| 
            
            César Leal   
            Francisco Carvalho: mago da poesia
 
 O poeta Francisco Carvalho publica 
            Girassóis de Barro, poemas que justificam a entusiástica recepção de 
            sua obra poética entre os melhores leitores de poesia brasileira 
            neste fim de século. Mas quando digo "sua obra poética" é claro que 
            não me refiro apenas a Girassóis de Barro. Falo também dos vinte e 
            um livros que já publicou ao longo de sua vida. A esses livros 
            anteriores, ele junta mais este. É algo assim como a "palavra do 
            fogo / gravada no umbral / das cem portas de Tebas", ou se o leitor 
            prefere, "o abutre vermelho / roendo as estranhas / dos muros de 
            Tróia". Assim é a poesia de Francisco Carvalho: um poeta moderno com 
            uma densa compreensão da importância dos conceitos de Antiguidade e 
            Contemporaneidade. Pois sem um interrelacionamento desses conceitos, 
            os termos moderno e pós-moderno não passam de meras abstrações 
            teóricas. 
 
 Mas não se pode ficar 
            indiferente a beleza de avenidas como estas: O pássaro no espaço
 O pássaro no asfalto
 O pássaro no espelho
 O pássaro na escarpa
 O pássaro na estepe
 O pássaroa estibordo
 O pássaro no exílio
 O pássaro no ventre
 O pássaro no vértice
 O pássaro na bússola
 O pássaro na lâmpada
 O pássaro na nuca
 O pássaro no tempo
 O pássaro na cópula
 O pássaro na cúpula
 O pássaro no estio
 O pássaro na aurora
 O pássaro na voz.
 
 
 Faço o elogio dessas formas com 
            plena consciência das forças mágicas que nelas se concentram. E se 
            tivesse que demonstrar a sinceridade do que afirmo, a minha própria 
            poesia seria um exemplo. Só um poeta competente - e Francisco 
            Carvalho é competentíssimo - poderia escrever estes versos: 
 
 Águeda na chuva e no vento, em chamas
 no meu pensamento.
 
 
 Poetas à semelhança de Francisco 
            Carvalho são poucos em cada século. O alogicismo de sua linguagem é 
            característico da melhor arte de nosso tempo; isso já seria 
            suficiente para situar Francisco Carvalho em posição singular no 
            quadro da poesia brasileira contemporânea. O alogicismo da poesia 
            intensificou o sentido de suas linhas a partir do século XIX, em 
            especial com Rimbaud e alcançou grande força neste século em certa 
            fase da poesia de Paul Eluard. Mas o alogicismo sempre existiu entre 
            os grandes poetas e continuará a existir através dos tempos, 
            enquanto houver poetas e poesia.  No poema "Sábado", Francisco 
            Carvalho se refere a "vento pálido", também fala de "fel da lágrima" 
            que efetivamente pode aludir a algo referente a dor, desgosto, já 
            que a lágrima se associa à idéia de choro, de sofrimento, daí o 
            amargor do fel. Mas o "azul metálico" "da égua árabe" lança o leitor 
            no núcleo do "absurdo como recurso de liberdade". Ou seja, nos atira 
            bem no centro de uma expressão surrealista. Também se pode observar 
            oposições tipicamente ultramodernas como: 
 
 Hoje é sábado o vento é pálido
 e tudo é sólido.
 
 
 Contudo, o terceiro verso da 
            última estrofe - o poema tem seis estrofes - desfaz o terceiro da 
            primeira: 
 
 e nada é sólido.
 
 
 É essa técnica de oposições 
            deliberadas a pedra de toque dos poetas da modernitas, como ensinam 
            os teóricos da poesia. Francisco Carvalho pertence a esta família, 
            que não é tão grande quanto se julga. São poucos os que cultivam 
            tais flores em seus jardins. E possuem o dom de ver o quanto há de 
            belo e de duradouro em poesia construida dentro desses padrões de 
            exuberância e rigor. Os romanistas - e os mais completos entre eles, 
            paradoxalmente são alemães - definem tal poesia como "romantismo 
            desromantizado" - algo equivalente à poesia que vem sendo cultivada 
            pelos mais completos poetas do século XX. E essa é a melhor 
            definição para Francisco Carvalho: "romântico resromantizado", o que 
            equivale a ser "moderno", "pós-moderno" (valha o termo com toda sua 
            carga de imprecisão). Por isso, quando presta homenagem a Minas, 
            através da grande Yeda Prates Bernis e outros, adverte: "Não 
            imaginem os desavisados que este poema seja uma tentativa de voltar 
            aos tempos e à prática da poesia bucólica dos árcades", advertência 
            desnecessária, já que é evidente o abismo que separa sua expressão 
            das formas cultivadas pelo Poeta de Marília, que na realidade foi um 
            criador de belos poemas, e ao modo de Francisco Carvalho, um homem 
            de seu tempo. E isso está presente nessa torres e avenidas de 
            palavras presentes em Girassóis de Barro, um livro que coroa muito 
            bem os 70 anos de vida do poeta brasileiro.
 
 (in Diário de Pernambuco, 22.09.1997)
   
 
 
 Leia 
            obra poética de Francisco Carvalho |