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Francisco Carvalho


 


O tempo crava as esporas

 


 

Gerardo Mello Mourão, um dos maiores poetas da nossa língua, ensina que “A poesia é uma categoria humana”, e que o poeta é o representante mais dramático dessa categoria (O Bêbado de Deus, Green Forest do Brasil, São Paulo, 2001, p.20). O poeta é um ser radical. Alguém que vê o mundo por ângulos diferentes e, eventualmente, os expressa de forma dramática. É próprio da natureza do poeta celebrar as categorias do universo através de formas e conteúdos inaugurais.

Tais considerações vêm a propósito de uma coletânea de poemas de Társio Pinheiro, intitulada Janela para o caos, da qual foram extraídos os seguintes versos: “O poema/é sempre um Lázaro/à espera/de quem remova a pedra”. Em outro poema do conjunto (“Mostra”), encontra-se mais uma evidência da visão dramática do Autor em face da realidade que lhe fustiga o nervo poético: “Um rio turbulento essa avenida/cachos de frutas vãs esses semáforos/e esses mendigos sobre a praça/imóveis/são Rodins esculpidos pela fome”.

Em “Dies irae”, um desenho contundente dos flagelos climáticos que se abatem ciclicamente sobre o país dos nordestinos: “Tudo range:/a fechadura da porta/ a maçaneta, a missagra./O tempo crava as esporas”. Atentar para a beleza da palavra “missagra”, o mesmo que dobradiça. O quarto verso da estrofe (“O tempo crava as esporas”) destaca-se dos demais pelo emprego da metalinguagem, valorizada pela expressividade da metáfora. Nele o poeta resume, em poucas palavras, a tragédia devastadora da seca para as populações do Nordeste.

“Tudo suplica:/as folhas secas que eu piso/ as saúvas que eu esmago./ Um deus sucumbe aos meus pés”. Não precisa explicar nada. Os versos, expostos em moldura substantiva, nos falam de uma realidade palpável, contundente, aterradora. É o fantasma da seca puxando o seu cortejo de ossadas e arrastando o seu manto de folhas mortas. É o vento improvisando ladainhas para o funeral das estradas.

Mas a poesia de Társio Pinheiro não se restringe à monotemática da seca. Ela se nutre de vários outros motivos, desde a reflexão metafísica acerca de questões existenciais até o que se passa nas arenas de Madri, ensangüentadas pela agonia dos touros. “O olhar do tempo/me assusta/ por trás da máscara escura/ no olhar sem tempo/ dos touros”. O lirismo do poeta transita por coisas intangíveis como “Domar o espelho/ apaziguar o tempo/ domesticar a esfinge/ e seus enigmas”.

A linguagem destes novos poemas de Társio Pinheiro demonstra que ele vem utilizando diversas outras alternativas formais na elaboração de sua obra poética. Percebe-se claramente a existência de uma procura obstinada da palavra essencial – aquela que muitas vezes semeia ressonâncias imprevisíveis e inesperadas no corpo do poema. É o caso, por exemplo, do poema “Êxtase”, onde o verso “as sombras recolhem as asas” refulge com a fulgurância ostensiva de um diamante lapidado.

Diante de versos como este, o leitor tende a suspender a leitura por alguns momentos. É levado a imaginar que “as sombras que recolhem as asas” só podem ser de pássaros noturnos. Mas haverá de concluir que o poeta se refere, talvez, às sombras da noite, ou dessas nuvens cor de terra que algumas vezes galopam no céu quando o crepúsculo se aproxima. No que respeita às asas, isso fica por conta do sagrado direito do uso da metáfora, consubstancial ao ofício dos poetas, ou “por virtude do muito imaginar”, conforme está escrito em soneto lapidar de Camões.

Lá mais adiante, outro verso sai da sombra e mostra o seu dorso luzidio de cobra-coral que sai da toca à procura de alimento ou por simples desejo de exibir a nudez aos habitantes da paisagem: “A noite dorme na aldrava/da porta...” Mas, apesar disso, o poeta nos informa que “os cavalos fogem das sombras”. Eis outro momento de nítida expressividade poética. O que a estrofe do poema (“Fuga”) sugere ao leitor é exatamente isto: enquanto “a noite dorme na aldrava/ da porta, cavalos fogem da relva escura das sombras”. Cabe ao leitor identificar a origem dos cavalos e a natureza das sombras. Mas isso é outra história.

O que está dito nos versos supracitados é poesia pura e simples. Algo que nos leva a descobrir referenciais camuflados em palavras como: noite, aldrava, porta, cavalos, relva, sombras. A poesia consiste exatamente nisto: buscar novos significados para certas palavras desgastadas pelo ácido do tempo e da rotina. O mistério da poesia é saber que algumas palavras, aparentemente esvaziadas de seus conteúdos mágicos, podem despertar em nós, pelo sopro restaurador do verbo poético, sensações e emoções que nos fazem experimentar raros momentos de convivência literária e de fruição estética.


 



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30/05/2006