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Elaine Pauvolid


 


Texto teatral e a poesia em Soares Feitosa



“nas mesmas métrica e rima certas, por linhas... cegas...
do Ontem! A quem prestam contas os galos?”
(Rio Macacos, Soares Feitosa)


 

O poema pode ser épico, como é o de Gerardo Mello Mourão (Os Peães), pode carregar o movimento nascido a partir do Romantismo francês do século XIX, o lirismo, como é o de Alexei Bueno (Em sonho), pode ser polêmico como é o de João Cabral de Melo Neto e pode ser teatral como é o de Soares Feitosa.

Nítidos traços de Mourão nos seus traços, mas a marca maior salta aos olhos, teatralidade. Diferencia-o de Mourão, entre outras coisas, o fato de não ser épica a poesia de Soares. A invocação de cenas da natureza, de histórias enredadas umas nas outras o aproxima de G.M.M.. Se este último, em Os Peães, apresenta com mestria a saga dos Mourões, Soares desliza para um espectador de cenas menos heróicas, com menos aventura e perigos.
A habilidade de evocar histórias sem fugir do estilo do poema e não ser épico acaba dando teatralidade ao seu texto. Não poderíamos esquecer de citar Shakespeare que, na verdade, foi um dramaturgo, no entanto suas peças/poemas se incrustaram no imaginário de qualquer ser letrado como poesia mais pura, mais cristalina e mais lida.

Outro dramaturgo, contista e poeta, a ser lembrado é Bertolt Brecht e, quanto ao tema, Soares está mais próximo do alemão devido a maneira, muitas vezes árida, quase encardida de representar situações. Não traz, no entanto, o lado ideológico-político, sua função quase didática que o dramaturgo deixou em sua obra.

Soares não faz teatro pelo mesmo motivo que não conduz prosa nos poemas em análise neste ensaio. Não há narração, o que diferencia a prosa de ficção da poesia. Quanto ao texto teatral, faltam-lhe as rubricas, que é uma espécie de narração e a intenção explícita de um dia levar o espetáculo com seus atores, porque tal estilo só se completa com a encenação. Independente de estilos e pares, percebamos os versos que encabeçam o ensaio. Podemos derivar para onde quisermos se ficarmos só com eles. Existe mais, o poema inteiro, seu contexto.

Soares chega ao ápice do fazer poético, dá-nos um portal com seu verso de inúmeras entradas e saídas. Esbarra-se na definição de poesia e no conceito de obra aberta de Umberto Eco. As possibilidades de mensagens são inúmeras, porém não se perdem nos ruídos do caos (como um portal da Internet). Há uma linha mestra, o Eu poético, que direciona o imaginário do leitor sem a tirania de um conto de fadas nem a inabilidade de uma prosa mal colocada.

Vejamos: “Nas mesmas métrica e rima certas [Remete-nos aos Lusíadas de Camões], por linhas [faz-se viagem por poesia como atesta o Odisseu lusitano]... cegas [remetendo a lenda do descobrimento às cegas do Brasil] de Ontem [ Shakespeare, o teatro, as influências]! A quem prestam contas os galos? [ o labor gratuito do artista pontual no seu desejo]”

Outro:

“Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes.”

(Habitação, Soares Feitosa)

 

Soares é nosso contemporâneo e se pode dizer dele que integra o movimento nascido na França em 1924 não esgotado até hoje, o surrealismo. Somente a lapidação preciosa de uma escrita automática poderia produzir os dois versos de “Habitação”. Além disso a interpretação não é o principal objetivo e sim o efeito desconstrutor-reconstrutor que atua sobre nós logo naqueles primeiros versos de “Habitação”.

Mais outros:

Aqui também — ela disse —
esse velho à balaustrada,
ele grita o tempo todo:
                              "Não é aqui não!"—
Ilha por ilha.

Imaginas que o mandei gritar — contra ti?

Ilha...?!

É no convívio dos espelhos, mulher, mulheres, que te queres bendita: o passo da graça, nem que seja à maneira de desembrulhar teus mortos.
Haverias de te esquecer de ti porque das outras, o Poderoso
não falava a sério, acho que não:
(Não é aqui não, Soares Feitosa)

“Para Eugen
Como se
um crepúsculo de mar,
uma viagem longa, muito longa, Ela
dissertava sobre Eugen.
Em cambraia e linhos, Ela
dissertava sobre Eugen.
As mãos,
os dedos longos... e os olhos, em contraste súbito
........................................................................”,
(Para Eugen, Soares Feitosa)

 

Toque do movimento simbolista de finais do século XIX e início do XX, o nascimento do verso livre. Podemos dizer com liberdade que em Soares vários prismas se constroem. Nenhum poeta, apenas lírico, romântico, ou épico. O poeta faz poemas e os movimentos se misturam, bifurcam-se.

Não é apenas o surrealismo que não é uma escola artística. Nenhuma obra de arte está aprisionada a escola que lhe vestiram, que lhe influencia, mas também nenhuma obra de arte poderá se descontextualizar, pois estará negando a si mesma, a sua própria existência.

O que importa na obra é o desejo do autor, sua assinatura, que ultrapassa também o estilo pessoal. No caso de Soares, o prazer de singrar uma história no mármore do poema, fazer brotar cenários, sejam eles oníricos como é o caso destes versos últimos, sejam eles realistas como é o caso de “Rio Macacos”. Como todo grande artista, Soares é múltiplo e sua arte portentosa.


* Elaine Pauvolid, Rio de Janeiro, poeta e ensaísta, lançou seu primeiro livro em 1998, Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... pela Imprimatur/Sette Letras e colabora com a revista de cultura AGULHA www.secrel.com.br/jpoesia/agulha6.html
Para comentar este ensaio: pauvolid@olimpo.com.br
 



Soares Feitosa, 2003
Leia a obra de Soares Feitosa