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Jornal do Conto

 

 

Caio Porfírio Carneiro


 


Zecapinto
 


 

Zecapinto criava pinto. Criava um pinto, que morreu. Criou outro. Que morreu. E outro ele criou. Morreu. Tantos criava, tantos morriam. Um suceder de pintos criados, mal criados, e um rosário de pintos mortos.

Então pensou, pensou, mão no queixo, e concluiu que em vez de pinto o certo seria criar cabra. Criou a primeira e ela não morreu. Criou a segunda, a terceira, a seqüência numérica transformou se em aprisco. A multiplicação tornou se geométrica quando, por engano, comprou um bode, que cresceu e, crescido, não saía de cima das cabras.

Cabra a dar com pau. Então Zecapinto, que passou a ser chamado de Zecacabra, tomou uma resolução: vendeu todo o lote. Saíram berrando, estrada afora, o bode escanchado em cima de uma delas.

Zecacabra ficou só com seus cismares. Olhava o nascer do sol, o pôr do sol. Lembrou se dos pintos frágeis e chorou. Lembrou se das cabras e voltou a chorar.

Valeu se do amigo Ariosto:

– 0 que faço da vida?

A resposta veio seca e pronta:

– Case se.

Levantou a cabeça, um susto e um espanto:

– Com quem?

– Com uma mulher.

Outro susto e outro espanto:

– Onde vou encontrar?

– Procure.

Zecacabra, que passou a ser conhecido por Zecassó, pôs o apurado da venda das cabras no bolso, fechou a casa e mandou se pelo mundo, uma única pergunta quando avistava uma mulher, quer casar comigo? Sempre uma única resposta, não. Nenhuma mulher o queria. Velha, gorda, alta, baixa, aleijada, barriguda, negra, branca, magra, todas lhe balançavam a cabeça na pronta negativa.

Ficou tão conhecido com o seu pregão que passaram a chamá lo de Zecacasacomigo. E ele sempre alucinado, à procura da outra metade. Chegou a abrir o sorriso de esperança quando viu a bela saia vermelha:

– Quer casar comigo?

A voz áspera veio em reprimenda:

– Me respeite. Sou bispo.

Então Zecacasacomigo desistiu de vez. Voltou para o lar abandonado, roto, cansado, desanimado da vida e de tudo. Abriu a casa, escancarou as janelas, estirou se na rede e dormiu dias e dias.

Acordou com a voz meiga e doce chamando o de muito longe.

Que veio vindo, veio vindo. Quando abriu os olhos viu a beleza de moça ao lado, mão segurando o punho da rede, o colar de pérolas dos dentes abrindo o mais belo sorriso dos últimos tempos.

– Vim para ficar.

A surpresa enorme transformou se em desejo e decisão.

Rapidamente puxou a para a rede. Não perguntou de onde ela veio. Foi todo um dia e uma noite de aí meu Deus, eu morro, quero mais, ais e uis sem fim.

Quando suspiraram, o vento soprava forte e ela o chamou de Zecameu. E ele a chamou de Mulherminha. Só então o cenho franziu:

– De onde você veio?

Ela mal abriu os olhos, como se sonhasse:

– De muito longe.

– Fica mesmo comigo?

– Sou sua.

E dele ficou sendo. Zecameu, mais conhecido por Zecadela, criou alma nova. Plantou e colheu. Assoviava e ria. O jardim enfeitava se de flores, o pomar pejou se de frutos.

Até aquela manhã orvalhada. Zecadela, que ia com disposição ao trabalho, voltou do meio do caminho para beijá la mais uma vez. Encontrou a pronta para sair, dedos ágeis dando retoques na pequena trouxa.

– Vou te deixar, Zecaera.

Como um raio que o fulminasse:

– Zeca o que?

– Zecaera, porque já não és meu.

Sentou se, desarvorado:

– Para onde vais, Mulherminha?

Ela, resoluta, dava ligeiro nó no matulão:

– Vou me embora pra Pasárgada. Lá sou amiga do rei.

E se foi. A perplexidade dele transformou se em ódio:

– Vá! Vá seguir o seu fado, ó mulher!

Desandou, desabou nos calcanhares, como sentindo cólicas, e a explosão de choro levou o ao desespero, mãos trêmulas a correr os cabelos. Assim ficou até escurecer e o vento entrou livre porta adentro.

Levantou se, espantou as sombras com a luz do candeeiro, fechou portas e janelas, sentou se à cabeceira da mesa, olhos neutros no vaso de flores murchas, trocadas diariamente por ela.

Pouco dormiu.

Pela manhã a resolução estava tomada. Barbeou-se, banhou se, vestiu a melhor roupa, e valendo se do velho Ford do velhíssimo vigário da vila foi para a grande cidade. Passeou ao léu no meio do trânsito. Parou frente à vitrina e ficou a admirar os vestidos vaporosos, que cairiam bem no corpo dela. E a viu no reflexo do espelho da vitrina. Rodou nos calcanhares, palpitando.

Era outra, linda como ela. Ali parada, meio riso de simpatia.

Sorriu largo para ela. Ela riu para ele.

– Oi.

A resposta dela ampliava a meiguice:

– Oi.

Aproximou se, ajeitou a gravata, alisou o cabelo. Ela continuava sorrindo, um sorriso tímido que o encantava e lhe tirava as palavras. Pôs a mão no quadril. Desfez a posição. Apoiou se num pé, no outro. Pigarreou. E surpreendeu se com o próprio convite:

– Vamos ao cinema?

A resposta veio no sorriso mais tímido ainda:

– Vamos.

Pegou-a pela mão e ela apertou lhe os dedos. O frenesi desceu lhe pela espinha. Andaram, desviando do povo, algumas quadras. Ele procurava iniciar conversa, desesperadamente.

Quando encontrou as palavras, sofreu de decepção:

– Não chove há quinze dias.

Ela olhava o, media o, rabo do olho. Ele se sentia examinado e sufocava se no paletó e na gravata. O desastre foi maior ainda:

– O Ford do vigário da vila está batendo biela.

Chegasse em casa se esbofetearia. O cinema, ali perto, foi a salvação.

– Cá estamos.

Aliviou se intimamente pelas palavras salvadoras. Comprou os ingressos sem ler o cartaz. Conseguiram, no quase escuro, filme começado, duas poltronas isoladas. Poucas cabeças.

Ele olhava a tela, via as figuras e não via o filme. Passou, muito lentamente, o braço sobre o encosto da cadeira dela e dela sentiu a mão leve pousar lhe na coxa. Disfarçou o extremeção com pigarro alto, seguido de psius de cadeiras diversas. A mão foi subindo e ele, surpresa crescente, petrificava se. A voz dela veio acariciante, hálito morno:

– Meu preço é alto.

Não compreendeu. Encarou a na penumbra e ela o olhava, sorrindo.

– Que preço?

– Pela metida.

– Pelo o quê?

– Depois não vamos meter gostoso? Cobro caro. E você paga o hotel.

E a mão chegava lá. Ela apertou a trouxa encolhida:

– Na cama dou um jeito nele.

Desabou de vez. Escorregou na poltrona. O pensamento, num lance, voou para ela, tão linda, sempre a cuidar do jardim, do pomar, das flores no jarro sobre a mesa.

Soltou sem pensar:

– Você é uma puta.

A mão largou a trouxa, a voz cortou áspera:

– Me respeite, seu veado.

A vontade súbita de chorar levou o a levantar se e sair tropeçando poltronas.

Na rua, desnorteado, olhou e olhou e não encontrou rumo a tomar. A buzina de um carro, seguida do palavrão, encaminhou o à esquina. De lá, pernas bambas, para o jardim da praça.

Esparramou se no banco, uma aflição indefinível a atropelar se em soluços que não vinham.

Aos olhos chegaram imagens do pomar com frutos podres no chão, do jardim em abandono, das flores mortas no vaso.

Mais impulso que decisão, levantou se e tomou o rumo de casa. Paletó no braço, laço frouxo na gravata, sapatos na mão, feria se nos pedregulhos da estrada, sufocava ao sol de espelho. Descansou à sombra da árvore copada. E cochilou.

Despertou ao ouvir muitos pios. Perto da cerca vários pintos em torno da galinha que ciscava. Olhou para os lados, lá se foi de quatro, e mais que ligeiro pegou um deles. E caminhou depressa, paletó entrouxado ao sovaco, sapatos presos aos cadarços pendurados ao ombro, piar aflito do pinto no bolso.

Avistou a casa, sozinha ao escurecer. O vulto passou ao largo, sentido contrário.

– Quem vai lá?

– Zecapinto!

Seguiram se à resposta uma leveza interior e uma santa alegria.

Abriu a porta assoviando, acendeu o candeeiro, jogou longe, pela janela, o vaso com flores murchas. Pôs o pintinho sobre a mesa, e ele mal piava, asfixiado como viera no bolso sacolejante.

Olhou-o cheio de pena e esperança. Pena por saber, pela experiência, que ele não viveira muito. Esperança de que o próximo, que adquiriria logo cedo, sobrevivesse. Do contrário outro viria, e outro, mais outro...

Cruzou os braços sobre a mesa, ouvindo ao longe o piar muito tênue do pintinho, ali próximo à sua cabeça bambeada.
Dormiu feliz.