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César Leal


 

Romance do Pantaju
    (Autobiografia)


Nasci numa casa grande
dos Inhamuns, no Ceará,
terra onde engorda e cresce
o melhor gado que há
em todo o Brasil-Nordeste
se a seca não o devasta:
é o vale do Jaguaribe,
terra dos Feitosa e Monte,
terra dos Caracarás,
dos Leal, dos Cavalcanti.


Muito jovem fui treinado
nas artes do pastoreio
— criei cedo um nobre estilo
no desafiar de peito
ao cinzento aço bicórneo
que se aos homens degrada
no perfil nobre de um touro
o faz belo e respeitado.


Seguia sempre o meu dono
junto ao pataleo do gado,
olhos recuados na sombra
de uma tranqüila humildade,
patas pisando ligeiras
os ossos da relva parda
Circundava-me o pescoço
de leão, quase de touro,
uma coleira de couro
com três argolas de prata.


Chamavam-me Pantaju
— pêlos de bronze polido —
quando o solo ao sol rachava
nas margens do Jaguaribe
punha meu rabo de molho
no limo sujo do rio;
meus dentes da cor do orvalho
mordendo jamais feriam,
exceto o touro zebu,
terror de outros Pantajus.


Termino aqui nesta quadra
minha pobre biografia,
tu, César, foste o meu dono,
conta o resto em poesia!


            Visita à


Recordas da antiga festa
de São João? Fomos à aldeia.
Tu, um pobre cão rnatuto,
raramente ias à feira;
na pensão nos hospedamos,
ficaste só no quintal,
não me negues que teus olhos
eram águas assustadas
com o fogo dos buscapés
e tanta cinza escarlate.


Depois de jantarmos peixe
por anzol roubado às águas
saíram à rua contigo
os meus sete anos de idade
que acompanhavam Manuel
( aquele que foi meu pai,
sertanejo de oito secas
que morreu tangendo o gado ).


da necessidade de ser bravo


Entramos num bar e tu limpo combate
     aceitaste
ser bravo quando um cão semileão, o maior
     cão da cidade
de rosnar tempestuoso, coleira
     bordada a prata,
veio a ti como um oceano bramindo,
     a cauda empinada,
focinho de terremoto, cheirar-te
     a raiz do rabo.
lembro teu salto relâmpago, três vezes
     menos que um raio,
tamboretes e cadeiras rolaram
     sete na sala,
ambos de corpo caíram, ambos
     nos pés se firmaram,
depois alcançaram a porta, lutaram
     sobre a calçada,
Já na rua corre o mijo do semi-
     leão vencido.


            Retorno à Fazenda


Quando a alva abriu as portas
à lenta fuga do orvalho
ao bom leite regressamos!
Junto ao curral tu paraste.
Nos olhos havia amor
a contemplar nosso gado,
depois foste até Anália
(minha mãe e tua amiga,
sertaneja, como ele,
que morreu de febre hepática).


            O desaparecimento


Mas, numa tarde de agosto,
regressávamos da caça
ao passares na pedreira
que fica ao sul do quintal
cipó-mole-peçonhento
lançou em ti seu veneno.
No outro dia, em Belmonte,
em Belmonte, eras memória:
muitos anos navegaram
mas se te lembro te choro
e indago dos ventos tristes
que comeram teus soluços
nos campos leves da infância,
se ouviram em terras da Ásia
ou trazem dentro de si
o teu lúgubre ganir...


Todavia, os ventos calam.
Nada me informa o teu nome.


Procura e pesadelo


Por que então essa busca
de cinzas idas no vento?
Por que fitar nas esquinas
os altos fornos do tempo?
Por que procurar-te, Amigo,
jovem cão, de minha idade,
se a voz dos cães não se escuta
dentro das grandes cidades?


Perdoa o romance rude!
Não o fiz, vi-o num sonho
escrito, no teu focinho,
doloroso, quase humano.


Tu que encheste de poesia
os campos longe da infância,
triste, em sonhos me apareces,
olhos sitiados de sombras:
e somos ambos perdidos
numa noturna montanha.


Belo Horizonte, 31 de dezembro de 1954

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Mauro Mendes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

César Leal


 

Elogio do sonho


Quando caminha nas águas
banha as agulhas noturnas
e bebe chamas de espumas
nos claros copos da lua
esconde no corpo um fogo
claro, vermelho, constante:
rubro ondular de bandeiras
por entre nuvens dançantes
ei-la subindo nas chuvas
galopando em seu cavalo
a cabeleira de trigo
solta ao furacão voante
ordena para que um dia
os sons se mudem nas cordas
destes violinos cegos
que por entre urtigas tocam
— vejo-a inteira, emparedada
entre as brasas que caíam
naqueles vales secretos
onde as árvores fugiam.
 

 

 

Culpa

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Miguel Sanches Neto, 2002

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

César Leal


 

Luz de Granada


É uma luz-luz água
uma luz partida:
— alva luz das vagas,
alta luz da vida.


Luz asa das aves,
verde, luz exposta
aos ventos, nas torres:
— ouro-sol das portas.


Água luz de sombra,
a sombra de Alhambra,
sombra luz dos arcos,
verde luz nas sombras.


Luz feita de luz,
luz tranqüila e branca,
luz tão luz que a luz
tanto branco espanta.


Luz de Pernambuco
lembrada! Recife,
luz de Alhambra e Olinda:
Luz Generalife.


Alta luz dos tetos,
alta luz tão só,
luz toda de Lorca
— luz Porta do Sol!
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Neide Archanjo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

César Leal


 

Homenagem a Cícero Dias


As águas da lua
      águas secretas
             as águas da lua
                   sempre estão despertas


As águas da lua
      são lúcidas claras
            as águas da lua
                  têm forma das águas


As águas da lua
      são águas preciosas
            as águas da lua
                  caídas no abismo


As água da lua
      são águas secretas,
            são águas são portas
                  são formas abertas


As águas da lua
      são tristes barrocas
            as águas da lua
                  são ocas são ocas


As águas da lua
      não abrem sementes
            as águas da lua
                  são brasas ardentes


As águas da lua
      têm imagens claras,
            imagens de peixes
                  imagens de vagas


As águas da lua
      navegam tão alto
            nenhuma aeronave
                  alcança o seu passo


As águas da lua
     não são o que pensas:
            são águas sem tempo
                 na Lua suspensas.
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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José Lívio Dantas