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Dirceu Villa 

dirceuvilla@yahoo.com

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ruth, by Francesco Hayez

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão


Dirceu Villa
entrevistado por
Rodrigo de Souza Leão

seomario@centroin.com.br

Entrevistado por Rodrigo de Souza Leão


 

POUND 

AS ESTRIPULIAS DE DIRCEU VILLA

 

Dirceu Villa, poeta nascido em São Paulo em 1975, é autor de MCMXCVIII (1998), publicado pela extinta Série Badaró; escreveu também Descort (2000), que ganhou o prêmio Nascente, mas, hélas! não foi publicado. Tem pronto um terceiro livro de poemas chamado Zeusfaber (2002). Formado em Letras pela USP, editou em 1999, juntamente com Cídio Martins, a revista de arte Gargântua (para a qual desenhou a capa), e apresentou um programa de entrevistas e leituras para a rádio da internet CR37, do museu Casa das Rosas. Escreveu um punhado de prefácios, foi revisor de textos médicos, quadrinista, acabou de publicar poemas na revista Ácaro e prepara atualmente uma tradução em versos de Lustra, de Ezra Pound, como dissertação de mestrado na USP. Foi incluído na antologia Cities of Chance, da editora nova-iorquina Rattapallax — a ser lançada —, em que traduziu os próprios poemas e os de Rodrigo Petronio para o inglês. Por fim, tem se dedicado a traduzir e adaptar as Metamorfoses, de Ovídio, por puro gosto da coisa.


 

1. Como foi ter ganho o prêmio Nascente?

Considerando que foi o primeiro e único prêmio ao qual concorri, foi uma sensação muito boa e bizarra, porque o dividi com um amigo que venceu junto, o Rodrigo Petronio; e umas pessoas que nos conheciam no anfiteatro começaram a fazer coro: “Marmelada!”. Mas eu estou perfeitamente consciente de que prêmios não significam nada no sentido de apreciação. Eu pensei, no entanto, que funcionaria no aspecto editorial, que os editores olhariam e: “Ah, você ganhou um prêmio”. Disseram isso, mas não mudou em nada a vontade deles de me publicar.

A grande verdade, e um pouco chata também, é que há um número ridiculamente inexpressivo de pessoas que podem ler um poema bom e diferenciá-lo de um monte de bobagem. E a grande maioria delas não é editor. Por exemplo, já ouvi de um editor conhecido o seguinte sobre a obra do José Saramago: “Eu não entendo disso, mas leio os jornais”. A literatura virou um comércio e os editores se tornaram, em grande medida, comerciantes. Eles não entendem do assunto, mas lêem os jornais. É muito difícil achar hoje uma coisa que existia, o editor que “descobre” um autor ainda jovem,  algo que potencializava muito o meio. C’est dommage.

Por falar em comércio, o prêmio veio na melhor hora possível, eu estava duro e o dinheiro me fez sobreviver dignamente por alguns meses.

        

2. Quais mudanças teve a sua poética do primeiro livro até o que está fazendo agora?

Mudou tudo. Na verdade, eu não gosto de repetição e não acho que tenho uma poética, sumarizável em alguns parágrafos. O pior crime de um autor, além da acefalia, é entediar o leitor inteligente. E acredito que nunca fechei um livro temático, com uma estrutura que vai explicando por que aquele poema foi aparecer ali, a ligação ubíqua com o título — depois a crítica fica maravilhada quando encontra as ressonâncias e produz vários volumes sobre o assunto. Os meus livros refletem, suponho, não só o nível técnico a que eu havia chegado, mas também as formas que fui obrigado a usar ou inventar para dizer o que era preciso antes que o leitor pudesse resmungar: “Ah, é o Dirceu Villa, tá na cara”.  Há também grandes poetas com linguagem muito definida e repetitiva, como  João Cabral, que se você lê muito em seqüência se torna cansativo.

Mas eu disse “leitor” com muita boa vontade e imaginação, porque publiquei apenas um livro, com tiragem limitadíssima de 85 exemplares; de qualquer forma, funciona assim. Escrevo poema a poema, e quando a quantidade revela ter retratado suficientemente a poesia daquele meu período, eu procuro fechar um livro.

Comecei testando minhas possibilidades, no MCMXCVIII (1998), aprofundei isso com escolhas mais específicas no Descort (2000) e deixei tudo de lado quando fiz o Zeusfaber (2002), que é outra coisa, e sofreu algum influxo das minhas leituras do Jean Cocteau, principalmente Le Cap de Bonne-Ésperance, com um cubismo diferente do e anterior ao de Pound dos Cantos, e muito interessante — Cocteau é um poeta que deveria ser mais traduzido por aqui, mais lido. Houve, nesse meu último livro também, a interferência do meu trabalho com as Metamorfoses, de Ovídio: a velocidade da narrativa, a sucessão de quadros móveis e a métrica.

 

3. Qual a importância de ter uma revista literária? Como foi a experiência com a revista Gargântua?

As revistas literárias tiveram uma importância histórica e estética muito forte, principalmente no final do século XIX— por exemplo, a Cosmopolis, que publicou o “Coup de Dés”, de Mallarmé — e começo do XX — com as diversas revistas do modernismo, principalmente a BLAST, dos vorticistas ingleses, sem esquecer da Orpheu portuguesa e da Klaxon brasileira, que é muito bonita, mas meio primitiva; depois, elas se tornaram um veículo gasto, não tão empolgante, mas, ainda assim, um veículo, particularmente para poetas jovens se tornarem minimamente conhecidos (e eu acredito que, na verdade, dos editores). A Gargântua entra nesse ponto.

Éramos meio moleques de faculdade tentando aparecer e demonstrar que a poesia escrita na época não era o lixo que costumavam dizer. Ora, apenas não tinham conhecido as pessoas certas. Mas apesar da nossa qualidade e do nosso entusiasmo, suspeito que a revista hoje me pareça um tanto inocente e (uma boa qualidade) pretensiosa. A capa verde com metade do rosto da Medusa, que eu imitei do Franz von Stuck, ficou ótima, mas mesmo isso não ajudou a vender a revista, que foi um total fiasco financeiro e não passou do número zero. Em parte, a culpa pode ser creditada à distribuição inexistente, antiprofissional. O velho problema da distribuição, que come uns dois terços do preço de capa e torna o livro no Brasil um artigo de luxo.

A experiência de levar uma revista teve seu tanto de prazer e aborrecimento. Prazer, porque é divertido inventar as coisas (principalmente visuais), e nós contamos com um bom amigo, o Douglas Braga, e a esposa dele, a Maila Blöss, que estavam cheios de idéias. Foi ele que resolveu pôr a metade da cara da Medusa, e foi uma sugestão e tanto. A Gargântua poderia — e deveria — ter sido melhor. Mas tinha um ótimo patrono, o Rabelais.

 

4. Você fez o programa de rádio para o site da Casa das Rosas. Conte-nos sua experiência. O que é mais difícil e mais fácil para um perguntador?

A experiência foi muito boa, porque trabalhamos sempre com pessoas que estavam interessadas na arte em si, e faziam o que faziam por esse motivo. E não havia restrições, podíamos falar de Eliot numa entrevista, pular para a Revolta dos Malês (como na entrevista com o Luís Fulano de Tal), poesia latina, questões sobre se existe uma poesia típica feminina, métrica no vers libre, tradução, etc. Liberdade total.

O mais difícil é controlar o tempo. Eu tinha meia hora para entrevistar as pessoas, e tinha gente que rendia uma hora, uma hora e meia, e outros que balbuciavam por quinze minutos. Eu certamente preferiria uma flexibilidade que me permitisse encerrar o suplício de alguns poetas tímidos (ou provocá-los decentemente) e estender a garrulice louca de outros. Quando foi o Antonio Medina, professor de Língua e Literatura Grega da USP, pudemos falar bastante, não só porque ele fala bem e muito, mas porque o R.L. Jackson, que era, por assim dizer, nosso chefe e incentivador, achou que dava. Mas foi uma conversa séria, o Medina não soltou nenhuma palhaçada literária costumeira, que faz a gente gargalhar pra valer; não foi como se você o encontrasse por aí e ele viesse com as histórias dele. Mas foi muito bom e abordamos várias questões interessantíssimas sobre tradução poética (falávamos da tradução que tinha feito a partir da versão grega do Cântico dos Cânticos).

O mais fácil, e acho que você deve saber, é dirigir o assunto para onde se quer. Os entrevistados são sempre pegos meio de surpresa — “quais vão ser as perguntas?”, “como vou responder?”, “que figura sairá disso?” — e se pode dirigir a conversa, com cuidado de nunca ir muito depressa, porque as pessoas normalmente precisam de um tempo para se acostumar com um microfone e com a invasão de suas idéias por um curioso.

Há um exemplo bizarro de direcionamento da conversa, que foi quando me entrevistaram com alguns amigos na Secretaria Municipal de Cultura, e que me fez desconfiar da imprensa. Uma jornalista, com muito boa vontade, resolveu que apareceríamos na revista da Secretaria porque na época houve um certo burburinho sobre as nossas leituras feitas em sebos do centro da cidade de SP. Ela foi muito simpática, mas nós percebemos que já havia uma opinião formada sobre quem éramos. Eu e os meus amigos passamos o tempo todo tentando delicadamente dissuadi-la da concepção Sociedade dos Poetas Mortos que tinha sobre quaisquer poetas vivos. Falamos de poesia medieval, de experimentos técnicos, mencionei o Lorenzo dei Medici, que escreveu uma poesia ornamental, etc. Depois percebemos que talvez tenha sido pior. No primeiro parágrafo da publicação, para nosso total espanto, nos tornamos personagens shakespeareanos, românticos, idealistas, sofisticados. Eu devo ter falado algo de Shakespeare, e daí ela aplicou uma dose cavalar de Harold Bloom. Enfim, eu procurei rir.

 

5. Como é tão jovem e ser tradutor do Ezra Pound? Quais são as dores e as delícias da tradução?

Muito sinceramente, eu ainda não sou “tradutor de Ezra Pound”; estou trabalhando em um livro dele, Lustra, publicado em 1916. O caso é que sempre houve algo de congenialidade minha com Ezra Pound, o que me levou a tentar traduzir alguns poemas ainda inéditos. Eu comecei quando estava trabalhando como revisor de literatura médica, um trabalho maldito: os textos eram um desastre completo e as traduções da editora pareciam ter sido feitas no Babylon. Houve manhãs em que dormi solenemente em cima das provas, e todo dia pensava em como ler pilhas de textos mal escritos arruinaria a minha arte; é provável que naquele ano não tenha escrito uma linha. Enfim. O fato é que, para não sentir que estava enterrando minha vida naquele lugar por uns míseros trocados, comecei a traduzir poemas do Lustra escondido. Esse sempre foi um livro que a crítica tratou com desdém, porque ficou entre o volume elegíaco que Pound tirou do chinês, Cathay, aquele que consideram a primeira grande obra dele, Hugh Selwyn Mauberley, e os Cantos, a obra definitiva. Como eu acho muito errado pensar assim, e parece um pensamento típico anglo-germânico, de etapas sucessivas de superação, resolvi que poderia dar uma tese, oferecendo mais um livro de Pound em português (Lustra ainda está inédito por aqui, a não ser por alguns poemas bem traduzidos por Mário Faustino e Augusto de Campos naquela histórica antologia da Hucitec & Edunb) e repropor o interesse no livro. São poemas muito atraentes e malévolos, é um livro muito charmoso.

Traduzir tem um lado muito bom que é parecido com teatro: você precisa se imaginar como outro autor para encontrar palavras certeiras, o estilo, a voz, digamos. Há também estripulias técnicas, que funcionam como um jogo, e também são muito interessantes. Já em outras traduções que eu fiz, o divertido foi encontrar um meio caminho entre a minha linguagem e a do autor que eu estava traduzindo, e incorporar ao texto algo que pertence à mesma tradição; há muito mais liberdade, é um trabalho menos ilustrativo e mais pessoal. E dá bons resultados, se você sabe o que fazer.

E quanto à juventude: é a época das ousadias insanas, não é? Há os caras que tiram racha, eu traduzo Pound.

 

6. Oceano: ”(...) os homens não sabiam não faziam idéia/de que o mundo se  mantinha sem beiradas/sem aparos era o mundo um horizonte curvo/além do que se vê além do que se vive além “. O que é o além para o poeta? O Oceano é eterno?

Para o poeta, em termos gerais, eu não saberia dizer. Há poetas e poetas. Nesse poema que você mencionou talvez queira dizer: é simples supor que se pode definir a vida em termos daquilo que se conhece, e ignorar ou simplesmente deixar de reconhecer que sabe-se dela uma parte ínfima. Talvez por isso o poema tenha algo, me parece, das chamadas Grandes Navegações, e do espírito da vã glória de mandar. Porque nesse caso se pressupõe que se entende suficientemente do mundo para dizer como as coisas devem ser. O que resulta numa espécie de George Bush.

Sobre o oceano. Eu gosto muito dos litorais e tenho um verdadeiro amor pelo mar. Você pode olhar para aquela vastidão de água que os olhos não apreendem e pensar inclusive que há mais daquilo no mundo do que terra. E será sempre algo que você conhece menos e tem menos familiaridade com do que a terra. Se isso não puder sugerir uma sensação de distância do que se conhece, então eu não sei o que pode.

Já eternidade é uma coisa um pouco longa demais para um sujeito que irá, na melhor das hipóteses, desfilar uns noventa anos por aí, opinar sobre.

 

7. Syllabus: “Os deuses se inclinam num pórtico/velho do centro esquecido, em São Paulo: curvas art nouveau no parapeito”. Falar dos Deuses é a melhor forma de ser moderno ou pós? Ser moderno é a ambição do poeta?

Eu não sei o que é ser moderno. “Pós moderno” é, você me perdoe, uma expressão vazia como um cheque em branco: você põe lá o que bem entender. Porque seria preciso supor que sabemos precisar o que é moderno, numa definição, e que pós moderno seria aquela baderna posta junta só porque vem depois de se fechar o ciclo anterior. Mesmo no chamado “modernismo”, por exemplo, há posturas diametralmente opostas, como as dos futuristas de Marinetti e dos surrealistas de Breton. Qual define  o que se chama moderno? Ou, digamos, defina-me de modo que caibam nisso os dois tipos e mais todos os outros. É fácil generalizar um duvidoso “espírito de época”, mas fica bem complicado quando se desce para as obras. Tem quem leve “pós moderno” a sério, Frederic Jameson e outros críticos, mas para mim isso é engarrafar fumaça. Jameson, por exemplo, escreveu que as botas do Van Gogh eram um quadro mais “profundo” que as sapatilhas de bailarina de Warhol. Muito bem, como é que se mede essa profundidade, com uma régua? Se estivermos falando apenas do aspecto pictórico de profundidade, por que tratar como um valor em si? É conversa de louco.

Vamos supor que moderno possa ser algo que se considere pertencendo, sempre, a uma espécie de hoje atemporal. Isso é possível, embora você tenha de tomar saudavelmente uma posição anticientífica (além do mais, a falsa postura científica nunca deveria ter sido adotada em assuntos de arte). Barreiras de língua e tempo podem ser quebradas, e isso é o que nos diz a obra de Shakespeare, Ovídio, Velásquez, etc. Suponho que essa ambição é comum aos artistas, poder falar, como for, às pessoas de tempos diversos; é claro que alguém pode dizer que isso demonstra uma vaidade fenomenal, mas por outro lado só falamos de cultura porque houve o que transcendesse o tempo em que surgiu.

Quanto à outra parte da pergunta: não estou “falando dos deuses”. Alguém pode falar dos deuses num tratado, numa obra histórica, com um distanciamento seguro. Eu não estou falando dos deuses. Eles pertencem a uma sensibilidade que não tem como se expressar de outra maneira. Os deuses pertencem às manifestações vivas da natureza, do meu ponto de vista. Nesse poema, eles se opõem à beleza finita dos prédios artisticamente concebidos, que uma época dinheirólatra deixa estragar para pôr um monstro de vidro, metal e concreto no lugar. Porque é mais moderno.

 

8. Seus poemas são cheios de referência. Você nos fala de Goethe, Duchamp, Yeats. Quanto mais referência melhor o poema?

Bem, quanto a Goethe, é que a piada era boa demais para se perder. Esse tema persistentemente romântico das últimas palavras no leito de morte costuma ser visto até hoje com admiração, e por isso sempre se carrega na qualidade filosófica do dictum quase-fúnebre.

No meu caso, quando leio referências bem empregadas numa obra, elas me atiçam a curiosidade (que, convenhamos, é uma qualidade bem decadente nos dias de hoje). Outra coisa que as referências fazem é demonstrar que tal arte é uma arte, e que os praticantes dela têm gostos, ou universos que podem ser partilhados com proveito. Às vezes pode parecer cansativo, mas eu garanto que é estimulante. E isso não tem nada a ver com qualidade propriamente poética. Há inúmeros poetas que não referem nada (ao menos não tão marcadamente como eu) e são magníficos. E há milhares que prendem em seus poemas uns badulques chiques com mão tão pesada, referências tão desproporcionais no sentido de onde a tirou e onde ela veio parar, que você percebe não haver conexão alguma entre qualidade e citação.

E eu, de qualquer forma, não acho que as minhas referências sejam impeditivas. São todas de um tipo muito brando, muito simpático, de convite ao leitor a compartilhar a leitura, ou o modo de ler.

 

9.Você se utiliza dos mitos gregos para construir a sua poética. Qual a importância dos mitos gregos hoje em dia?

A mesma importância que  mar, mulheres, homens, plantas, animais, transformações, deus, o “como eu me sinto”, as roupas no varal, a justiça, a injustiça, a guerra iminente, os problemas próprios da linguagem e da língua, piadas, a juventude exuberante, outros poemas, seus amigos, seus inimigos, trocadilhos, as boas e más idéias, o sexo, viagens, filosofia, farras, fossas, a velhice, a sabedoria da experiência meditada, a música, a rabugice, o prazer de viver, a doença, etc. têm para a arte.

A ordem dos fatos na pergunta é importante: eu não me utilizo de nada para construir a minha poética, porque eu nunca sentei para escrever e pensei: “bom, aqui a gente pode pôr o Netuno, depois uma seqüência de imitação de hexâmetros datílicos, e vem um cara e fala um palavrão”. O poema pede certas coisas, e tudo que você pode fazer, se souber como, é dar. Isso não é para ser confundido com inspiração. Eu escrevo poemas porque, entre dois trilhões de coisas que os seres humanos fazem, calhou de ser isso o que eu faço, e há um trabalho infinito de revisões e colagens, e até reescrituras muito elaboradas do material bruto. Então há uma cultura de poesia (ou havia) e se pode escrever poemas, e muitas idéias no meu cérebro já vêm exigindo uma forma, assim como um filósofo é um impertinente viciado em perguntas que ele encontra em toda parte.

 

10.”As flores amarelas, flores gramofones, flores/sob os teus pés, flores que saem de bolsas em tua homenagem/flores cobrem o chão, flores voam das mãos, flores/anunciam o que virá, as flores amarelas com mil bocas”. Há flores por todos os lados como na música dos Titãs?

Há flores por todo lado na casa onde eu moro. E são amarelas. Na verdade há também um pouco da recordação, quando estava escrevendo, de um filme dos irmãos Taviani que se chamou por aqui “Noites com Sol”. É um belo filme tirado do livro do Tolstói, Padre Sérgio (que saiu recentemente pela Cosac & Naify), e há uma cena em que o menino — que virá a ser o Padre Sérgio — espalha um monte de flores pelo caminho em que passará uma autoridade, creio que religiosa. E então há essas flores amarelas, que parecem clarins, e aí há o poema que chega num momento onde é preciso que o personagem se esqueça do pensamento. Sem nada à volta, as flores muito coloridas parecem chamar um tempo ou um lugar em que as preocupações dele não têm mais sentido. Por vezes isso nos dá certa sensação de alívio, não é?

 

11) Quais seriam, em sua opinião, as reais perspectivas da poesia no mundo contemporâneo? Por favor, discorra sobre o assunto.

Essa é uma pergunta bem ampla, não é? Na Itália tem uma coleção de poesia e na contracapa vem anúncio da Calvin Klein. Você compra um livrinho com antologia do Catulo e ele vem com anúncio da Calvin Klein. No Brasil isso não existe, a ligação entre uma coisa e outra é tão impensável que não acontece. Então, mundo contemporâneo é muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Na França ninguém se atreve a dizer que letra de música é poesia (mesmo porque as letras deles são uma porcaria), e aqui você tem essa polêmica divertida e acirrada. Nos Estados Unidos há um ramo que faz confluência entre a performance e a poesia, que tem algo a ver com rap. Eles têm também o poet laureate, que em geral é um canastrão que só podemos aproximar dos da ABL, e ainda assim fica impreciso. De modo que apontar perspectivas, ainda mais reais, num meio tão estratificado e movediço seria muito irresponsável ou irrefletido.

O que se pode dizer, ao certo, é que as perspectivas da poesia serão sempre aquelas que os poetas construírem. Se se pode dizer que passamos por um período tenebroso e ignaro, os poetas têm culpa nisso também. Se se pode definir a poesia, como toda arte, como algo que refina os nossos sentidos e a nossa inteligência, eu presumo que ela sempre será necessária, mesmo que de tempos em tempos não ofereça tanto brilho. Acredito que se você vivesse no século XVIII e tivesse uma boa perspectiva crítica, diria que a poesia não tinha mais para onde ir, e que os poetas então contemporâneos eram uma desgraça. Períodos como o fim do século XIX na França, ou os primeiros decênios do século XX na Europa (com poucos etc.), são raros.

Acredito que a poesia, a verdadeira poesia, continuará sendo um bem inestimável, qualquer que seja a forma que tome. Nossa impressão de sufoco atual se dá por uns quatro ou cinco motivos: 90% de tudo que se faz é sempre lixo, mas agora publicamos mais e há esse mal-estar; ninguém mais acredita que existam parâmetros para se julgar arte, então eu posso não gostar e devo ficar calado no meu canto, já que não entendo nada do assunto; há outros meios de comunicação mais eficientes, como o cinema, ou acessíveis, como a tv; nossa educação, a brasileira principalmente, é um desastre provinciano ridículo, currículos precisam ser urgentemente revistos, etc. Mas não é nada alarmante, é histórico, um processo que se fecha em determinado momento. Mesmo porque realidade — na intenção de reconhecer “reais perspectivas” —, é algo indefinível. A realidade, ou o que isso significa para uma pessoa, é uma malha complexa e suscetível à maneira de se olhar para ela.

 

12) Como os artistas, entre eles, especificamente os escritores e, entre eles, mais especificamente ainda, os poetas poderiam intervir neste mundo?

Com arte, por exemplo. A mistura disso com ações mais, por assim dizer, interventoras, resulta em panfletos medíocres ou em mal-entendidos colossais, como o de Ezra Pound, que quase arruinou para sempre sua obra diante dos olhos das pessoas. Ou Maiakóvski, que se frustrou amargamente com os descaminhos que tomou a idéia inicial de revolução na Rússia.

Podem intervir também com educação. Já que nós, artistas, somos tão sabidos, por que não arranjamos meios de espalhar nosso conhecimento? Mas é preciso um pouco mais de bom humor e é preciso não se levar tão a sério como os artistas “sérios” têm feito ultimamente: são uns carrancudos, ou pessoas que explicam o fato de os demais não se interessarem por literatura.

Muito antigamente os poetas não precisavam ser uns aborrecidos com o mundo, nem uns arrogantes que querem meter o nariz em tudo. O artista herói é um romântico, mas devemos lembrar que ele normalmente morria cedo de tuberculose ou passava desta para melhor antes de entrar na luta (como Byron pela liberdade da Grécia). Um pouco do espírito de vanguarda revive o romântico, mas diz assim: “Querem saber de uma coisa? Vocês são uns idiotas vulgares e eu e meus amigos estamos à frente da sua mediocridade”, e é claro que faz sentido até virar pose & paródia, quando se esgota. E começou mais ou menos com Baudelaire. Mas a vanguarda, na metáfora militar, deixa de lado o fato intrigante de que é ela também que morre primeiro, a golpes de baioneta.

Os poetas não são pessoas necessariamente boas, nem mais espertas a respeito de que rumo as coisas devem tomar: são pessoas que captam, compreendem e exercem linguagem num nível incomum, interpretam, representam. Então eu proporia menos afobação em intervir e concentrar mais dessa formidável intensidade na composição. O resto se faz por si.

 

13) Quais seriam, no seu modo ver, as principais linhas de força e de fuga da poesia atualmente produzida no Brasil? De onde viemos e para onde vamos?

Técnica e estilo, e menos ares de importância. É uma lição aparentemente simplória, mas temos poucos exemplares disso no país. Machado de Assis seria o caso clássico na prosa, uma coisa não sobredetermina a outra, mas atinge o nível da elegância. Ele não clamaria ser um grande técnico, não teria muito interesse em ser visto como estilista, o único atributo do Eça de Queirós, que não sabia muito bem o que fazer com isso. Rui Barbosa no discurso sobre a morte de Machado vê só o estilista, e hoje nós sabemos como Rui Barbosa era mau escritor e mau leitor, típico fenômeno de época.

Mas aí é que está: linhas de força e fuga valem apenas para tradições fortes de poesia, como a francesa, que você pode pôr em perspectiva. Mas a francesa vem, no entanto, numa decadência brutal, veja as polêmicas do Houellebecq, que são umas provocações de criança e, no entanto, lá se morde a isca.

O Brasil não tem nenhuma tradição forte e sequer tem uma relação lá muito saudável com o objeto livro, que vende adoidado em Bienal, mas só lixo. Poesia nunca teve muita importância no nosso currículo, nem nunca foi algo carregado de algum nível de nobreza. Quem esgotou as possibilidades da língua portuguesa? Nunca houve essa sensação, como terá havido na Inglaterra com Shakespeare, na Itália com Dante, etc. Não no sentido infantil de angústia da influência, mas “muito bem, vamos para onde daqui?” Isso estimula o desafio estético à convenção, ultrapassar o supercânone.

Por outro lado, as grandes tradições nacionais estão evaporando em favor de uma configuração mais ideal de o que é arte pertence ao mundo. O único problema para a poesia, para a arte da escrita, é que as línguas são diferentes, e isso até certo ponto constitui patrimônio exclusivo. Daí as traduções, que pretendem enxertar conhecimentos exteriores na língua de chegada, ou promovem híbridos inovadores. Por incrível que pareça dizer isso no começo do século XXI, os artistas brasileiros em geral precisam se libertar do provincianismo de se contentar com qualquer poeminha e de se sair arranjando quem proclame sua grandeza nos jornais.

E linhas de força não ajudam, porque Carlos Drummond de Andrade foi um bom poeta, certamente uma linha de força, e os que o tomaram como algum tipo de orientação produziram coisas inanes, todo mundo obedecendo a uma tirada dele, a de que a melhor poesia é um sinal de menos. Bem, isso eles conseguiram. Mesma coisa acontece com a linhagem que se seguiu aos poetas concretos. Linhas de força não ajudam: são um modismo ou uma limitação acabrunhante. O poeta está a sós com sua poesia e precisa ser honesto com isso: não pode seguir ninguém como a regra, porque daí está contido no outro, é uma perda de tempo, e as pessoas podem muito bem decidir, buscando a linha de fuga do quadro, que preferem voltar à matriz.

 

14) Como você situaria a sua própria obra no contexto atual? Fale sobre suas potencialidades e limitações.

Minha obra é daquelas que, por ficar no subterrâneo, não faz parte de nada exatamente, mesmo porque eu não me identifico muito com o que tem sido feito, embora aprecie alguns poetas, como, por exemplo, o Donizete Galvão — que ainda não recebeu todo reconhecimento que merece, e a quem eu cheguei por mero acaso, lendo o Nanico, publicado pelo Cláudio Giordano — e alguns poetas mais próximos de mim em idade, que aconteceu de eu conhecer por um motivo ou outro. Eu estou evidentemente me restringindo à poesia brasileira.

É muito provável que minha obra vá ser vista como parte de algo que está ainda em formação. É provável que minha obra seja vista como uma anomalia, e é provável também que minha obra nunca seja vista (embora você agora esteja dando uma ajuda para o contrário). Não sei. Não tenho e sequer terei algum dia distanciamento suficiente para situá-la, trabalho que cedo gentilmente aos críticos de boa-vontade sobre a Terra (excluindo os sociológicos, se é que existe alguma piedade neste mundo).

O que posso dizer é que minhas potencialidades e limitações decorrem exclusivamente da matéria mesma de que é feita minha poesia, e que ela é muito, muito interessante. Ela me agrada mesmo, porque faço exatamente o que gostaria de ler, ou você pensa que eu estaria falando tudo isso e escrevendo um livro de poemas atrás do outro, achando que tudo não passa de distração?

Um amigo me disse que eu tenho cara de póstumo. Eu diria que isso é uma sensação insólita, meio sousandradina.

 

 

Rodrigo de Souza Leão

 

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