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Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

Felipe Fortuna


 


Eu leio e você canta

(Jornal do Brasil, Idéias, sábado, 16.08.2008)

 

 

                               Um modo objetivo de estabelecer a diferença entre “letra de música” e “poema” leva a reconhecer que “poema” é toda composição, quase sempre em versos, que não gera direitos autorais. Imagine-se Caetano Veloso unicamente como autor de Letra Só (2003): decerto auferiria os ganhos irrisórios, praticamente indignos, do excelente poeta Affonso Ávila, que, aos 80 anos, acaba de reunir sua obra poética em Homem ao Termo. Por não ser músico, tampouco seria possível que o poeta mineiro visse a sua obra bipartida num songbook, ao contrário do que aconteceu com o compositor baiano, que teve algumas de suas composições transcritas, em dois volumes, por Almir Chediak. No prefácio a Letra Só, Eucanaã Ferraz comenta o “ato de desarticulação/arranjo” que justifica a aparição da “letra de música” num livro sem partituras: “nesta condição de letra só, contrariando sua natureza de letra em melodia, a palavra passa a viver artificialmente a condição de escrita.” Trata-se de uma advertência que tenta precaver o leitor para muitos versos afinal inaceitáveis ao gosto de quem costuma ler poemas. Em “Tempo de Estio”, por exemplo, Caetano escreve:

Quero comer

Quero mamar

Quero preguiça

Quero querer

Quero sonhar

Felicidade

 

É o amor

É o calor

A cor da vida

É o verão

Meu coração

É a cidade.

            Obviamente, a linha que vai da existência de direitos autorais à existência de melodia passa pelos territórios do mercado e da música: encontram-se nessa travessia praticamente todos os fenômenos que dizem respeito à canção, distinguindo-a do poema literário. Para tanto, ninguém precisa exibir a desordem conceitual da professora Heloísa Buarque de Hollanda quando, no prefácio à antologia Esses Poetas (1998), afirmou que “em caráter irrevogável, a distinção entre a poesia escrita, a cantada e a visual não se sustenta mais como defensável.” Revogue-se a autoritária declaração por meio do depoimento de dois poetas e letristas, Antonio Cicero e Arnaldo Antunes. Em artigo para a Folha de S. Paulo (16.06.2007), o poeta de Guardar (1996) escreveu que “o poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. (...) a letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e escutada.” A conclusão não poderia ser outra: “um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. (...) Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria.” Por sua vez, o ex-líder dos Titãs, em entrevista à revista Cult, reconhece que “letra de música é indissociável da melodia. Canção é canção”, mas lamenta a persistência de uma desvalorização desta em relação ao poema escrito.

            Ora, o mercado indica que a desvalorização ocorre, justamente, na edição e distribuição do poema e, ainda mais radicalmente, na divulgação e no consumo do poema. Quanto ao status superior do poema em relação à canção, somente ocorre pela insistência, muito peculiarmente brasileira, em aproximar códigos diferentes. Em países de vasta e consolidada tradição literária, é impossível que o cancioneiro seja incluído no cânone dos poemas: não se imprimem as letras de Paul McCartney ao lado dos poemas de Philip Larkin – ainda que o poeta tenha escrito

As relações sexuais começaram

em mil novecentos e sessenta e três

(o que chegou tarde para mim) –

entre o fim da censura a Chatterley

e o primeiro LP dos Beatles.

            Parte da confusão existente quando se pretende distinguir “letra de música” e “poema” ocorre, ironicamente, pela imprecisão do termo “poesia”. Até mesmo os nossos dois dicionários básicos, o Aurélio e o Houaiss, definem “poesia” como “composição poética de pequena extensão”. O adjetivo “poética” é redundante em ambos os casos, uma vez que se vê definido como “que tem ou encerra poesia”. Nesse sentido, os 96 versos de “A Máquina do Mundo”, por sua extensão, não seriam “poesia”, ainda que o poema de Carlos Drummond de Andrade constitua um ponto alto da meditação filosófica em literatura, na tradição camoniana. Lamentavelmente, muitos se põem a perguntar, por equívoco, se “letra de música” é “poesia” (por que não seria?), quando pretendem, de fato, questionar a distinção entre “letra de música” e “poema”. Uma ironia suplementar diz respeito à “letra de música”: o fato de que esta é sempre uma composição de pequena extensão (a ocupar, quando impressa em livro, apenas uma página) e, portanto, confundindo-a uma vez mais com a definição tradicional de “poesia”.

            A oralidade intrínseca à “letra de música” produz, algumas vezes, não apenas versos memorizáveis, mas equívocos que dificilmente se encontram no “poema”. Almir Chediak explica que “quando todos pensam que o final da letra de “Trio Elétrico” [de Caetano Veloso] é ‘o trio elétrico o sol rompeu no meio di, no meio-dia’ ou ‘o trio elétrico só rompeu’ (...), na realidade ele termina por ‘o trio eletro-sol rompeu no meio di, no meio-dia’. Ouvindo o disco fica quase impossível entender a maneira correta (...).” Quem de fato produz ou produziu tanto a “letra de música” quanto o “poema” – a exemplo de Vinicius de Moraes, Waly Salomão e dos citados Arnaldo Antunes e Antonio Cicero – sabe que a distinção entre os termos não é nem acadêmica, nem inoportuna, nem desnecessária: representa, para surpresa dos amadores, uma estratégia para o consumo, um posicionamento intelectual, um depoimento sobre a obra.

            A insistência em considerar a “letra de música” um objeto a ser cogitado no cânone literário deveria, por outro lado, dar início à revisão imediata das antologias de poemas no Brasil: todas exibiriam, sempre que possível, as canções que se notabilizaram antes mesmo de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) com sua “Ó Abre Alas”. Caso contrário, essas antologias precisariam justificar por que a sofisticação das canções e sua aspiração a serem poemas literários coincidem com o período a partir da Bossa Nova, quando a modernidade da música popular brasileira se projetou no país marcado pelos arcaísmos, pela escassa educação e pelos baixíssimos índices de leitura.

 

 

 


 

11/05/2006