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César Leal


Os dias pelos dias: novo livro de Nejar

 

O equilíbrio entre o racional e o sensível é uma das características mais observadas na poesia de Carlos Nejar. Em especial nos seus livros de composições mais longas; poemas narrativos. Emoção e reflexão nunca se dissociam nos poemas mais extensos. E acabam dando origem a metáforas puras, imagens homéricas, do tipo daquelas em que Zeus confessa arrastar "para si toda a corrente do ser". Ou seja: por seu poder, os demais deuses que lutam entre si, poderão unir-se graças ao império de sua vontade: a vontade de Zeus. Em seu novo livro Os dias pelos dias, o leitor poderá observar essa pulsação rítmica, própria do epos, mesmo quando o verso sem unidade métrica se apresenta como princípio ordenador da estrutura da obra que tanto pode ser um poema quanto uma sinfonia ou uma escultura. Isso quer dizer que o ritmo do epos tanto pode estar presente nas artes temporais quanto nas espaciais. O ritmo é um conceito temporal. Mas funciona, também, metaforicamente, nas artes espaciais. Lembro-me de que, certa vez, JoaquimCardozo, ao mostrar-me um álbum com reproduções de quadros de Vicente do Rego Monteiro, falou-me do ritmo suave das cores, apesar da tendência monocromática da pintura de Vicente.

Os dias pelos dias é a reunião de três dos livros mais bem realizados de Carlos Nejar. Os que não estão habituados à enorme variedade de ritmos, imagens e metáforas dominantes na poesia deste século, nem sempre conseguem compreender a importância de um poeta da altitude intelectual de Nejar. É por isso que a ele se adapta tão bem o uso de uma certa tropologia em que o "kenning" é observado como recurso de linguagem, com um toque de magia. Northrop Frye diz que o "kenning" sempre teve uma longa linhagem de descendentes. Esse tropo encontra-se na poesia lírica mas também se observa no epos. Ou faz parte da "mistura de estilos" a que se refere o romanista Erich Auerbach. Por exemplo, quando Carlos Nejar diz que "Jesualdo Monte desembarcou nas costas de meu canto". Ou quando diz:

 

Jesualdo Monte, não és homem.
És um burro amarrado ao que
se finda nas ervas.


 

O leitor pode sentir a força das imagens quando o "kenning" está presente. Exemplo: ditadura - "liberdade vigiada é o nosso nome". Mas para o leitor não especializado que deseje saber exatamente o que significa "kenning", aqui fica a explicação de Frye para outras formas do tropo: "No inglês antigo, 'kenning' é a descrição oblíqua que chama o corpo 'casa de ossos' e o mar 'caminho da baleia". Tudo isso é muito simples e Carlos Nejar como bom poeta, ao aproximar sua experiência da experiência do leitor, torna o conceito poético facilmente compreensível. Toda poesia de Nejar está carregada dessa energia metafórica. Se mais alguém perguntar quem é Jesualdo Monte, ele poderá dar sempre uma resposta mágica.

 

Irmão que outro vende
no mercado das eras,
engrenagem de carne
mastigada nos veios
alçapão de homens
que farinham dinheiro,
sóis entrosados
fervilhando
a moenda do tempo.


 

Há poucos dias, ao escrever sobre uma tradução de poemas de Eugenio Montale, fiz a citação de alguns de seus versos. Eram versos assim, como os de Carlos Nejar. O problema é que muitos desconhecem a poesia que se escreve no mundo e ficamos sempre a julgar que o poema não escrito dentro dos paradigmas românticos, parnasianos, simbolistas, concretistas, daquilo que, enfim, não estamos habituados, não é poesia.

Todavia, Canga é mais do que tudo isso porque Jesualdo Monte não é apenas um pretexto para Carlos Nejar por em movimento a máquina leve de sua arte. O poema foi escrito em 1971-72, época da repressão, a exigir dos poetas uma linguagem esópica, como diagnosticou Carpeaux. Foi aí que funcionou seu "canto libertário", de que fala Adriano Espínola no prefácio ao livro. O canto histórico que as imagens, o "kenning", vieram incorporar à memória da humanidade. São momentos imperecíveis que somente os artistas sabem construir e legar às gerações futuras.


(in Diário de Pernambuco, 01.12.1997)

 


 

Carlos Nejar

Leia obra poética de Carlos Nejar

 

 

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Sebastião Uchoa Leite