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Ferreira Gullar


 


Ferreira Gullar Conta Tudo!!!

Final

 


Weydson — E por quê, então, o Conselho é uma "inutilidade"?

Gullar - Pelo seguinte: Quando o Conselho foi criado não existia o Ministério da Cultura. O primeiro Conselho criado dentro do Ministério da Educação exercia funções que hoje são do Ministério da Cultura, então, no momento que o gerou o pinto e o pinto saiu do ovo — quer dizer, o Ministério da Cultural saiu do Conselho de Cultura, e nasceu o Ministério, o Conselho deixou de existir; ele é uma "casca", o pinto já está "cantando de galo".

Weydson — Mas ainda assim, o Conselho não seria um fórum mais democrático para gerir a cultura do que um Ministério ?

Gullar — Mas o problema é que no momento em que você cria um Ministério da Cultura e há um Ministro, das duas uma, ou o Ministro dirige o Ministério ou o Conselho.

Weydson — Então você reconhece as razões do Ministro em desconhecer o Conselho?

Gullar — Não, isso é outra coisa. Eu disse pra essa Ministro, quando conversei com ele pela primeira vez, o que pensava do Conselho. Agora, disse também que era necessário discutir com os conselheiros, abrir uma discussão democrática. Mas o que ele está fazendo é desconhecer o Conselho, ele não o reúne — o Houaiss se demitiu. Porque como vice-presidente do Conselho — que é o presidente em exercício — não consegue convocá-lo porque o Ministro não permite. Então, isso é um órgão fantasma, um órgão cuja existência o Ministro não reconhece. Nesse sentido, tem que se reconhecer que é um problema a existência do Conselho de Cultura no Ministério, com as funções que se atribuiu ao Conselho. Os próprios conselheiros já reclamaram disso. Porque na prática, se o Conselho se reúne, vai decidir o quê ?. Sobre a Lei Rouanet? Mas dentro da estrutura do Ministério existe uma coisa chamada "Comitê Assessor da Lei Rouanet", que é quem decide qual projeto deve ser aceito, que destinação vai ter dinheiro, etc. Logo o Conselho de Cultura não tem função. Com isso o Conselho de Cultura vai dar palpite sobre o quê? Sobre tombamento? Mas existe o Patrimônio Histórico que tem essa função. Falar sobre política do Livro? Mas existe a Biblioteca Nacional, que desempenha essa função. Finalmente o Conselho, que se reuniria uma vez por mês, sem conhecirnento sobre o que está acontecendo no ministério, sem os instrumentos na mão — (porque o presidente da Biblioteca Nacional, por exemplo, tem à sua disposição toda a administração do Ministério, a burocracia do Ministério e os recursos do Ministério) — que não sabe quantos funcionários há em determinada área, quais os problemas, quanto se gasta nessa área, vai dar palpite ? Essa idéia de conselho tem de ser discutida no Brasil — sabe por quê? — porque isso aí é democratismo, é uma falsa democracia, é um falso exercício da democracia. Porque na verdade você não pode exercer função efetiva se você não tem conhecimento das condições em que o Ministério trabalha! Como você pode planejar, teorizar, sem o conhecimento da realidade?

Weydson — E qual a saída, em sua opinião?

Gullar — Os Conselhos têm de ser técnicos, como é o Conselho do Patrimônio, que só se reúne quando tem que decidir sobre determinado assunto específico, técnico. Por exemplo: "vamos ou não vamos tombar o Copacabana Palace?" Então, aí o presidente do Patrimônio Histórico não vai arcar sozinho com essa responsabilidade, porque existe o Conselho do Patrimônio Histórico com pessoas que são entendidas naquele assunto, que são especializadas naquilo, e que recebem toda a documentação referente ao processo de tombamento do Copacabana Palace. Estudam, preparam o seu parecer e é marcada uma reunião. Nessa reunião, na base do conhecimento técnico e dos documentos, é que se discute se vai ou não tombar o imóvel. Decidiu: Tomba. Está tombado. E o Conselho só se reunirá de novo quando houver um problema semelhante.

Weydson — O Poema Sujo, pela sua expressão, foi escrito a partir de uma reunião de fragmentos, num longo espaço de tempo, ou foi concebido e escrito apenas entre os meses em que está datado?

Gullar — O Poema Sujo foi escrito durante alguns meses, mas durante esses meses eu só fiz aquilo. No dia em que eu escrevi as primeiras cinco páginas do Poema Sujo, no mesmo dia, eu tinha de escrever uma carta para um amigo (Leandro Konder) que estava em Bonn (respondendo a uma carta que ele havia me mandado) e nessa eu escrevi: "Comecei a escrever um poema que terá cerca de cem páginas e que se chamará Poema Sujo". Eu tinha acabado de escrever as cinco primeiras páginas e sabia que ia ter por volta de cem páginas.

Weydson — Logo no início do poema, você optou por uma variação radical de ritmos e estruturas. Essa variação fazia parte do projeto inicial ?

Gullar — Ele é construído como uma na sinfonia. Tem vários movimentos. Mas eu não sabia como é que eu ia fazer, eu só tinha que ele ia ser um longo poema. Porque tudo o que havia sido movimentado dentro de mim para fazer aquele poema, a matéria que ia dar forma, era volumosa, muito rica. Era minha vida inteira. Então eu sabia que o poema ia ser longo.

Weydson — Partindo de uma experiência culta, erudita, dentro da literatura, como você aceitou ou decisão pela introdução de palavras, expressões comuns ou mesmo chulas dentro do seu universo mítico, dentro do poema?

Gullar — Eu acho que o poema é o lugar onde a linguagem comum vira poesia e talvez essa seja definição de poema para mim. Logo, uma das funções da poesia é transformar palavra chula em palavra poética, introduzir no universo poético toda experiência humana, tenha ela a carga de vida que tiver, a mancha suposta que tiver, seja erótica, doente, hipócrita. Porque tudo cabe dentro da poesia. A poesia é o lugar onde as coisas se transformam. Por isso é que eu digo que é o leitor que dá vida ao poema. Porque cada leitor faz de novo funcionar aquele processo que está ali. Que eu acionei pela primeira vez e que está pronto pra disparar a cada momento. Mas se o "cara" não for ler, aquela palavra vai ficar ali naquele papel como uma mancha preta, sem vida. É algo que ganha vida toda vez que um novo ser humano começa a ler.

Weydson — Fale um pouco mais sobre este processo: como ele funciona pra você?

Gullar — A idéia é de uma "máquina". O poema é um processo de transformação da linguagem. É o local onde este processo se dá. Como uma caldeira, na siderurgia, onde se bota cascalho e vira metal. E o local onde a expressão "filho-da-puta" vira poesia.

Weydson — Você acha que esse processo de transformação seria uma (ou a única) maneira de salvar a poesia numa sociedade capitalista, onde o consumo e a informação imediata são a base de tudo? Que lugar caberá à poesia numa sociedade de sobrevivência, de informatização? Haverá espaço para ela?

Gullar — Há! Claro. E é por isso que eu digo que a única função da poesia é comover as pessoas, e não apenas no sentido de despertar emoções. Porque a poesia lida com o teu lado de vida verdadeiro, com o teu lado de existência: com o amor, com o afeto, com a morte, com a perda. E isso não há computador que resolva. Porque o cara pode estar lá no computador escrevendo, mas se a mulher que ele ama for embora, ele endoida, e vai sofrer da mesma forma que sofria o cara que escrevia com pena de pato. Se a vida do cara não tem alegria, não se preenche, ele sofre, independente da televisão estar botando festa sem parar. Sofre até mais. A poesia é permanente porque lida com o que é permanente no ser humano. Há muita festa na televisão. Hoje, essa multidão que vai ver o Lulu Santos — centenas de pessoas pulando e berrando, parece coisa primitiva, primária. Nem a música que o cara está tocando está sendo ouvida. É só pular e gritar. Isso é para passar o tempo, é uma forma da juventude se enganar, se atordoar, e isso tem muito a ver com os tóxicos também. Não está desligado. Essa música, essa histeria, essa gritaria, é tudo um delírio. É tudo junto. E a verdade é que um garoto que agora tem 17 anos, daqui a pouco terá 37, depois 47, e aí? Então, se o cara não se enriquece com o teatro, com a poesia, com o romance, com a música que dão o que a realidade não dá — e empobrece a arte com banalidades — com essa arte de massa, aí é o fim. Porque a arte de massa é o contrário da arte, é a banalidade. Quando a arte procura criar um mundo permanente, um mundo da fantasia, um outro mundo para o homem, a arte de massa banaliza, e isto é conseqüentemente a banalização do ser humano. Alguns podem dizer: "Ah, esses caras que ficam pensando em emoção são uns babacas, uns velhos". Mas eles vão descobrir mais tarde que a vida está esperando por eles na esquina. E de repente eles se sentem uns bostas que não têm onde se apoiar. E aí vem aquela pergunta de Verlaine: "0 que fizeste da tua juventude?" Eu não estou dizendo que o cara deve ficar encucado, lendo o tempo todo, mas estou dando uma opinião crítica sobre essa ilusão que supõe que a poesia acabou porque um pessoal vive tocando guitarra e pulando. No meio disso, no entanto, tem muito jovem que está noutra. E a cada dia que passa tem mais jovens que estão noutra, por que aquilo é uma minoria. Parece maioria porque se colocam 20 mil pessoas berrando no Maracanãzinho. Mas o que é 20 mil numa cidade de 8 milhões de pessoas? Não é nada. E mesmo que você multiplique isso pela televisão e dê l milhão, continua minoria...

Weydson — Como era a sua relação com o "jovem promissor" José Sarney em São Luiz do Maranhão?

Gullar — Nós somos da mesma idade. O José Sarney era ligado a Bandeira Tribuzi, um poeta do Maranhão, que foi estudar na Europa e quando voltou trouxe as novidades da poesia moderna, da vanguarda. Os dois se tornaram amigos e fundaram uma revista, chamada "A Ilha". Eu e o Lago Burnett criamos uma outra revista que primeiro se chamou "Saci" e depois "Afluente". Eles tinham a coisa que o Tribuzi trouxe, de vanguardista. Nós, não; nós ainda tínhamos uma ligação com o passado, com uma coisa mais parnasiana. Depois tudo se fundiu num movimento só, ficou aquela geração de escritores jovens, abertos para uma transformação do Maranhão e da cultura maranhense.

Weydson — Eu sei que até pouco tempo você participava ativamente do carnaval de rua do Rio de janeiro, saindo inclusive à frente da Banda de Ipanema, como um dos mais animados foliões. Você ainda participa do Carnaval de rua?

Gullar — Eu sempre tive muita ligação com a música popular, e quando me casei com a Thereza (minha falecida esposa) ela era uma pessoa ligadíssima em música popular, o que era uma de nossas muitas afinidades. Como ela era carioca, desde que nós nos conhecemos ela se interessava muito pelos desfiles de carnaval. Nessa época — logo que cheguei ao Rio — eu tinha visto apenas um desfile, sozinho, trepado numa caixa de querosene lá na avenida. A partir daí, nós começamos a ir todos os anos. No início era na Avenida Presidente Vargas, em 54, 55, por aí. Depois nós arrastamos pelo nosso itinerário o Vianinha, o Paulo Pontes, o pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura) também, e passamos a freqüentar e participar de todos os desfiles. Mais tarde, a Thereza passou até a desfilar no Salgueiro.

Weydson — E você?

Gullar — Na verdade, eu nunca quis desfilar. Porque aí não combinava muito com a minha cabeça...

Weydson — E na Banda de Ipanema?

Gullar — Mas a banda era um bloco de sujos. Então saíamos em grupo, brincando e tomando cerveja. Mas depois a própria Banda de Ipanema virou uma bagunça e foi de certo modo tomada por um pessoal meio barra-pesada e começou a ser perigoso, porque de repente sumia teu relógio, etc. Por isso eu passei mais a olhar do que participar. Até dois anos atrás eu ainda fui...

Weydson — Você chegou a ter uma amizade próxima com Manuel Bandeira? Como era a sua relação com ele?

Gullar — Eu nunca me aproximei dos grandes poetas da época. Nem do Drummond. No entanto, com quem eu tive uma certa proximidade foi com o Murilo Mendes, mas porque ele era amigo do Mário Pedrosa, e dele eu me aproximei porque ele não era poeta, mas crítico de arte. Porque quando eu cheguei ao Rio eu procurava não os escritores, mas os artistas plásticos e os críticos, e especialmente o Mário Pedrosa. Como ele era muito amigo do Murilo Mendes, me levou à casa dele e eu me tomei amigo do Murilo Mendes. E fui várias vezes à casa dele. Agora, o Bandeira eu conheci porque eu trabalhava no jornal do Brasil e ele era colaborador do jornal. E o Bandeira era uma simpatia de pessoa. Murilo, que também era simpático, delicado, estabelecia uma ligação um pouco distante pelo temperamento dele. Já o Bandeira era uma pessoa afetuosa, e despretensiosa. Ele não tinha essa mística de gênio, imortal, não. Inclusive, na época, incluiu uma referência a mim naquele livro dele que faz um estudo da poesia brasileira e traz uma antologia. Ele incluiu um poema meu na então nova edição do livro em que é feita uma menção à Luta Corporal. E como ele sempre ia levar a colaboração dele no jornal a gente conversava, se encontrava na esquina. Ele sempre muito engraçado, muito irônico... Então nossa relação foi essa, de jornal...

Weydson — E com o João Cabral de Melo Neto?

Gullar — Eu tenho muita simpatia pelo João Cabral. Apesar dessa imagem de poeta cerebral, quando eu o conheci, o jeito dele me lembrava muito o meu pai. Aqueles braços magros, a maneira de falar, era igualzinho ao meu pai. Por isso, também, eu sempre me senti muito à vontade com ele.

Weydson — O fato de ambos, assim como você, serem nordestinos, facilitou a aproximação?

Gullar — Eu acho que esse negócio de sermos todos nordestinos dá uma certa proximidade mesmo. E o fato de o Bandeira também ter o mesmo gênio, o mesmo temperamento — que tem algo de nordestino com a sua simplicidade — contribuiu para essa aproximação. Mas eu sempre fui muito de ficar no meu canto, de não procurar escritores, apesar de com o tempo ter tido muitos amigos escritores.

Weydson — E com o Drummond?

Gullar — O Drummond era uma pessoa mais fechada. Com o tempo também nos conhecemos através de encontros ocasionais, no lançamento de livros dele, em enterros de amigos comuns... Evidentemente ele tinha conhecimento de minha poesia. Quando eu mandava um livro meu para ele, ele às vezes respondia com um bilhete, com um livro oferecido, sendo sempre muito cordial. Mas havia gente que ficava ligando pra ficar conversando no telefone. Como não sou muito de telefonar, nunca mantive esse tipo de relação com ele. No entanto, havia uma relação carinhosa e respeitosa entre nós. Eu o respeitando como um grande poeta, como um mestre, e ele sendo gentil comigo.

Weydson — T. S. Eliot dizia que os poetas, antes de se lançarem em edições individuais, deviam fazer parte de antologias, onde ficariam conhecidos ao lado de outros poetas jovens da mesma geração. Qual a sua opinião sobre as antologias?

Gullar — Eu acho que é uma coisa positiva. A minha posição é de que, já que a poesia tem tão pouca divulgação, qualquer esforço no sentido de divulgar os poetas é positivo. Muitas vezes um livro isolado de determinado poeta não consegue alcançar um público maior, mas quando você o coloca numa antologia, dá uma boa repercussão, e termina alguém lendo um verso dele, tendo uma boa impressão, e aí vai procurar um livro daquele poeta. Acho que sempre é uma coisa positiva.

Weydson — Qual a sua posição quando se discute valor literário entre poesia e letra de música ?

Gullar — Não se trata de que poema é superior à letra de música. Não se trata disso. Ocorre que são gêneros literários diferentes. Todo mundo sabe que quando se faz um poema ele tem de se manter em pé pelo próprio recurso da linguagem verbal. Quando se faz letra de música ela vai se manter de pé juntamente com a melodia a qual ela se destina. Então, às vezes, uma canção que você canta com o maior prazer e que você acha muito bonita, quando você tira a música e lê a letra tem uma decepção. Mas isso pelo fato de que você tirou dali um elemento essencial, descaracterizou, porque a letra da canção está ligada à música da canção. Logo, esse fato marca a diferença entre esses gêneros literários. Um não precisa da música, independe dela, e por isso mesmo a sua elaboração verbal, vocabular, tem de ser muito apurada, muito exigente. Do contrário o poema não se põe de pé. Já a letra da canção, às vezes nem deve ser muito elaborada, se não torna-se difícil a sua inserção na música. Mas é por isso que criticar uma antologia de poemas que não inclua letras de música não está certo. Pode ocorrer, como no caso do Cacaso, que era um compositor e um poeta, que se for feita uma antologia de poetas da geração dele ele tem de ser incluído. Mas isso porque ele tinha livros de poemas publicados, tinha uma atividade de poeta, uma obra de poeta. Mas se ele só tivesse letras de canção então não haveria porquê. É mais ou menos como dizer que vai se fazer uma exposição da gravura brasileira e se incluir desenhos. Não quer dizer que gravura é melhor ou pior que desenho; sucede que desenho não é gravura.

Weydson — Você chegou a fazer alguma letra de música?

Gullar — O que há são poemas meus que foram musicados. Na maioria dos casos é isso. A letra do "Trenzinho Caipira", por exemplo, está no Poema Sujo.

Weydson — Inclusive você sugere, para cantá-lo, a música da Bachiana número 2, tocata, de Villa-Lobos...

Gullar - É claro que eu nem estava pensado em fazer aquilo, mas no curso do poema nasceu. Depois o Edu (Edu Lobo) tirou de lá, fez uma arranjo, e graças a isso a música do Villa-Lobos, belíssima, tornou-se popular. Eu tenho poemas que ficaram conhecidos na América Latina toda porque viraram canção popular. E conhecidos por determinados setores da população brasileira porque viraram canção. Do contrário, jamais seriam alcançados por essas pessoas. Por isso, a música tem a capacidade de popularizar e difundir a poesia. Por outro lado, quando você bota letra numa musica dita erudita, como é o caso de "Trnzindo Caipira", ela também se toma popular. Graças a isso, depois que o "Trenzinho" foi gravado pela primeira vez, foi feita até uma versão para crianças, gravada num disco infantil. E outros arranjos foram feitos. Hoje, até em propaganda de inscrição para recruta da Marinha se bota o "Trenzinho Caipira". Porque ele foi difundido.

Weydson — Você já disse que a sua primeira vontade, ou vocação artística, foi ser pintor. Que argumentos fizeram com que a opção pela poesia fosse definitiva?

Gullar — A minha primeira tentativa foi de ser pintor. Mas não era bem uma opção, porque eu passei um bom tempo fazendo as duas coisas. A verdade é que, através da palavra, eu tinha todo um mundo de experiências a comunicar. Quer dizer, eu nasci com a sensibilidade tanto para a literatura como para a pintura. Só que a capacidade de elaboração e realização verbal, literária, em mim, era muito maior do que a outra. Até pelo meu temperamento. Porque o cara ficar trancado dentro de um ateliê, pintando dias e dias, não é a minha, não dá pra mim. Eu sou muito inquieto, não dá.

Weydson — Ou seja, o poeta definitivamente falou mais alto...

Gullar — Mas a pintura continua a ser minha paixão. E eu te digo que às vezes, sob certos aspectos, a pintura me fala mais do que a literatura.

Weydson — Então escrever sobre pintura passou a ser uma das formas de estar muito próximo da arte...

Gullar — Ah, sim! É uma coisa que me dá o maior prazer: escrever sobre pintura. Evidentemente que não é ficar escrevendo à toa, mas quando eu me apaixono pela obra de um pintor ou por um quadro, eu escrevo sobre aquilo como se estivesse escrevendo um poema. É uma coisa que me dá prazer. Porque eu descubro coisas, eu penetro naquele mundo, naquele universo... Agora mesmo eu escrevi um texto para um livro de Siron Franco, que acaba de ser publicado sobre sua pintura, e ele me telefonou entusiasmado,, agradecido, gostando muito. E muitas outras pessoas que leram gostaram muito. Mas isso, como eu digo a essas pessoas, é porque eu escrevi sobre uma coisa que me apaixona: a pintura do Siron. Então é um mergulho, um barato, uma coisa fascinante escrever sobre ele. Eu não escrevo muito, talvez dez páginas, porque eu não quero ficar fazendo discurso à toa. Eu quero ir sucintamente no essencial daquilo.

Weydson — Baudelaire, no ensaio "Salão de 1846", incluído em Curiosítés Esthetiques — coletânea de artigos de crítica de arte — diz acreditar que "a melhor crítica é a que é divertida e poética; não uma crítica fria e algébrica, que a pretexto de tudo explicar, não expressa nem ódio nem amor e se despoja de toda espécie de personalidade", e afirma: "para ser correta, ou seja, para ter sua razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada, política"... Acho que isto reflete exatamente o que você está dizendo...

Gullar - É verdade. A paixão no sentido do que te revela o mundo, do que te revela a vida. A literatura, a arte, são mundos fantásticos, são criações extraordinárias do ser humano. O "mundo" que o homem criou com a sua fantasia foi para ele "habitar", porque a natureza é freqüentemente burocrática e assustadora. A natureza é boa quando você está na praia. Mas, na verdade, ela é impenetrável, e o homem só se sente bem no universo humano. Por isso ele criou cultura, arte, cria a linguagem, os significados, até a religião. A religião é uma das mais fantásticas criações do ser humano. Primeiro porque ela é a resposta à Pergunta Fundamental, ao problema do Sentido da Existência. Ela é a resposta, pois a filosofia não tem resposta pra isso.

Weydson — E através da religião, você acha que esta resposta pode ser alcançada?

Gullar - Como eu não sou religioso eu não tenho essa resposta. Mas quem é religioso a tem. E é uma coisa tão poderosa essa fantasia do ser humano criando a religião que gerou obras de arte fantásticas. É só você imaginar todas as catedrais góticas, românicas, barrocas, toda uma arquitetura, toda uma escultura, espalhadas pelo mundo inteiro e criadas pela religião, pela idéia de que existe um Deus. É uma coisa fantástica! E veja bem: se Deus não existe, é mais fantástico ainda! Porque aí é piração total! (risos) Mas isto é o mundo humano, que o ser humano criou em cima da natureza. E ao mesmo tempo um rio cheio de significados. Porque o homem quando ergue uma catedral, a quantidade de elementos simbólicos que potencialmente existem ali nem ele sabe e que depois vai-se nultiplicando e se tornando indecifráveis e se reproduzindo na imaginação de outros homens, mulheres e crianças.

Weydson — Como criação humana, portanto, essa "fantasia" — a religião — torna-se verdadeira...

Gullar — Para alguns. Mas ela é a resposta à Questão Fundamental, e por isso é uma coisa muito séria — por ser uma resposta à mais fundamental pergunta do ser humano que é: "Por que estou aqui ?" Agora, por ser uma coisa muito séria, ela é o produto da capacidade humana de criar, de imaginar, e aí essa obra o homem criou.

Weydson — Partamos das seguintes premissas: A religião, como resposta ou como saída para justificar os sofrimentos terrenos, promete uma vida melhor em uma outra dimensão, num mundo mundo paradisíaco que deve aguardar por aqueles que sofrem as misérias da pobreza, por exemplo. Na ideologia comunista, pelo contrário, justifica-se uma "igualdade" para as classes baseando-se em que esse "mundo melhor" deve ser vivido aqui mesmo, na terra, no país onde o sistema é instalado. E por isso mesmo é que a religião na cabe dentro do sistema, porque "prega" em direção contrária. Quando você diz que a religião, como "fantasia", só existe pra quem crê nessa fantasia, não poderíamos usar a mesma afirmativa em relação ao "comunismo", uma vez que como utopia, só existe para quem crê?

Gullar — (silêncio, reflete um pouco) — Isso aí é uma questão delicada; importante. Veja bem, o socialismo é uma tentativa do homem criar a sociedade justa. Porque o homem não tolera injustiça. É próprio do ser humano não aceitar a injustiça, a desigualdade. Você pode até ser injusto, mas você quer justificar o seu ato porque não aceita ser injusto. Então, o socialismo, como o comunismo, é uma tentativa de chegar a essa sociedade justa. Porque o capitalismo é uma força da natureza: Ele fecunda e destrói. Gera riqueza mas não gera igualdade. então morra quem morrer, porque ele vai levando tudo de roldão que nem um rio caudaloso. O que o socialismo pretende é que o processo social seja gerador de riquezas mas sem injustiça. E a divisão da riqueza e a igualdade. Logo, todas as concepções que compõem o ideário socialista e comunista visam estabelecer a eqüidade da distribuição da riqueza, acabar com a injustiça. Porém, o que a história mostrou foi que, ao por em prática essa idéia, não deu certo. E por "n" razões que não cabe analisar aqui. Mas os problemas surgidos na tentativa de por em prática o socialismo, de chegar à sociedade comunista, à sociedade sem classes, foram de tal ordem que inviabilizaram sua realização. E você pode dizer: "não, mas é porque o caminho tomado foi errado, ou porque sectarizou, ou por isso ou por aquilo". Mas a verdade é que a vida é muito complexa para ser planejada inteiramente. O que a experiência mostrou na União Soviética e nos outros países socialistas é que, quando você planeja, tende a enrijecer, e quando você tira os meios de produção da mão da iniciativa individual e põe na mão do Estado ele tem que planejar tudo, tem que produzir tudo, então ele tem que virar uma espécie de entidade onisciente que sabe tudo... E aí chegamos ao centro da contradição: se o marxismo "X" produz automóveis demais, irá ter prejuízo, desempregar gente e aí há um desastre porque produziu mais do que o mercado poderia consumir. Mas aí você planeja e produz ou de mais ou de menos, e começa a escassear, como ocorria na União Soviética. Eles produziam, por exemplo, presunto de qualidade "x". Você conseguia comprar esse presunto uma vez na sua vida e nunca mais achava de novo, porque sumia de tudo que é lugar. E isso era no calçado, na roupa, no eletrodoméstico, e você terminava empobrecendo. Se você planeja a produção de paletó em escala, você produz tamanhos pequeno, médio e grande. Mas aí tem gente magra demais, gorda demais, e você encontra na rua um cara com paletó pequeno demais, outro com um enorme. Isso sem contar que não tem a sofisticação da roupa ocidental, e outras coisas. Esses exemplos são só para não entrar em questões mais complexas da economia. então, o que a experiência demonstrou é que o projeto de planejamento centralizado não dá certo. E sem contar que no plano cultural isso gera coisas absurdas. Eu conversei com um poeta, lá (em Moscou) sobre o problema da revista literária e questionei se um poeta jovem, que fizesse uma poesia diferente, levasse seus poemas pra revista literária — que é do Estado — eles publicam ? Ele disse: — não, não publicam, porque quem dirige a revista do Estado não é um grande poeta, mas um escritor que preferiu ser diretor de revista do que ser poeta". Aí ele me perguntou: — "lá na sua terra é o Drummond que dirige os suplementos literários ou grandes revistas, não é ?" E aqui é mais grave, ele falou, porque o cara que está dirigindo a revista é membro do Partido para poder dirigi-la. Se ele publicar um poema literariamente subversivo ele é cobrado e destituído do cargo. Então, "a priori", ele não aceita mudança nenhuma. Tudo que é diferente ele não publica. Logo, a literatura pára. E isso se estende na arte e por aí afora porque começam a existir interesses partidários dentro do processo cultural. O cara quer defender o cargo dele...

Weydson — Isso não acontece também em órgãos da sociedade capitalista, com uma certa manipulação dos meios e "indicações" de escritores e artistas?

Gullar - Não. Quero. dizer, a manipulação há, mas o número de alternativas é muito maior. Se eu não publico no Diário de Pernambuco, eu publico no jornal do Commercio; se não publico no Jornal do Commercio, eu publico no Jornal do Brasil, e assim por diante. Porque há contradições entre eles, há interesses, diferenças... Não existe um capitalismo planejado onde se obedece a tudo. Sem contar que, se o cara do Jornal do Brasil publicar um texto seu que O Globo não quis publicar, ele não vai perder o emprego por causa disso. Nenhum editor de suplemento vai perder o emprego porque publicou um poema esquisito. A mesma coisa nas editoras. E eu não digo que seja fácil publicar um livro, mas você não tem uma única mente orientando o que deve ser publicado por todas as editoras do país. Porque, do contrário, um Estado que tem uma "filosofia" tende ao sectarismo. Não tem saída. Da mesma forma é se você cria um "estado religioso", como aconteceu com o bispo Macedo. Simplesmente porque o repórter do jornal dele resolveu noticiar o outro lado, foi mandado embora, Então, resumindo o "angu": o socialismo continua a ser o ideal das pessoas conscientes da sociedade porque ninguém aceita que a injustiça seja uma coisa normal. E embora ele tenha fracassado na prática, como representa a necessidade de justiça que é inerente ao ser humano, ele não vai morrer. O seu ideal será permanente na cabeça das pessoas, da mesma maneira que você deseja que as pessoas sejam mais afetuosas, que a ciência se desenvolva, etc. São aspirações humanas que, conseguindo ou não, o homem continuará a perseguir e a buscar. É uma utopia inerente ao ser humano.

Weydson — Como você vê o momento literário no Brasil de hoje?

Gullar - É muito difícil fazer generalizações. Há momentos em que, não se sabe por que, se produz muita literatura de qualidade, e há momentos em que se produz quase nada. Ninguém sabe o que determina isso. Assim como em determinadas épocas a pintura e a música florescem e em outras não. Eu sempre cito como exemplo o final do século XIX na França. Nunca vi tanto pintor genial junto. É inacreditável: Manet, Monet, Pissaro, Renoir, Cézanne, e em seguida, Gauguin, Matisse, Rédon, e depois é Picasso, é Braque... É inacreditável quando você pega da segunda metade do Séc. XIX até os anos 20, a quantidade de artistas geniais. Mas de repente pára. Qual é o cara genial que tem lá agora? Ninguém. Esses fenômenos são inexplicáveis. É claro que, às vezes, o florescimento cultural depende do florescimento econômico. Por exemplo: Ouro Preto, antiga Vila Rica. Lá você teve o florescimento da escultura, da arquitetura, numa cidadezinha no interior do Brasil, no séc. XVIII. Em compensação você tem exemplos de grande florescimento econômico sem ter o cultural. É claro que sem riqueza nenhuma você não constrói igrejas; você não pode produzir livros se não tiver recursos; mas você pode ter os recursos e não produzir. Todo mundo sabe que a criação artística é individual. Você pode até trabalhar em equipe, mas é uma soma de individualidades criadoras. Não existe a criação coletiva por si mesma. Então, o que importa, é que agora um poeta, um garoto de 17 anos, esteja lá no interior do Rio Grande Sul, ou de Pernambuco, fazendo uma grande poesia que nós ainda não conhecemos.

Weydson — Você acha que hoje ainda é preciso que esses novos talentos venham para o Rio de janeiro para terem suas obras reconhecidas?

Gullar — É claro que, onde ele estiver, ele terá que se manifestar, que se expor ao público, do contrário ele não será conhecido. Mas eu acho que no Brasil de hoje não há mais aquela necessidade de vir para o Rio de Janeiro para ser reconhecido. Há vários exemplos de artistas e escritores que vivem em seus estados e são reconhecidos. É claro que o Rio de janeiro e São Paulo continuam a ter uma capacidade de repercussão maior; sobretudo o Rio. Aqui essa capacidade é até maior do que em São Paulo. Isso faz parte da história brasileira. Entretanto, o grande escritor, o jovem poeta não precisa morar no Rio de janeiro. O que acontece é que, como hoje não há crítica literária, há uma dificuldade muito grande pra tudo que é escritor e poeta, more ele no Rio ou não. A crítica literária acabou, não existe mais.

Weydson — Não existe a boa crítica literária ou não existe de forma alguma?

Gullar — Não existe o exercício da crítica literária porque não há lugar onde exercê-la. Antigamente a gente tinha o rodapé de crítica, tinha o Álvaro Lins que semanalmente escrevia sobre o último romance publicado pelo Graciliano, ou o último livro de Contos do Breno Acioly, ou o último livro de poemas do Jorge Lima. Isso sempre estava lá. Mas os jornais acabaram com a crítica literária como acabaram com a crítica de teatro.

Weydson — Mas o Wilson Martins mantém uma coluna no "Idéias", do J.B.?

Gullar - É... Ele ainda tem uma coluna. A Folha de S. Paulo me parece que está abrindo um pequeno espaço para resenhas de livros, mas só resenhas mensais. Mas o crítico de verdade, aquele que analisava, discutia, consagrava a obra do escritor, é uma espécie em extinção, acabou. Dificulta pros jovens, porque ninguém fala, não há discussão, e não há, conseqüentemente, a difusão do seu livro. Porque na medida que você publicava um livro e era criticado, ou por bem ou por mal, se falava do livro, criava algo em torno.

Weydson — E qual a esperança pra esses novos que virão? (Em tempo: Wilson Martins está atualmente em O Globo e o Jornal de Poesia publica seus ensaios

Gullar - Em primeiro lugar eles não devem parar de escrever poesia, e mesmo porque não conseguiriam, se forem verdadeiros poetas. E claro que a vida muda, a sociedade muda e que não há mais aquele crítico, mas na medida em que sua poesia tenha alguma coisa que se comunique com as pessoas, ela irá sobreviver, porque irá passando de pessoa pra pessoa. Eu tenho o testemunho de vários poetas jovens que me mandam livros, que mandam pra outros poetas. As vezes acontece de um amigo ligar pra mim e dizer: "Você viu o livro daquele rapaz lá de Goiás, você recebeu o livro dele, procure ver, é interessante..." Quer dizer, não é uma coisa destituída de esperança ainda. Pela razão que poesia é uma coisa importante para as pessoas. Sem contar o público que habitualmente lê, o garoto que compra o livro, o jovem que está buscando e necessitando da poesia, que já leu Drummond, Vinicius, e começa a virar leitor de poesia. Porque a poesia tem isso, ela tem leitores fiéis, e isso é importante. O cara que depois que te descobre começa a buscar teus outros livros, sabe poemas de cor, e você passa a fazer parte da vida dele. E essa relação do leitor com a poesia, nem o romancista, porque o romancista tem outro tipo de fantasia e a relação que ele tem com a sua obra é diferente da relação que o poeta tem com a sua própria obra. Porque o poeta, muito mais que autor, é personagem. Um personagem que te dá a vida dele. É aquilo que o Whitman diz: "Isto não é um livro, quem toca nele toca num homen". Por isso a relação é diferente. Poesia quase não é literatura. Porque ela não quer ser literatura, quer ser carne. Eu tenho um ensaio em que digo: "0 poeta é contra as palavras. Ao contrário de tudo o que se diz, a poesia e o processo de desaparecimento da palavra". Não há uma "tese" que diz que poesia se faz com palavras? Pois é, mas para apagar a palavra. Porque a palavra é matéria, e poesia é arte, é espírito. Quando o poeta diz: "Eu, mistura de seda e péssimo" (Carlos Drummond de Andrade), desaparece a palavra "seda", desaparece a palavra "péssimo", e se cria uma coisa estranha que passa a ser substância, Logo, a poesia é o processo de desaparição da palavra, para a vida tomar o seu lugar. Aquilo que para a palavra comum está ausente, e que é a vida, na poesia se revela, e a palavra desaparece. É um processo de consumação e desaparecimento da palavra.

Weydson — É o único momento em que a vida toda é a palavra...

Gullar — Claro! É o esforço todo do poeta em revelar que a palavra é vida.

Weydson — Nós estamos indo numa direção diametralmente oposta à tese de Mallarmé, de que poesia se faz com palavras...

Gullar - Porque ele dá um lado da questão, na medida em que você tem que atentar para a palavra. Mas "se faz com palavras" como o fogo se faz com o carvão, para queimar o carvão e liberar a energia e a luz. Poesia se faz com palavras, mas para se obter a poesia ao se queimar e acabar com a palavra.
 



Weydson Barros Leal
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08/09/2005