo mais coeso, como afinidade entre si. A revolução de 64, a partir dos anos setenta, com raras exceções e a nossa faculdade foi uma delas, acabou com essa periodicidade dos cursos superiores, que passaram a ser controlados por disciplina, como permanece até hoje. Maneira encontrada pelos militares para, justamente, quebrar a afinidade entre os estudantes de cursos superiores, e conseqüentemente, evitar movimentos contrários ao regime militar. Mas isso não nos importa muito no momento, pois a narrativa a seguir nada tem de protesto político, mas de pitoresco.

Nós, eu e mais outros colegas fizemos o curso todos juntos. Alguns nós já se conheciam desde os tempos de cursinho. E quando entramos na faculdade fizemos um grupinho que variou muito pouco no transcorrer do curso. Três de nós seguimos juntos desde o cursinho até a conclusão do curso: eu, Benito e Arlito – conhecido por Tribobó, por ser daquela região ali perto de Niterói. Ou melhor, nem era de lá, mas de Colubandê, bem perto. Com ele até hoje mantenho contato, mesmo eu estando no Ceará e ele em Salvador. Quanto ao Benito, nunca mais o vi depois de terminado o curso, embora numa ocasião tenha, por telefone, conversado com ele. Mas ficou nisso.

Benito ficou assim conhecido, por sua semelhança física com o cantor Benito de Paulo. A única diferença era o bigode, um pouco diferente. No mais tudo igual; visual idêntico. Ninguém na faculdade o conhecia por seu verdadeiro nome. Acho que nem mesmo os professores. Portanto, pouca gente sabia que era José Maria Cardoso da Silva.

À turma, com disse composta por mim, Benito, Arlito, somaram-se ainda Arlindo, Sônia e Francisco José, esse dois últimos também remanescentes do cursinho. Entretanto, no segundo ano eles saíram por conta de desavenças do Antonio José com o Arlito, tendo a Sônia se solidarizado com ele e nós, eu e Benito, com o Arlito, que na realidade tinha razão. A discussão entre eles foi gerada por conta de uma namorada do Arlito, cujos detalhes não interessam agora. Com a saída dos dois, entrou o Wagner, e assim o grupo permaneceu até o fim, sendo que vez ou outra, dependendo de trabalhos e interesses nos estudos outros colegas também participavam de nossa equipe.

Os integrantes do nosso grupo sempre se comportaram de maneira solidária uns com os outros. Nas dificuldades de provas, procurávamos ajudar uns aos outros e aquele que estivem melhor numa matéria passava cola para que precisasse. Funcionou durante todo o curso. Éramos expertos em colar. Tínhamos uma boa experiência no assunto. Durante os quatro anos da faculdade, dessa turma nenhum repetiu uma matéria ou perdeu o ano. Éramos, podemos dizer assim, os quatro mosqueteiros em número maior. Enquanto eles eram quatros, nós éramos, dependendo, cinco ou seis.

Embora ajudássemos sempre uns aos outros, não havia esse negócio de um se escorar no outro e deixar de cumprir suas obrigações. Ocorria apenas que um tinha mais facilidade do que o outro e no aperto nos ajudávamos mutuamente. Sempre estudávamos e cumpríamos com nossas obrigações. Os trabalhos em equipe eram feitos em equipe. Nada de um fazer e os demais assinarem. No período de provas todos iam à luta: estudar.

Na época tínhamos aulas quatro vezes por semana. De segunda a sábado, sendo que dois dias, entre segunda e sexta, eram de folgas. Ocasiões que aproveitávamos para estudar, botar as matérias em dias. Nos reuníamos sempre na própria faculdade, por ser um local mais central o que facilitava nossos encontro. Por ser o Rio de Janeiro uma cidade enorme, já na época e todos morarem distantes um dos outros, era a melhor solução, pois um vinha de Jacarepaguá, outro do bairro de Fátima, no Sampaio, de Colubandê, da Tijuca, enfim de diversos bairros. Além, disso havia espaço disponível na faculdade.

Antes de continuar, gostaria apenas de dar uma explicação técnica àqueles que não estudaram e não entendem de Contabilidade. Toda empresa em geral necessita de controlar seu patrimônio. Esse controle é feito por meio de registros contábeis, técnica que nos permite, a qualquer tempo, levantar o patrimônio da empresa e apurar, em determinado período, geralmente de um ano, seus resultados: se lucro ou se prejuízo. Esse determinado período para apuração de resultados é estabelecido por lei.
Para leigos em assuntos contábeis, de imediato, surgirá a pergunta, mas se a empresa existir há mais anos os resultados serão somente de um ano? Não. Acontece que após a apuração do resultado anual, o que for apurado: lucro ou prejuízo será incorporado ao patrimônio da empresa, ou seja, quando a empresa foi criada, seus donos colocaram um capital nela. Apurado lucro ou prejuízo, após um ano, este lucro ou prejuízo será somado ou diminuído do capital. No ano seguinte procede-se novamente da mesma forma e assim sucessivamente enquanto ela existir. Em termos gerais é mais ou menos isso.
Entretanto, para se apurar os resultados e controlar o patrimônio, além dos registros contábeis, as empresas são obrigadas a emitir os seguintes relatórios: balanço patrimonial, conhecido no meio contábil só por balanço; demonstração do resultado do exercício; demonstrativo da origem e aplicações de recursos; e demonstrativo das mutações do patrimônio líquido. Aqui não estou generalizando apenas para efeitos elucidativo, pois na prática existem algumas empresas que não têm obrigatoriedade de emitir tais demonstrativos. Mas também não nos interessa divagar sobre Contabilidade, apenas dar uma informação para entendimento do caso em si. Dos demonstrativos que citei apenas o balanço patrimonial, popularmente conhecido por balanço, nos interessa, para entendimento do caso.

Pois bem, certo dia já no terceiro ou quarto ano, não me recordo bem, estávamos estudando numa sala lá mesmo na faculdade, nos preparando para uma prova, eu, Arlito, Benito, Arlindo e Wagner sentados bem lá no fundo da sala de maneira que o barulho do corredor nos perturbasse menos.

De repente, entra uma garota, e logo atrás vem um sujeito, nem tão perto nem tão longe, mas o suficiente para se ficar esperto e notar que estavam juntos. A garota, não me lembrava dela, depois fiquei sabendo que fizera o pré-vestibular conosco, isso há um quatro anos, e não havia passado no vestibular, aprovação conseguida dois ou três anos depois. Como a turma do pré-vestibular era muito numerosa, e sempre em qualquer lugar temos nossas afinidades, inclusive minha amizade com Benito e Arlito remota da faculdade, embora tenhamo-nos conhecido antes, no curso pré-vestibular, de alguns ex-colegas de cursinho, que somente entraram na faculdade bem depois de nós, não lembrava mais. E essa garota era um destes casos.

Mas quando a garota entrou, Benito, sempre muito galanteador, não se conteve. A euforia foi grande. De imediato se levantou e se encaminhou ao encontro dela. Ele tinha uma mania de levantar as calças pelos cós, usando os dois braços, sem segurá-la com a mão, e fazendo se gesto tradicional se encaminhou ao encontro dela, que gentilmente estendeu-lhe a mão, mas ele não se dando por satisfeito tentou beijá-la, e ao mesmo tempo exclamou:

- Meu amor! Minha vida! Quanta saudade! E quanto mais ela se esquivava, mais ele tentava beijá-la e não se dava conta que ela estava tentando evitar uma situação embaraçosa. Entretanto, vendo que não tinha mais como contê-lo, somente se esquivado, disse:

- Benito, conhece meu marido?

Quando ela falou isso, e ele viu o sujeito atrás dela, um guarda-roupa, forte, alto, com um metro e oitenta e tanto, ficou branco. Da cor de cal. Titubeou, mas a muito custo conseguiu estender a mão e dizer: muito prazer. Porém, o clima ficou tenso.

Do lugar onde me encontrava, fiquei sem saber o que fazer, só observando, à espera do desenrolar dos acontecimentos. Entretanto, o Arlito prevendo uma possível confusão, levantou-se, foi ao encontro do cara e tentou contornar a situação. Como já o conhecia, sabia inclusive que naquele dia o Guarda-roupa estava fazendo prova de Contabilidade, Arlito estendeu a mão e puxou conversa.

- E aí cara, tudo bem?

- Tudo. Respondeu o sujeito secamente, mostrando que não estava querendo papo.

- Mas o Arlito, que sempre foi um cara de boa conversa, expansivo, não se preocupou com a rispidez do sujeito e continuou: terminou a prova?

- Quem sabe, sabe.

- Que foi que caiu? Um balanço?

- Tu querias que caísse uma árvore, porra?

O papo se encerrou ali mesmo, com aquele clima pesado.Nós, eu e os outros dois colegas, para evitarmos problemas, fomos saindo de fininha, do que se aproveitaram os dois: Benito e Arlito para nos acompanharem.
Lá fora, depois de passada a tensão, demos umas boas risadas e sempre que comentávamos o assunto com o Benito ele respondia:

- Rapaz, esquece essa tristeza.

 

 


 

NOÉ O PRIMEIRO SUPER-HOMEM

 

Muitos anos depois das escaramuças de Eva no paraíso, quando por sua culpa Adão comeu a fruta proibida e os homens foram condenados ao fogo do inferno, e a ganhar seu sustento com o suor do próprio rosto, a vida transcorria monótona para Noé e sua família: a mulher, três filhos e as três noras.

Homem, justo, sensível, temente a Deus, que vivia para família. De casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Se bem que trabalho e casa eram praticamente a continuação um do outro, visto que o único trabalho era o pastoreio; a agricultura ainda era explorada comercial e marginalmente com desmatamento desenfreado para plantação de soja, maconha, ópio, cocaína, pasto para gado.

Sem as modernidades atuais, o único passatempo de Noé era trabalhar e com seus seiscentos anos, de vez em quando dar uma trepada na coitada da mulher, que numa idade muito avançada também, já não agüentava mais os assédios sexuais de Noé, a quem poderíamos chamar velho tarado. Olhe, numa época sem Viagra, e o sujeito com seiscentos anos, ainda encarava uma velha. É mole? Um tesão deste faz inveja até ao anão da Débora Soft. Pra quem não conhece, Débora Soft era uma “stripper” aqui do Ceará que se elegeu vereadora e deixou o ramo.

Como dizíamos, a monotonia tomava conta das entranhas dos demais habitantes daquela região onde hoje se encontra a Turquia, perto do Monte Ararat, mesmo tendo a evolução humana, em número de habitantes, crescido bastante. Não se via mais só um casal: Adão e Eva, mas muita gente: homens e mulheres aos milhares.

Os filhos de Deus, vendo aquela legião de belas filhas dos homens, começaram a desposá-las. O termo filhos de Deus e filhas dos homens está sendo usado como na Bíblia; que se refere aos homens como filhos de Deus, e às mulheres como filhas dos homens. No mínimo, se quem escreveu a Bíblia gostasse mesmo de mulheres, deveria chamá-las semi-deusas. Acho que os escritores bíblicos pertenciam à família daqueles padres de Boston que transavam à força com garotos e como prêmio de consolação, João Paulo II transferiu o bispo da cidade para Roma, mas não vamos entrar neste assunto, mesmo porque parece que Deus tem raiva de mulher porque não tinha mãe. Mas voltando ao nosso tema, Deus num ato de imenso ciúme, e a baitolagem começou aí, disse: “Meu espírito não permanecerá para sempre no homem, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será só de cento e vinte anos.”

Antes de continuar nossas perquirições, façamos um pequeno aparte, e tracemos comentário sobre a personalidade divina: violenta, rancorosa, acima de tudo doentia e passional. Somente porque Adão e Eva comeram o fruto proibido, foram condenados ao pecado e com isso a queimar eternamente no fogo do inferno. Ora, a justiça humana é muito mais justa. Veja o seguinte, se uma pessoa, por exemplo, mata outra aqui no Brasil a pena poderá chegar a trinta anos no máximo. No paraíso, se o cara come uma maçã, uma maçã, não é uma moça, vai para o fogo por toda eternidade, e como se não bastasse a pena é extensivo a todos seus descendentes. Imagine se a comida fosse mesmo uma moça. Maldade ou não? Pura. Vingança. Injustiça. Rancor.

Por outro lado, Deus é ciumento, pois como diria Haroldão, o hétero, não admitia concorrência das rachadas. Quando viu que os homens estavam desposando as mulheres resolveu acabar com a Terra, mandando o dilúvio.

Ora, só por isso Ele mandou o dilúvio. Se visse a baitolagem de hoje campeando solta no mundo; as lésbicas atacando por todos os lados; os simpatizantes apoiando, e nem por isso o mundo tem outro dilúvio. Claro, aqui no Brasil tem mensalão, Renan Calheiros, valerioduto, propinoduto, sanguessugas, Lula; Nos Estados Unidos guerra do Iraque, Busch; na Ásia Bin Laden, tsunami, coisas menores que o dilúvio. Portanto, os critérios divinos são incompreensíveis. Mas aqui nos interessa a arca de Noé, portanto, vamos adiante.

Vendo aquilo, ou seja, o amor entre homens e mulheres - imagina se Ele fosse ao Festival de Jazz e Blues em Guaramiranga, e visse macho chupando a língua de outro; mulher a de mulher; a putaria correndo solta, Deus entendeu ser coisa maléfica, como os padres entendem também, e como dito resolveu exterminar todos seres vivos da face da terra, isto é, além dos homens, os demais animais que não tinham nada a ver com a putaria, mas também receberam o castigo. Se é que se pode chamar putaria um homem namorar uma mulher. Mesmo se fosse num cabaré ainda seria normal.

Mas, arrependendo-Se, vira em Noé um homem justo. Voltou atrás e resolveu dar uma chance à humanidade, por causa e através de Noé, que mesmo assim levou sua porrada. Explicando:.Noé era o único ser humano justo naquela barafunda toda, de acordo com os critérios divinos. Segundo os termos bíblicos, está bem claro, a raiva divina culminou com a decisão de exterminar todos os seres vivos sobre a terra, e devido ao fato dos filhos de Deus estarem desposando as filhas dos homens. Assim sendo, Noé e seus filhos eram os filhos de Deus, casados com as filhas dos homens, mas Deus não condenava estes casamento – Noé e seus descendentes. Porque então raiva tão intensa e insana contra restante dos homens, os demais animais e aparentemente menor contra Noé? Aparentemente menor porque os demais homens foram extintos e Noé castigado impiedosamente, mesmo sendo justo. É o próprio Deus afirma a justeza de Noé, através da Bíblia, mas mesmo assim ainda foi obrigado a construir a tal arca.

Ora, sendo Deus, justo e bom, primeiro: não deveria castigar Noé. Segundo: se fosse exterminar os homens e dar uma chance a Noé, por que Ele mesmo não fez a arca e colocou o que tinha que ser colocado dentro? Terceiro: que porra os animais tinham a ver com os problemas da humanidade, se não contribuíram para eles? Porque penalizá-los? Veja quanta injustiça.

Entretanto, Deus, num momento de infinito amor, decidiu poupar o homem e o restante da natureza, e com Noé fez uma aliança. Noé e sua família fariam uma arca de duzentos metros de comprimento, por trinta e três metros de largura, por vinte metros de altura, com uma abertura de sessenta centímetros, toda de madeira resinosa, que deveria ser besuntada por dentro e por fora.

Feita a arca, dentro dela seriam colocados, além de Noé e seus parentes, um casal de cada ser vivo existente sobre a terra: ave, réptil, quadrúpede. Essa mesma ordem, no entanto, posteriormente, foi modificada, ao invés disso ficou, então, estabelecido que seriam sete casais de cada ser puro e dois casais de cada ser impuro.
A classificação de puros e impuros ficaria por conta de Noé. Acredita-se que foi assim, porque naquela época não havia nem lápis nem papel, e se Deus fosse dizer quais eram os seres puros e os impuros, Noé não teria condições de decorar tantos nomes. Por outro lado, como Noé faria a distinção entre um e outro, se não tinha conhecimento sobre o assunto? O negócio seria no chute mesmo.

Mas voltando às dimensões da arca, todas devidamente retiradas da Bíblia sagrada, apenas transformadas para o sistema métrico decimal atual, começamos a estabelecer algumas conjecturas, se possível ou não sua confecção. Afora a perquirição da possibilidade de se atender as demais determinações, com relação aos animais a serem colocados dentro, à alimentação, ao tratamento por quarenta dias e quarenta noites, que serão vistas no decorrer da análise.

Por isso, passemos em primeiro lugar à arca propriamente dita. De acordo com as medidas estabelecidas, para se construir a tal arca de duzentos metros de comprimento, considerando que fossem usadas toras de madeira de quarenta metros cada uma, com diâmetro de um metro, seriam necessárias mais ou menos umas mil toras de madeira. Número estimado, superficialmente, apenas para efeito de raciocínio, e calculado por suposição, sem nenhum detalhe técnico ou equação matemática mais aprofundada, soma, multiplicação e divisão.

Se considerarmos que um homem de estatura mediana, ou seja, de um metro e setenta e cinco a um metro e oitenta pesa aproximadamente oitenta quilos, uma tora de madeira de quarenta metros deve pesar em torno de mil e quinhentos quilos, mais ou menos. Arredondado para efeito de cálculo.
Feito isso, começam as indagações. Como poderiam oito velhos, digo oito velhos porque Noé tinha seiscentos anos quando tudo aconteceu. Se ele tinha seiscentos anos, provavelmente a velha dele beirava isso; os filhos, considerando que foram concebidos quando o casal tinha uns cem anos, já estavam com mais de quatrocentos anos; a idade das esposas também estaria próxima disso. Derrubar, serrar, transportar e empilhar tão grandes toras de madeiras, quando não havia meio de transporte, ferramenta, empilhadeira, guindaste seria possível?

Os mais crentes poderão até questionar o problema das pirâmides, mas não esqueçam que para construção delas havia muito mais homens trabalhando. Aqui não. São somente oito, ou melhor, quatro homens e quatro mulheres e a força de um homem é bem superior a de uma mulher.
Mas supondo que este primeiro problema tenha sido superado. Pra Deus tudo é possível, dirão os fanáticos religiosos. Só não se sabe porque Ele mesmo não fez a tal arca, ou evitou sua fabricação não mandando o dilúvio, ou mesmo exterminando os homens e os animais de uma maneira mais fácil, para evitar problemas a quem não tinha nada a ver com o assunto. Mas minimize esse problema também, embora no conceito de arquitetura e engenharia Deus não entendem porra nenhuma. Se fosse projetar e construir Brasília o caos seria ainda pior.

Superado o problema da madeira, tem-se outro bem maior. Depois de empilhada umas sobre as outras, mandou que fosse untada por dentro e por fora com betume. Betume segundo Aurélio é: “mistura líquida, sólida ou semi-sólida de hidrocarbonetos, solúvel em solventes orgânicos, natural ou obtida em processo de destilação: pez mineral.” Hoje mesmo muita gente ainda não sabe nem o que é isso, imagine quando ocorreu o dilúvio. Entretanto, em outra parte de seu dicionário Aurélio diz que pez é piche, alcatrão. Naquele tempo como seria possível se encontrar ou se fazer tal produto?

Mas resolvida essa quimera, surgem outras. A arca é na realidade um caixão de três andares, sem ao menos ter a linha d’água, ou seja, a parte do casco que fica submersa, calculada de acordo as especificações do navio para que ele não afunde. Falta-lhe ainda um leme, ou timão, como queiram, que servisse para direcionar a coisa. Sem ele ficava ao sabor dos ventos, das ondas, dos repuxos das águas, isto é, sem qualquer direção. Além da falta de tais componentes, e aqui se falou do mínimo, pois um barco por menor que seja é bem diferente disto que estamos descrevendo. E este ainda tinha três andares, com uma pequena abertura de cinqüenta a sessenta centímetros, pesando, se os cálculos apresentados aqui fosse corretos, aproximadamente mil e quinhentas toneladas. Mil e quinhentas toneladas, não confundir com mil e quinhentos quilos.

Essa barcaça, ou melhor, carcaça ainda estava repleta de animais. Animais pesados e animais leves. Animais ferozes e animais mansos. Animais carnívoros e animais herbívoros. Animais inofensivos e animais peçonhentos. Enfim tudo que havia sobre a terra: répteis, quadrúpedes e aves, assim mesmo como na Bíblia, e cuja base alimentar de um para outro era bem diferente. Mesmo os herbívoros não comiam as mesmas ervas. Carnívoros comiam coisas diferentes. Enquanto uns gostavam de javali, por exemplo, outros de zebra, gnus, gazela, ou seja, a variedade de comida para os animais tinha de ser diversa. E vai por aí. Como seria possível se conciliar tantas divergências?

Agora imagine como seria possível também se juntar cobra com qualquer animal. Leões com gazelas. Leopardos com hienas. Cachorro com gato. Veado com tigre. Gibão com urso. Lobo com urso., com rena.
Se o leitor prestou atenção, viu que não se falou dos insetos, afora as pulgas e os piolhos, aquelas, se os cachorros foram, iriam juntas, e esses com a família de Noé e em quantidade bem superior à pedida. Mas estamos falando de mosca, mosquito, aranha, lagarta, barata, abelha, borboleta, formiga, cupim, mariposa, vaga-lume, muriçoca, inseto da dengue, mosca tse-tsé, ou mosca do sono encontrada só na África, abelhas africanas.
E seria possível se colocar um exame de abelhas africanas dentro da arca e impedi-las de atacar o restante dos animais? Bastaria somente Noé chegar para a rainha e dizer: “Não perturbe os animais aqui dentro, pois se forem perturbado não poderão se socorrer. Se saírem da arca cairão na água e morrerão afogados.” A rainha acatou a decisão, chamou suas súditas, deu o recado, e elas obedeceram. Fantástico. A mesma instrução, passou às formigas e foi obedecido!

Tem mais e ainda pior. A ciência estima que haja sobre a Terra cerca de dez milhões de espécies vivas, podendo, também de acordo com cientistas essa soma chegar a cem milhões. Mesmo com uma divergência monstruosa dessas, eles estão de acordo num ponto: a ciência somente conhece cerca de um milhão e oitocentas mil espécies. Assim mesmo, trabalhando-se com esse último número, é uma coisa fabulosa. Um milhão e oitocentas mil espécies de animais, que multiplicadas por dois, pois deveriam ir aos casais, e olhe que não se considerou a segunda hipótese bíblica de se colocar animais puros e impuros na arca, teríamos três milhões e seiscentos mil animais.

Quanto ao peso destes animais não se tem a mínima idéia. Mas vamos chutar só para desenvolver um raciocínio, que na média esses animais pesassem um quilo. Então teríamos três mil e seiscentas toneladas, que somadas as mil e quinhentas da Arca, daria um total de cinco mil e cem toneladas. Para se ter uma idéia, um navio moderno de duzentos e vinte metros, pesa em torno de cinqüenta e três toneladas. Esse tinha cinco mil e cem.

Com esse peso, será que a arca afundaria? Claro que sim. Mas o mais importante nem é isso. É se pegar os animais. Como poderiam se pegar tais animais. Considere o tamanho, a ferocidade, a peçonha, a velocidade, a distância que se encontravam de Noé. Uns na África. Outros nas Américas. Uns na Europa e Ásia. Outros na Oceania. Dá pra fazer?
Vai lá, peça ajuda a Deus e tente! Não dizem que quem tem fé move montanhas.

Com tudo isso, ainda tem mais um outro agravante: com se pegar, por exemplo, um condor escondido nas montanhas geladas dos Andes. Seria possível? E como colocar, por uma abertura de sessenta centímetros, um elefante? Imaginou? Viu? Deu?

Ah! Quase foi esquecido que a arca foi besuntada, portanto, estava hermeticamente fechada. Ali, os animais faziam suas necessidades. A catinga de merda deveria ser insuportável. Os gases emanados das evacuações, dentro daquele ambiente fechado, poderiam causar sua explosão. Mas tirando esse pormenor, vamos considerar que ficaram presos ali. Os raios e os relâmpagos da tempestade, mesmo se atingisse longe da arca, fatalmente a incendiaria.

Afora tudo isso, ainda nem foi falado do problema da água para os animais beberem, que Deus esqueceu. Local para colocar não havia. Uns pensarão. Ora, se estava chovendo seria fácil aparar água da chuva. Sim. Mas a quantidade necessária seria enorme, e a portinhola teria que ficar aberta por tanto tempo que acabaria inundando a arca, ajudando-a a afundar mais rápido ainda. Sem contar que não havia local para armazená-la com já frisado.

Contudo, ara não mais aprofundar o tema, abaixo vai transcrita a passagem bíblica sobre o assunto.

A Bíblia diz no Gênesis 5.6: “ O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos do seu coração estavam continuamente voltados para o mal. 6. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de íntima dor. 7 E disse: “Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves dos céus, porque eu me arrependo de os haver criado.” 8. Noé, entretanto, encontro graça aos olhos do Senhor. 14. Faze para ti uma arca de madeira resinosa: dividi-la-ás em compartimentos e a untará de betume por dentro e por fora. 15 E eis como a farás: seu comprimento será de trezentos côvados, sua largura de cinqüenta côvados, e sua altura de trinta. 16 Farás no cimo da raça uma abertura com a dimensão dum côvado. Porás a porta da arca a um lado, e construirás três andares de compartimentos. 17 Eis que vou fazer cair o dilúvio sobre a terra, uma inundação que exterminará todo o ser que tenha sopro de vida debaixo do céu. Tudo que está sobre a terra morrerá. 18 Mas farei aliança contigo: entrarás na arca com teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos. 19 De tudo o que vive, de cada espécie de animais, farás entrar na arca dois, macho e fêmea, para que vivam contigo. 20 De cada espécie de aves, e de cada espécie de quadrúpedes, e de cada espécie de animais que se arrastam sobre a terra, entrará um casal contigo, para que lhes possas conservar a vida. 21 Tomarás também contigo de todas as coisas para comer, e armazená-la-ás para que te sirvam de alimento, a ti e aos animais”.

Diante de tudo isso, só há uma conclusão se foi verdade. Devemos tudo a Noé. Nossa vida foi ele quem nos deu. Na bíblia, os católicos, os crentes, de uma maneira geral, fazem apologias a Salomão, a Davi, a Jesus. E Noé faz parte de um time de segundo ou terceiro escalão, quando na verdade é o mais importante.

Salomão pelo que se sabe viveu uma vida de fausto, com setecentas mulheres, considerado um grande sábio. Nisso estamos de acordo. Viver com setecentas mulheres sem problemas é muita sabedoria mesmo. Comer muita gente, foi sua única participação digna de menção bíblica, pois não fez mais nada. Ah! Teve o caso da mulher que queria ficar com o filho da outra e como ninguém sabia quem era realmente a mãe, ele mandou matar o menino. A mãe verdadeira, desesperada, não quis ver o filho morto, renunciou à maternidade em favor da mãe adotiva. E o caso foi solucionado.

Davi matou Golias. Numa jogada de sorte. Senão, com uma estratégia bem feita é até relativamente fácil se matar alguém. Veja os trezentos de Esparta, um pequeno exército do rei Leônidas que desafiou o exército persa, e lutou bravamente até o último homem, vencido somente pela traição de um conterrâneo.

Jesus dizem que multiplicou os pães. David Cooperfield faz isso na maior. Faz até sumir navio. Quanto a morrer na cruz, Joana D”Arc, que nem filha de Deus era, considerando a Bíblia, era filha dos homens, portanto, uma pessoa normal com menor capacidade de agüentar sofrimentos, passou seis meses sendo estuprada todos os dias por homens do exército francês. Depois foi queimada viva numa fogueira. Qual dos dois sofreu mais? E isso é verídico, enquanto Jesus não se sabe nem se existiu realmente.

Aqui vale até aquela máxima: “Quem mata um é assassino. Quem mata mil é herói.” Joana D’Arc sofreu muito mais e nem é essas heroínas toda.

Portanto, disso tudo só há uma conclusão: se a Bíblia é o livro dos livros, a palavra de Deus que não pode ser emendada, por não conter mentiras ou erros, Noé foi o maior homem do mundo, primeiro SUPER-HOMEM DA HISTÓRIA. Seus feitos são superiores aos de Bat-Man, de Super-Homem, de Homem-Aranha.

Mas, dirão os crentes a palavra de Deus é uma metáfora e não pode ser interpretada literalmente. Aí outro erro crasso e bem maior. Se é para ser interpretada pode haver interpretação falsa, errônea, dar margens à dúvidas, à aproveitadores, quem interpreta pode ter outras intenções e por aí vai. Assim tudo deveria ser direto, claro, explícito. Como diz Anatole France: “O estilo tem três virtudes: clareza, clareza, clareza. “ Todas faltam a Deus.

Outros dirão que o Antigo Testamento, em que consta o Gênesis, não tem mais validade e o que está escrito ali não tem mais serventia. Ora, será que Deus tem mais de uma palavra para a mesma coisa? Parece político do PT quando faz discurso antes de eleição. Uma coisa dita para ganhar eleição, não tem o mesmo significado semântico depois da eleição ganha.

 

 


 

O CARA QUE QUEBROU A TELEIMPRESSORA

 

As teleimpressoras foram aparelhos de comunicação com vida efêmera. Surgiram por aqui durante a década de setenta, e sobreviveram até o aparecimento do fax, que se não me falha a memória ocorreu por volta de oitenta e oito, oitenta e nove, pelo menos aqui no Ceará.

Pois bem, as teleimpressoras, para os mais novos, eram utilizadas geralmente por grandes empresas que necessitavam passar para outras empresas, ou filiais bastante dados que não poderiam ser informados por telefone e por telegrama – meio de comunicação mais usual da época para este tipo de informação – tornava-se mais difícil. Carta outro meio de comunicação da época levaria muito tempo, e também não se tinha certeza da entrega, a não ser quando registrada, mas para este tipo a demora ainda era maior.

Portanto, um das maneiras de comunicação mais rápido daquele tempo era por intermédio de uma espécie de máquina de escrever acoplada a um aparelho parecido com um aparelho de telex, cujos dados eram transmitidos pela Embratel – Empresa Brasileira de Telecomunicação – estatal doada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso a grandes grupos econômicos, sob alegação de baratear o custo Brasil. Mas este assunto não é o tema deste causo.

O custo das mensagens enviadas por teleimpressora tornava-se caro, quando enviadas durante o dia, pois as tarifas da Embratel eram altas. A solução era remeter durante à noite porque havia redução de tarifa depois de determinado horário. Assim sendo, como as tais teleimpressoras dispunham de dispositivo que permitiam a gravação de dados para transmissão programada em determinado horário, no horário de expediente normal das empresas, os funcionários datilografavam – o termo é este mesmo pois não passava de uma máquina de datilografia mais sofisticada – os dados, programavam a máquina para transmitir os dados em horários pré-estabelecidos com custos mais acessíveis.

No horário previsto, a máquina automaticamente entrava em funcionamento. Determinada empresa aqui do Ceará, do ramo de veículo, quando chegava o fim do mês, nunca época em que a infração era galopante, precisava receber informações da concessionária, assim como passar pedidos e outros dados. Geralmente, muitas informações que levavam hora a fio para serem passadas. Assim sendo, as tais máquinas no fim do mês, à noite, trabalhavam muito. Isso não significa que também não fossem utilizadas durante o dia.

Um empregado da concessionária, que trabalhava no serviço de limpeza, estava bastante acostumado a ver as máquinas trabalhando, mas, geralmente, sempre havia um empregado ou uma empregada operando a máquina durante o dia. Excelente empregado, de poucos conhecimentos, entretanto, principalmente, no que se referia ao funcionamento daquele instrumento.

Certa vez, tal empregado foi instado a substituir um vigia noturno que estava de férias. Como bom empregado. Há anos na empresa, aceitou de bom grado a incumbência e foi tirar as férias do colega.

Passado alguns dias no trabalho noturno, fim de mês, por volta de umas doze horas da noite, horário mais adequado, devido o baixo custo, para o funcionamento de tais máquinas, a da sala da gerência-geral entra sozinha em funcionamento. Desesperado ele olhou para aquela coisa que de repente começara a trabalhar e não entendeu nada, pois como dissera, sempre que ele via a máquina funcionando tinha alguém no comando. Corre de um lado para o outro, atrás de uma explicação, achando se coisa do outro mundo. Como a máquina não parava de trabalhar, sem saber como parar aquilo, puxou do cacete que usava para seu serviço e meteu o pau na máquina. Quebrou todinha. Não deixou um pedaço inteiro e ainda arrancou os fios da tomada.

Depois de tudo feito, o medo aumento, ele correu para a esquina, deixou a empresa sem vigilância e de lá não saiu até chegar o primeiro empregado no dia seguinte. Ainda apavorado contou o sucedido. O sujeito rindo, explicou que a máquina era automática e trabalhava sozinha quando programa, tranqüilizando-o.

Nisso surge outro dilema. Se a máquina era automática e ele tinha quebrado a máquina, fatalmente, seria demitido assim que a direção da empresa tomasse conhecimento do fato. Quando os diretores souberam, deram boas gargalhadas e o fato ainda foi notícia no jornalzinho da empresa. E o empregado perdoado, continuou lá até se aposentar.

 

 


 

O CURRAL

 

Por proceder de uma cidadezinha do interior do Ceará, Baturité, ao personagem desta história identificaremos por seu próprio topônimo: Baturité. Baturité transferiu-se de sua terra natal para Fortaleza no fim dos anos sessenta. A cidade tinha uns vinte mil habitantes, mais ou menos. Fortaleza, a capital do estado, era uma metrópole com suas duzentas e cinqüenta mil pessoas. A viagem para Fortaleza foi num sábado, pois a mãe dele, muito supersticiosa, não queria se mudar noutro dia da semana.

Baturité, entretanto, permaneceu na sua cidade até segunda-feira. Na ocasião, junho, mês de festas, estava havendo quadrilhas na cidade, e ele foi obrigado a permanecer lá para disputar um concurso.
Por não conhecer Fortaleza, matuto que era, e sem saber o novo endereço dos pais; e se soubesse também não faria qualquer diferença, pois não tinha como chegar lá, Baturité ficou dependendo da irmã mais velha apanhá-lo no ponto do ônibus, ou melhor, na agência. Naquele tempo, Fortaleza nem terminal rodoviário tinha; modernidade que chegou somente em 1974.

Com medo da irmã não está esperando por ele na agência, Baturité desceu do ônibus apavorado. Se por acaso ela não estivesse lá, ele ficaria sozinho na rua sem saber, nem ter pra onde ir. Se isso acontecesse, a única solução seria voltar para Baturité, mas também seria difícil: pois ele estava totalmente liso. Felizmente, quando chegou, a irmã já o aguardava.
Feliz, partiu para o novo lar. Pouco dias depois, já entrosado na cidade, com algumas amizades no bairro, tinha até a turma do futebol. No colégio, logo no primeiro dia de aula, foi suspenso por três dias por causa de uma cadeira; brigou com um colega. Mas isso nada tem a ver com este caso.
Num fim de semana, uns colegas chamaram Baturité para dar uma volta no Centro da cidade. Depois de combinado, saíram sábado à noitinha; ele e mais dois caras. Baturité, como já dito, não conhecia a cidade, menos ainda, o local para onde iam: Arraial Moura Brasil.

O local conhecido popularmente como Curral, um baixo meretrício freqüentado pela escória da cidade, ou o que havia de pior da malandragem da época. O nome foi dado porque ali funcionara um campo de concentração – é campo de concentração mesmo, na década de trinta. Fato que somente anos mais tarde foi reconhecido publicamente. Aliás, no Ceará existiram oito campos de concentração: dois em Fortaleza e outros seis no interior do estado.

Embora não seja o tema de nosso assunto, mas o fato merece uma pequena explicação.Em mil novecentos e trinta e dois, uma grande seca expulsou sertanejos, popularmente conhecidos por retirantes, do interior do Estado, que fugindo da seca causticante no sertão, na capital buscavam sobrevivência.

A seca naquela época, e ainda hoje mata muitos nordestinos. A sociedade local, mais precisamente a classe média alta, para se prevenir, pois não queria tais indesejáveis na porta de suas bonitas casas, fazia de tudo para impedi-los de entrar na capital do Estado.

Assim foram criados campos de concentração. No interior, principalmente, onde havia estrada de ferro eles foram confinados para não viajar para Fortaleza. Os que conseguiam burlar a vigilância, quando chegavam à capital, eram presos e isolados como animais nos dois campos existentes em Fortaleza: um deles o tal Arraial Moura Brasil, que ficou conhecido por Curral.

Desta forma, os figurões da época, e a sociedade não eram molestados. Ali, ou seja, nos locais determinados, os retirantes podiam fazer tudo, contanto que não saísse de lá pra nada, pois o governo se comprometeu assisti-los descentemente. Acordo não cumprido, como sempre ocorre no Brasil. O dinheiro destinado à população foi desviado. Isso, entretanto, deixa pra lá pois não é nosso objetivo, como já dito, apenas demos uma pequena explanação sobre o assunto para que as pessoas conheçam um pouco mais a nosso verdadeira história.

Mas voltando ao nosso assunto, o local era perigoso, embora o perigo daquela época fosse relativamente pequeno comparado aos perigos atuais, o mais que poderia acontecer era um furto, um descuido, uma briga, uma coisa desse tipo. Entretanto, aquele mundo era totalmente desconhecido de Baturité, que ficou de olho no vai-e-vem de putas, clientes, cafetões, bandidos e todo tipo de freqüentador do local, talvez até encantado com todo aquele movimento todo.

De repente, uma das mulheres do local, bastante nova, se engraçou de Baturité, que meio desconfiado e tímido ficou um pouco sem graça, quando foi convidando para fazer nenê. Expressão usada pelas freqüentadoras do local para atrair clientes.

Sem dinheiro, todavia, o negócio não deu certo. Mas Baturité ficou encantado com a gata do Curral e doido para dá uma com aquele monumento. De graça! Não teve como o negócio vingar, pois daquele faturamento dependia a sobrevivência dela. Entretanto, marinheiro de primeira viagem, marcou encontro para o sábado seguinte, quando tentaria arranjar dinheiro para pagar a moça.

No sábado seguinte, já com dinheiro no bolso, conseguido com o pai, se mandou para o Curral e às sete horas em ponto já estava lá. Procurou pela mulher e nada. Ficou rodando o local pra cima e pra baixo na esperança de encontrá-la. Cansado da procura, escorou-se num poste, à espera da sorte, ou que ela aparecesse. Nada. E por lá permaneceu por mais algum tempo conversando com seus dois companheiros.

Certo tempo depois, surge um fusca branco, e do carro descem três camaradas, todos vestidos de branco. Inclusive, também, os sapatos eram brancos. Um deles ao passar por Baturité diz:

- Rapaz, vá embora daqui. Isso aqui não é lugar para você, e saiu.

Baturité não se deu conta de nada, até porque não sabia do que se tratava mesmo e continuou despreocupadamente onde estava. Pouco depois, eles voltam e dirigindo-se novamente a Baturité, perguntaram sua idade.

- Dezesseis anos, respondeu sem ainda ter desconfiado de nada.

- Tu conheces estes dois caras que estão contigo?

Naquele momento, sem saber porque, ele entendeu o problema, e como seus amigos eram maiores de idade, veio uma luz, dando conta de que não poderia responder sim, pois poderia prejudicá-los.

- Não. Respondeu naturalmente.

- Tens certeza?

- Claro que sim. Diante da resposta incisiva, desistiram dos dois.

A conversa terminou, e eles se identificaram como membros do juizado de menores. Explico: antigamente, havia um grupo de trabalho voluntário chamado Juizado de Menores que percorria lugares suspeitos: cinemas, bares, cabarés, para ver se o local era freqüentando por menores de idade, que se flagrados eram levados pra casa, onde os membros do juizado procuravam conversar com os pais do garoto sobre o assunto, orientando-os e pedido-os para terem mais cuidado na criação dos filhos. Não sei se ainda existe este trabalho. Acho que não, tem o tal do conselho tutelar que serve somente para proteger bandidos, a quem chamam de menores infratores.

Mas voltando ao assunto, um dos membros do juizado, um baixinho, ordenou que Baturité fosse colocado no carro, que estranhou aquele procedimento, mas não se opus, por entender que não poderia resistir contra três sujeitos. A única coisa que poderia ter feito seria correr, mas pego de surpresa não arriscou. Por outro lado, se corresse e os amigos não o acompanhassem, também não saberia voltar para casa, como dissemos, por não conhecer ainda a cidade.

Dentro do carro, Baturité e o cara, que o levou, começaram a conversar, enquanto aguardavam o restante da equipe, que continuou a ronda. Nesse ínterim, o sujeito aproveitou para esclarecer Baturité sobre aquele ambiente, impróprio para menores, e que Baturité deveria ter ido embora quando eles mandaram.

Disso se aproveitou Baturité e pediu para ser solto, garantindo que iria imediatamente embora. O sujeito negou o pedido. Baturité, então, começou a se preocupar com o problema, principalmente, com a reação do pai dele. Sujeito brabo, matutão do interior acostumado à vida dura do sertão cearense. Chegar em casa acompanhado por integrantes do juizado de menores, que contariam ao pai dele onde o apanharam; era porrada na certa. E muita.

Naquele tempo, o respeito aos pais e aos mais velhos era grande, qualquer deslize não tinha jeito, a porrada comia solto; não tinha essa de psicologia não. A psicologia era da porrada. Por qualquer motivo se levava uma boa pisa, como eles diziam. Agora, imagine se pode haver uma pisa boa; grande até se acredita. E pensamento assim, pedia para o carro nunca mais chegar na casa dele.

O percurso demorou mesmo, pois passaram ainda por diversos lugares suspeitos. Fizeram verdadeira turnê pela cidade, ou melhor pelos cabarés. Andaram na Vó, no Farol do Mucuripe, e por outros locais mais. Mesmo assim não saia da cabeça de Baturité a reação do seu pai; o monte de porrada que levaria. Experiência de muitos anos no ofício de apanhar.
Ainda no carro, outra vez pediu para ir embora. Mas o sujeito negou novamente, alegando não poder, por ser uma decisão do chefe e que não podia desobedecer. Era ordem superior.

Depois de algum tempo em silêncio, recomeçaram a conversa:

- Qual o teu nome, perguntou o membro do juizado?

- Baturité.

- Não. Quero teu nome verdadeiro e completo.

- Baturite respondeu.

E devido ao sobrenome:

- O sujeito perguntou: de onde tu és?

- De Baturité.

- Sim, mas esse sobrenome vem de quem?

- Do meu pai.

- E qual é o nome do teu pai?

- Aderaldo Pinheiro.

- De onde ele é?

- De Senador Pompeu.

- Conheço ele, também sou de lá. Ele é meu primo.

Disso se aproveitou Baturité e pediu novamente para ir embora, achando que sendo parente do sujeito, ele teria pena e o soltaria.
Naquele tempo, qualquer parente era mesmo que irmão, pelo menos aqui no Ceará, e o mais velho tinha ascensão sobre os mais novos. E ele negou outra vez o pedido de liberar Baturité. Aliás, que não estava preso, apenas aguardando transporte oficial para ir pra casa, compulsoriamente.

- Não. Agora é que vou deixá-lo em casa mesmo. Além de querer rever teu pai, quero também fazer algumas recomendações para que ele tenha mais cuidado contigo.Ali não é lugar para adolescentes.
No caminho, morrendo de medo, Baturité ia imaginado como diminuir as porradas.

Aí tive uma idéia que poderia salvá-lo, ou transferir a pisa para o outro dia. Mesmo se acontecesse a segunda hipótese, talvez fosse bem melhor. Com o passar do tempo, podia ser que a raiva do pai dele diminuísse, e o velho batesse menos.

A casa de Baturité tinha duas entradas, e isso é importante explicar para que se entenda o que ocorreu na chegada. A casa em forma de “ele”; tinha duas portas de entrada. Uma na perna menor, ou parte de baixo da letra; e a outra na perna maior.

Como a segurança na época era total, não havia problemas de assaltos; a porta da perna menor ficava somente encostada, até a última pessoa da casa entrar, geralmente Baturité.,A irmã mais velha dele tinha de estar em casa no mais tardar às dez horas da noite. Portanto, qualquer pessoa da casa chegando, era só empurrar a porta e entrar. A outra porta dava pra sala e para o quarto, onde dormiam seus pais, e era fechada logo que eles iam dormir.

Ao chegar em casa, Baturité bateu na porta da sala e chamou pelo pai dele. Pode entrar, a porta lá de trás está aberta.Você não sabe disso, respondeu o velho, num misto de afirmação e também de repreensão ao mesmo tempo.

- Sei, mas não é isso, disse Baturité. Aqui fora têm três senhores querendo falar com o papai, tratamento dado aqui no Ceará quando nos dirigimos a nosso pai.

O velho estranhou, devido a hora, e perguntou quem era.

- Não sei. São três senhores que se dizem amigos do senhor, e gostariam de conversar um assunto. Não sei do que se trata.

- Como era seguro sair a qualquer hora do dia ou da noite, ele mandou aguardar um pouco enquanto se vestia.

Dado o recado, Baturité deixou os caras lá fora, e entrou pela porta dos fundos e foi direto se deitar; deixando a conversa entre eles transcorrer. E tratou logo de fazer que estava dormindo, pra ver se conseguia se livrar da surra, adiá-la, ou diminui as pancadas.
Depois de muita conversa, o pai dele, puto da vida, entra em casa aos palavrões, coisa que nunca ninguém da família tinha ouvido ele dizer, principalmente, na presença dos filhos e da mulher, embora somente ela e Baturite, que fingia dormir, estivessem ouvindo os gritos do velho, pois o restante da família era, exceto a irmã mais velha, todos bem pequenos e dificilmente o barulho dos gritos do velho os acordaria, ou se os acordou, nenhum deles demonstrou.

A mãe de Baturite, preocupada com o estado do marido, que fora de si, jurava matar o filho, tratou de acalmar os ânimos.

- Calma, calma, Aderaldo. Que foi que aconteceu?

Totalmente descontrolado, ele responde:

- Puta que pariu, eu aqui uma hora dessas, dormindo e este vagabundo por aí, no meio do mundo, nos cabarés. Agora mesmo ele vai se ver comigo. E partiu para matar Baturité de porrada, que calado dentro da rede, ouvindo a discussão, fazia de conta que estava dormindo e rezava para o pai dele se acalmar, que com a bainha de um facão na mão já vinha pronto para meter a sola no menino. Era costume do pai dele bater nos filhos com a tal bainha de couro cru, enorme, de um facão que usava para cortar mato no sítio.

Finalmente, depois de muita insistência, a mãe de Baturite pôde controlar a situação, convencendo o velho a falar com o filho no dia seguinte, ou melhor, naquele dia mesmo, mais tarde, pois já era madrugada; com o argumento de que ele estava dormindo e não era bom acordar o menino naquela circunstância. Isso pode até prejudicar a saúde do menino, argumentou, caso acorde assustado.

Bem cedo, mesmo sendo domingo, o velho saiu para trabalhar. Na pressa, a conversa ficou para depois, quando voltasse. Quando voltou, Baturité não estava em casa e ficou para depois, e esse depois não chegou até hoje.

Ele já está com oitenta e nove anos, acredita-se que tenha esquecido assunto, que aconteceu há mais de quarenta anos, e a vontade de me matar o filho pode ter desaparecido.

 

 


 

O DIARRÉIA

 

No Centro de Fortaleza existe uma praça muito bonita, conhecida como Parque das Crianças. Nos idos dos anos sessenta, como se diz atualmente, era o “point” da cidade. As tardes, exceto às segundas-feiras, quando fechavam para limpeza, o movimento de jovens ali era grande.

O parque ficava perto de dois colégios tradicionais da cidade: a Escola Normal Justiniano de Serpa, conhecida como Escola Normal, colégio público e o Colégio São José, este já não existe mais, portanto, o ficava.
O ensino público até a década de setenta era muito bom, pelo menos aqui no Ceará. Para se estudar numa escola pública era necessário se submeter a uma seleção ou ter um padrinho forte. O rigor era tamanho, que se reprovado num colégio público, o aluno não tinha mais direito de estudar noutro colégio estadual. A solução, quando havia reprovação em tais colégios, era o reprovado buscar ensino particular. Aí entrava o Colégio São José. Os alunos medíocres, reprovados nas escolas públicas, que desejavam ou os pais desejavam por eles, tinham que terminar os estudos no Colégio São José.

Já, a Escola Normal era um dos bons colégios da cidade, onde somente estudavam mulheres, daí a freqüências do Parque ser das melhores.

Colégio misto como se dizia, ou seja, onde estudavam homens e mulheres em qualquer turno, pouco exista. Apenas alguns colégios particulares, o tal São José: um deles. E lá estudavam mais mulheres do que homens, pelo menos no turno da tarde. O que também aumentava e melhorava e muito a freqüência no parque.

Nos colégios públicos, quando havia se aceitava homens e mulheres, eram os alunos separados por turnos. Geralmente os homens pela manhã e as mulheres à tarde. Não sei o porquê disso! Mas com o passar do tempo, por volta de 1973, as coisas começaram a mudar. O Liceu, por exemplo, outro colégio da rede pública, começou a aceitar homens e mulheres nos mesmos turnos. O Justiniano de Serpa, entretanto, mantiveram somente para mulheres por mais alguns anos.

Mas voltando ao nosso assunto, o local, ainda, é muito bucólico: o Parque das Crianças, embora não tenha mais freqüência de antes. Hoje, praticamente dominado por marginais, que afugentam as pessoas de lá, serve tão-somente de passagem para transeuntes que se dirigem ao trabalho.

Lá existe um pequeno lago, onde uns “pedalinhos” serviam de transporte aos casais apaixonados, descontraídos, que faziam juras de amor eterno. As águas do rio Pajeú, que formam o lago, não eram poluída, e o lago, sempre cheio, tinha águas limpas e cristalinas.

Nossa turma, eu e mais três amigos, invariavelmente, depois das quatros horas da tarde, ia pra lá e ficava até seis, seis e meia. Hora de ir para a escola, pois três de nós estudavam à noite: dois no Colégio São José e eu numa escola da CNEC - Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Acho que nem existe mais, pelo menos não tenho conhecimento. Deixa isso pra lá.

Quando chegávamos ao Parque, éramos três e esperávamos outro amigo que estudava no turno vespertino – o termo é velho, do Colégio São José, ou íamos até lá, buscá-lo. Formado o grupo, saíamos a passear, paquerando, claro. Para se usar o termo da época, flertava-se com uma e com outra garota.

Certo dia, em cumprimento ao nosso ritual no Parque da Criança fomos até o Colégio São José buscar o outro companheiro. Ao se chegar lá, ele logo disse que não podia nos acompanhar, naquele dia, porque estava doente. Entretanto, não disse a doença.

 

 

 

 

 

 

 

16.11.2007