Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Frederico Carvalho


 

Mundo paralelo

 

Descia o morro com dificuldade. Felizmente não chovia há algum tempo e o barro da favela estava bem seco; se não fosse assim, não poderia descer de muletas as rampas escorregadias. Suas pernas nada ajudavam: eram curtas, deformadas e paralíticas; na verdade eram apenas um arremedo de membros inferiores que nada contribuíam para a sua locomoção; até mesmo o atrapalhavam, e muito, no vaso sanitário. Tinha, atualmente, onze anos e, só aos seis, conseguira andar com auxílio daquelas muletas de madeira tosca.

Raramente descia o morro da favela; poucas vezes chegara ao asfalto. Hoje, pela manhã, alguém passara no seu barraco e dissera-lhe: “dá uma chegada na lixeira que você vai ter uma surpresa”.

Surpresa? Que surpresa? Nem mesmo perguntara se era boa ou má. Parecia haver uma força muito grande que o impelia a descer. Pegou suas muletas, tomou coragem e se propôs a ir até a lixeira.

Era um dia cinzento com algumas lufadas de vento frio. Se chovesse e molhasse o barro, não conseguiria mais voltar, a menos que algum vizinho e amigo o carregasse no colo. De qualquer maneira era dia.

Sua vó, antes de morrer, dizia sempre: “o dia é luz, vida... a noite é trevas, morte...”

Vizinho amigo? todos eram amigos e solidários. Dividiam o pouco que tinham, os agasalhos das campanhas da prefeitura, as tábuas para reformar o barraco... Só não dividiam as idéias e as opiniões; no morro imperava a lei do silêncio: ninguém via nada, ninguém sabia nada e ninguém falava nada. Favelado que fala muito é favelado morto.

Tião Macaco dominava, há vários anos, a tudo. Dominava e controlava o tóxico do morro, os recebimentos, a venda, o embalar, os “aviões”, os soldados... Com aquele arremedo de pernas nunca poderia ser “avião” e muito menos soldado.

Um outro bandido vinha, agora, querendo dominar o morro; chamava-se Gengis Can. Diziam, à boca pequena, que era melhor e mais amigo do povão que Tião Macaco.

Quase toda noite havia tiroteio: armas pesadas. Quando escurecia, todos eram obrigados a se recolherem; às vezes eram obrigados a deitarem-se embaixo da cama. “Dia é igual a luz, vida... noite é igual a trevas, morte...”

Aleijadinho, como era chamado, optava por Gengis Can. Tião Macaco nunca deixou que uma escola da prefeitura viesse para o morro. Todas as outras crianças desciam e iam estudar no asfalto, ele não podia descer sem pernas. Não sabia ler. Talvez fosse o único menino de onze anos da favela que não sabia ler. Quando sua vó era viva, levou-o, no colo, a um mês de aulas na escola do asfalto. Pensou se Gengis Can não seria melhor; pensou baixo: favelado que pensa alto é favelado morto, mesmo que tenha onze anos e duas pernas que só atrapalhavam.

Alguns colegas seus já eram “aviões”; defendiam algum trocado para ajudar no passadio de boca.

Uma lufada de vento trouxe o cheiro do lixão: estava perto.

“Vá até a lixeira que você vai ter uma surpresa”. Dô falou aquelas palavras e desceu correndo. Favelado que ousa ter opinião é favelado morto! Dô era seu amigo. Ele achava que Dô já era “avião”. Dô tivera uma opinião; Dô poderia vir a ser um amigo morto.

Chegou até a lixeira; ao lado havia um corpo coberto por jornais; o tiroteio da noite anterior... “ a noite é trevas, é morte ...” Havia um toco de vela que o vento apagara.

Todos passavam, indiferentes, como se fosse normal morrer crivado de balas junto ao lixo.

Olhava para as folhas de jornais: em todas elas havia letras grandes e letras miúdas. Os desenhos das letras o fascinavam; talvez por não saber ler. Em todas as folhas, na parte bem alta, havia quatro letras bem grandes que ele sabia significar “O Dia”. O único jornal que circulava no morro. Lembrou-se de sua vó: “o dia é luz, é vida; a noite é escuridão, é morte”.

Uma lufada de vento levantou os jornais. Ele conhecia aquele morto: era Tião Macaco. Agora para o morro uma nova era: era de Gengis Can, com mais atenção para o povão. Com uma escola da prefeitura em que ele pudesse aprender a ler e a escrever.
 

 

 

 

 

15.07.2005