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César Leal


O Livro de Olinda em nova edição

 

Ao escrever sobre Olinda, Jaci Bezerra diz que ela "é um volume de sonho e luz aberto nas prateleiras do ar". Ao falar da cidade, Jaci Bezerra elegeu o livro como a forma simbólica de sua representação. Todas as formas precisam de nomes. Estamos, portanto, diante da metáfora do livro. E por ser um livro se pode entender melhor, visualizar com mais força as noções de sonho, de luz, de prateleiras aéreas, onde se torna possível ver Olinda na água, no Sol, na eternidade de sua topografia cercada pelos universos da natureza e da cultura. Daí o encanto de Olinda, o temor - por ser um sonho - que tal encanto desapareça. O que não ocorrerá: aí está de volta o livro de Jaci Bezerra, numa 2ªedição pelo Ateliê Editorial, São Paulo, 1997. A partir do quadro inicial, o poeta vai construindo metáforas que dão a Olinda uma visibilidade pura, familiar à experiência dos que gostam de boa poesia:

 

"Rasurando a memória, se folheio
as lembranças extintas
evita, silenciosa, os meus receios
e altera o mundo sem que o mundo sinta. O sonho extinto em quem, sonhando, a
veja,
mesmo extinto, não finda,
que o olhar sonha quando a lembra, acesa,
e quando a esquece, sonha mais ainda."

 

Ao todo são 29 quadros, cada um formando um poema que pode ser lido independente dos demais. Cada poema está dividido em seis estrofes. Cada estrofe, contém quatro versos, sendo o primeiro, o terceiro e o quarto decassílabos. O segundo verso é hexassílabo. O período rítmico, portanto, é de 36 sílabas. Cada quarteto está rimado de acordo com o esquema A B A B. Às vezes aparecem assonâncias, mas dificilmente seriam notadas, uma vez que pelo menos um par de versos rimados faz parte da estrofe.

Bastaria a função musical das rimas para assegurar ao conjunto uma sonoridade mágica. O hexassílabo no segundo verso de cada estrofe quebra a marcialidade do verso heróico, assegurando um ritmo sincopado aos vinte e nove quadros que integram o livro. Sendo um hábil criador de formas, a leitura desse livro se torna um agradável exercício intelectual. As operações da inteligência, o controle da linguagem, o emprego das metáforas e dos símbolos, tudo isso associado forma um clima favorável ao discurso épico-lírico como convém a um poema dedicado a uma cidade construída no alvorecer de nossa existência histórica. Olinda foi campo de batalha e conheceu o fogo da guerra quando no século XVII chegaram aqui os holandeses. Um exemplo do épico:

 

A princípio foi pedra e foi convento,
diz o livro do Tombo,
contrária à luz do mar, contrária aos ventos
e às altas torres de cristais e pombos.


 

Não há dúvidas: aqui domina o clima narrativo. No quarto quadro - a nota hidrográfica - o lírico se afirma como a força dominante:

 

Avanças passeando na lembrança,
da lembrança afastando
a mão que poluiu as tuas tranças,
e, ao mudar, foi também em nós mudando.


 

O autor planejou todos os passos que deveria dar para a estruturação do livro. Elegeu o esquema das estrofes, o sistema de rimas e até o tipo das assonâncias, em que as diferenças das consoantes não produzissem quebra da harmonia na camada sonora.Por exemplo: lâmina com faca. Em assonâncias desse tipo, a palavra esdrúxula - "lâmina" - com seu i cataléptico, separa a última vogal acentuada por um grupo consonantal - mn - bem diferente de "faca", porque neste caso a última vogal acentuada está separada da outra vogal apenas pela consoante c. Essa diferença sonora está condicionada não só pelo uso da palavra esdrúxula mas também pelo emprego de duas consoantes líquidas - mn - nas quais se verifica uma interrupção parcial da voz, enquanto que na palavra faca a consoante muda - c - quase não é pronunciada porque o ar vindo do peito tem a sua passagem pelos órgãos de emissão da voz praticamente interrompida. Jaci Bezerra, com o seu gosto pela musicalidade, evita assonâncias enquadradas nesse esquema. No antepenúltimo quadro - pois o Livro de Olinda é um poema único - há dois exemplos de assonâncias em que os valores sonoros são quase homofônicos. Na primeira estrofe, temos "ermos" e "desterro" e na penúltima, "desejamos" e "enganos". No primeiro exemplo, aúltima vogal acentuada está separada da vogal final pelo grupo consonantal r m; no segundo, quase chegamos a uma rima, uma vez que a consonância é quebrada apenas pelo m de "desejamos" ou o n de "desenganos".
Além disso, ambas as consoantes são líquidas, o que assegura a cada uma delas um valor quase inerente, idêntico. Ao mudar o valor do som para a escala relacional, o valor inerente de m e de n arrasta consigo a sua identidade. Com isso, desejo apenas confirmar que Jaci Bezerra escreve os seus poemas, executando, com precisão, rigoroso cálculo artístico. É um poeta forte. Tão imune à arrogância que poderia dizer com Rimbaud: Par délicatesse / J'ai perdu ma vie (Por delicadeza / Eu perdi minha vida).


(in Diário de Pernambuco, 20.10.1997)

 


 

Leia Jaci Bezerra

 

 

 

Culpa

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Maria da Conceição Paranhos