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Jornal do Conto

 

 

Cyro de Mattos


 


 Os Recuados



 

- Seu nome?

- Diacuí.

- Casada?

- Sem homem.

- Idade?

- Sei não.

- Vive de quê?

- Vender pente, espelhinho e outras coisas miúdas.

- Quantos filhos?

- Oito com Dianuri.

- Os outros vivem com você?

- Estão por aí espalhados pelo mundo.

- Quando foi que comprou o querosene?

- Pela tarde. Tinha ido comprar um pouco de sal e café na barraca de Pedro Mineiro.

Foi aí que eu vi a lata de querosene lá no canto e me lembrei de Dianuri.

- Você não sabia que o fogo podia pegar rápido nos barracos vizinhos? - o delegado pergunta, observando que a feira ia virar cinza em pouco tempo, se o povo todo não chega depressa com as latas cheias d’água.

- Só queria botar fogo nele.

Sensação de mal-estar percorre os cantos da sala pequena.

Murmúrios saem das pessoas que se apertam na porta, janela e do lado de fora.

O delegado recua um pouco na cadeira.

Passa o lenço na testa.

- Quem dava dinheiro pra ele beber?

- O povo daqui mesmo da feira.

- Você não sabia que ele era seu filho?

Uma careta desenha-se no rosto da mulherzinha, puxa os olhos e se
forma de maneira sofrida.

- Eu não agüentava mais. Ele só chegava em casa bêbado. Parecia um bicho. Não tinha dia que não fosse achar ele dormindo na sarjeta.

Pára novamente, faz um esforço e continua.

- Tinha vez que ele batia com a cabeça na porta, falava pra ele mesmo: bicho feio, bicho imundo, bicho besta, camacã que não presta pra viver na cidade.

“Lugar de índio é no meio da sua gente, lá no mato”, repetia, soluçando.

A mulherzinha pára mais uma vez, aperta as mãos pequenas, respira fundo. Toma fôlego.

- Ele era meu filho... mas na hora, seu delegado, só fiquei pedindo que o fogo queimasse logo ele de uma vez.

O delegado manda que o soldado leve a mulherzinha para o cubículo nos fundos da delegacia, que serve como cela.

Opiniões desencontradas saem agora da pequena multidão no lado de fora. Vozes confusas comentam sobre a confissão que Diacuí havia acabado de fazer ao delegado. No meio da multidão, um homem velho nada diz sobre a confissão da mulherzinha.

Permaneceu calado durante todo o interrogatório em que Diacuí havia sido submetida. Sua expressão de rancor é a de quem acabou de provar o lado amargo da vida ligado ao amor em toda a sua extensão. Ele mora num barraco vizinho ao de Diacuí.

Conhece a dor que a mulherzinha carregava no peito, drama que vinha sendo sustentado por ela em ombros tão pequenos. Ela via o filho bêbado todos os dias e nada podia fazer para afastá-lo da vida infeliz que levava. Pobre diabo que andava pelas ruas da cidade sem rumo, falando bobagens pela boca que nunca parava.

O mormaço do dia envolve a sala vazia nesse instante.

Luz do céu vidra a manhã lá fora, reverbera sobre as coisas na feira.

A mulherzinha transpira tremores misturados com cinzas. Há suspiros fundos, profundos, no cubículo quase sem luz. Minutos passam num ritmo que fere quando ela começa a lembrar o que tinha de ser. Até que chega essa brisa para envolvê-la com ondas ligeiras, trazendo certo alívio no peito que não pára de gemer. A brisa permanece no rosto sob a pele enrugada, em carícia de lenço. Nos olhinhos de sagüi, que piscam nervosos. Vermelhos e úmidos.

 

 

 


 

08/07/2005