Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

César Leal

 

O mundo feminino de Suzana Vargas

 

Heloísa Buarque de Holanda ao escrever sobre o novo livro de Suzana Vargas - Caderno de outono e outros poemas - fala-nos de seu "universo feminino". Não costumo fazer distinção entre a poesia escrita por homens ou por mulheres. Mas a diferença existe. Não tem sentido negá-la. A própria crítica é preconceituosa em relação à poesia produzida por escritoras tão completas, quanto Cecília Meireles, em cujos versos pulsa o ritmo oracular da lírica. Quem, sem informação prévia, seria capaz de afirmar que tais versos são produtos de uma personalidade feminina:

 

Eu canto porque o instante existe
e minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


 

Não posso assegurar que a citação esteja correta. Não tenho o texto do poema ao alcance da mão. Cito-o de cor. Mas seja como for, não creio que se possa dizer que a autoria destes quatro versos seja de homem ou de mulher. Às vezes algumas pessoas me indagam: "Quantos ensaios de Eugenio Montale você já leu sobre poesia feminina? Conhece algo escrito por T.S. Eliot sobre mulheres que hajam se destacado na poesia? A essas questões poderíamos dar respostas sumárias. Poderíamos dizer, por exemplo, que Eliot não foi um crítico profissional. Ele somente se ocupava de autores que tiveram decisiva influência - positiva ou não - sobre sua própria poesia. Mas todos sabem que T. S. Eliot tinha na mais alta conta a poesia de Safo e de Teresa de Jesus.

Às vezes esqueço de que meu espaço não é suficiente para generalizações sobre poesia. Crítica, - genuína crítica - só escrevo quando a serviço das revistas especializadas ou dos livros. E Suzana Vargas? Caderno do outono é um título que parece indicar algo relacionado à consciência do Tempo. O tempo heraclitiano, sem dúvida a acepção mais dramática, já que não podemos voltar ao passado a não ser pela memória. Mas o tempo nos dá sempre uma consciência bergsoniana de "lugar", "momento" e "duração". É dessa consciência que surgem palavras relacionadas ao tempo e sua passagem na poesia de Suzana Vargas, tais como quando fala de"meses", "espera" e outras situações relacionadas a essa consciência. Assim como aparecem em "Nova poética".

Suzana Vargas não parece buscar a fama a todo custo. Sob esse aspecto nos lembra Emily Dickinson quando escreveu: "Se a fama me couber, não escaparei a ela - se assim não for, correrei atrás dela a vida inteira - e perderei a estima de meu cachorro - portanto melhor é ficar na 'Ordem dos descalços€".

Suzana é um poeta irregular, mas está a merecer atenções da crítica. Não se pode julgar sua linguagem à base de postulados teóricos e esquemas convencionais. O que se pode afirmar é que ela dispõe de um modo de "dizer" novo. Não de um a priori formal a ser aplicado a todos os poemas. Não é maneirista ao modo de outro ou de seu próprio modo. Em sua língua poética há uma forma de dizer aplicável a cada objeto. Heloísa Buarque de Holanda diz, ainda, que Suzana "parece ter conseguido trabalhar e viver a poesia com curiosa facilidade". Não entenderia essa frase de Heloisa se ela não houvesse empregado a expressão "curiosa". Agora tudo bem. Heloisa sabe onde põe os pés. Quando ela pisa o planeta, seus pés o planeta sente.

Um dos mais belos poemas de Suzana Vargas é "A casa". A casa é uma composição que não dispensa análises, interpretações. A casa é o lugar do repouso, do sonho, do amor, de nossas afeições domésticas: gatos, pássaros em gaiolas, o cão, alegrias, os agregados fiéis. É o lugar onde nos sentimos seguros. É a concha das recordações, das vozes dos avós, dos país, do carinho das tias, de lembranças perenes. "A casa", de Suzana Vargas nos devolve esse mundo mas tem algo de despedida, de um nevermore vizinho à Casa de Usher, de um estranho componente metafísico:

 

A Casa
Não só digo adeus
aos teus dois quartos
à sala ampla
a uma rede sonhada na janela
Digo adeus aos teus cheiros
a essas baratas
que vez por outra te rondaram.
Campainhas, telefones,
brigas e remédios ficarão para trás
além dos sustos
E digo adeus aos fantasmas
que te cercam
Também aos teus arbustos.
E quando uma voltana chave
Digo adeus aos teus ruídos
peregrinos
ecos
Movimentos mais amenos do tempo.


 

(in Diário de Pernambuco, 08.12.1997)

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

Início desta página

Rogério Lima