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            Cláudio Aguiar   Ivan 
            Junqueira - "A Poesia Brasileira de Hoje é Muito Superior à que se Escreve Noutras Línguas"
 
 Entrevista exclusiva a Cláudio 
            Aguiar para O Pão n. 41,
 
            Fortaleza, Ce, maio de 1997. 
 
 O carioca Ivan Junqueira, 62 anos, 
            deixou incompletos os cursos de Medicina e Filosofia mas abraçou 
            definitivamente a literatura. Hoje é dono de uma invejável obra 
            marcada por livros que lhe dão o direito de ostentar os títulos de 
            poeta, tradutor, ensaísta, crítico e jornalista com merecido 
            reconhecimento nacional.  Como poeta publicou o primeiro 
            livro Os Mortos em 1964. A partir de então, apareceram Três 
            Meditações na Corda Lírica (1977), A Rainha Arcaica (1980), O Grifo 
            (1987) e A Sagração dos Ossos (1994).  Iniciando-se na tradução em 1967 
            com Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, seguiram-se algumas obras de 
            Marguerite Yourcenar, Jorge Luís Borges, Charles Baudelaire, Marcel 
            Proust, Dylan Thomas, G. K. Chesterton e Leopardi.  Na crítica e no ensaio publicou 
            Testamento de Pasárgada (1981),À Sombra de Orfeu (1984), O 
            Encantador de Serpentes (1987), Prosa Dispersa (1991), etc.  Com poesia traduzida para seis 
            línguas e detentor dos mais importantes prêmios literários do país, 
            destacando-se o Jabuti de 1995, no momento Ivan Junqueira é 
            editor-executivo de Poesia Sempre, a mais conceituada revista da 
            atualidade, publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.    
 Cláudio Aguiar (CA) - A natureza e o 
            significado do ato criador é um tema recorrente desde os primórdios 
            da história humana. A criação poética deve levar em conta a imitação 
            da realidade ou perder-se numa espécie de insondável mistério?
 
 Ivan Junqueira (I J) -A criação poética, como 
            qualquer outro ato criador, envolve sempre uma certa imitação da 
            realidade. Sobre o assunto escreveram lapidarmente, entre muitos 
            outros, dois autores que me parecem fundamentais: Aristóteles, na 
            Poética e Rich Auerbach, em sua célebre Mimésis, realidade 
            representada na literatura ocidental, que define o realismo 
            literário a partir de suas particularidades estilísticas 
            interpretadas como expressão de situações sociais. Vinte e quatro 
            séculos separam, portanto, as contribuições desses dois notáveis 
            pensadores e, ao longo de todo esse tempo, o problema da imitação da 
            realidade não deixou de instigar diversos outros escritores e 
            filósofos. Não há como escapar de alguma forma de imitação da 
            realidade seja na poesia, seja em qualquer outra manifestação 
            artística. Mas há que levar em conta que a arte, para configurar-se 
            como tal, sempre deforma essa realidade para criar o que entendemos 
            por objeto estético. Por outro lado, não creio que ninguém se perca 
            em nenhuma espécie de insondável mistério: apenas dele se alimenta, 
            mesmo porque, como sublinha Gilbert Keith Chesterton em sua 
            Ortodoxia, o "mistério é a saúde do espírito". Lembre-se, a 
            propósito, o que diz Baudelaire em seu Mon Coeur Mis a Nu quando 
            acusa Voltaire de "preguiçoso" devido ao desdém que sempre revelou 
            quanto às próprias possibilidades de existência do mistério enquanto 
            matriz da criação artística. Bastaria que pensássemos no legado da 
            arte medieval para que entendêssemos a importância do mistério no 
            ato criador. Apesar de todas as conquistas científicas e 
            tecnológicas que se fizeram no mundo até o fim deste milênio, o 
            mistério, assim como a poesia, permanece irredutível a todos os 
            assaltos da razão. E insisto aqui: ninguém se perde no mistério; às 
            vezes até mesmo nele se encontra ou se redime. 
 
 CA - Na relação entre semelhança e adequação 
            com uma dada realidade o homem artista assume responsabilidades como 
            se fora um criador de situações. Qual a posição do poeta diante do 
            transcorrer do tempo como se fora uma testemunha dos atos e fatos 
            que fluem? Deve ser a de um Prometeu - aquele rebelde mítico - que 
            usa o fogo para clarear o seu próprio mundo ou modelar outros seres?
 I J - O homem que cria situações diante do fluxo do tempo lembra-me 
            um pouco aquele fragmento enigmático em que o filósofo pré-socrático 
            Heráclito de Éfeso, no século VII a. C., nos ensina que o tempo é 
            uma criança que joga dados. A atitude do poeta diante do transcurso 
            do tempo tem um pouco a ver não apenas com esse esfíngico ludismo da 
            criança, mas também com o substrato do mito prometêico. Mas cumpre 
            deixar claro que o tempo a que me refiro não se restringe a nenhuma 
            experiência dentro do contexto lógico-racional daquele transcurso 
            das horas que registram os relógios. Na verdade, o tempo de que falo 
            se confunde com a noção de durée bergsoniana em que se misturam o 
            passado, o presente e o futuro, ou mesmo com aquele abissal 
            pensamento agostiniano segundo o qual o tempo não tem princípio. 
            Refiro-me aqui, portanto, a um pantempo, ou seja, aquele que Eliot 
            tão bem definiu nos três versos iniciais do primeiro de seus Quatro 
            Quartetos: "O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez 
            no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado." 
            Somente como parte integrante dessa circularidade que se distende 
            para além da razão lógica é que o poeta poderá tornar-se testemunha 
            dos atos e fatos que fluem nessa correnteza compósita ao sabor da 
            qual ora avançamos, ora recuamos, em busca de significados que 
            transcendem o tempo cronológico medido pelos ponteiros de um 
            relógio, pois esse relógio jamais poderá registrar o que de fato 
            flui naquele devir heraclitiano em que tudo não é porque está sempre 
            vindo a ser. Como poderia Proust, por exemplo, resgatar e 
            redescobrir o tempo no plano estético não fosse o abandono a que se 
            submeteu com relação àquele pantempo que lhe servia de matéria e 
            memória?
 
   CA - Há quem exagere a posição 
            do poeta, tomando-o como um ente divino, dando-lhe poderes de 
            construtor de um mundo onde o Eu torna-se uma realidade absoluta. 
            Qual o lugar do lirismo ou do sentimento romântico na obra desses 
            poetas? Que fazer dessa matéria poética que, de qualquer forma, 
            sempre estará presente na alma dos homens?  I J - Não creio que o poeta tenha nada de divino. Só Hölderlin, em 
            sua loucura, concebeu como tal, operando assim aquele retorno aos 
            deuses da antiga Grécia. Mas Hölderlin viveu numa época em que esse 
            regresso espiritual ainda era possível, sobretudo se pensarmos aqui 
            em sua formação romântica e, talvez mais do que esta, filológica, o 
            que lhe permitiu mergulhar em estratos de um mundo a que 
            dificilmente qualquer um de nós teria acesso nos tempos que correm. 
            Não creio também em quaisquer poderes que confiram ao poeta o 
            privilégio de construir um mundo em que o eu se torne uma realidade 
            absoluta. Isso corresponderia a compactuar com aquele absurdo 
            solipsístico em que se perdeu o radicalismo subjetivista sobre o 
            qual se funda o pensamento de Fichte, ou seja, a filosofia do eu 
            absoluto que tanto influenciou, aliás, não apenas certas vertentes 
            do idealismo transcendental alemão, mas o próprio romantismo do 
            Sturm und Drang à sombra do qual se formou o atormentado espírito de 
            Hölderlin. O lugar do lirismo ou do sentimento romântico na obra dos 
            poetas aos quais se refere sua pergunta me parece um lugar que só 
            poderia ser hoje compreendido do ponto de vista histórico, embora 
            seja óbvio que sua herança literária ainda esteja presente entre nós 
            e, mais do que isso, atuante. Não me cabe arriscar aqui nenhuma 
            conjectura sobre o que fazer dessa matéria poética, mas uma coisa é 
            certa: ela continua a nos habitar e perturbar porque, em certo 
            sentido, continuamos a ser românticos, particularmente naquela 
            acepção em que o foi, em plena modernidade e apesar de sua crueza 
            expressiva, um poeta como Manuel Bandeira. E você está coberto de 
            razão quando diz que essa matéria poética da qual não sabemos 
            exatamente o que fazer, mas que nos concerne e alimenta, estará 
            sempre presente na alma dos homens. Caso contrário, não seríamos 
            homens e, muito menos, teríamos alma ou sequer espírito.
 
 
 CA - O poeta, já foi dito, é um fingidor. 
            Então tudo o que ele pensa (ou finge que pensa) é poesia? Qual a 
            atenção que deve o poeta dar à arte e à técnica ou, noutras 
            palavras, ao ofício e ao artifício?
 
 I J - O que um poeta pensa ou finge que pensa pode 
            ser ou não ser poesia. Em seus conhecidos versos, Fernando Pessoa 
            não alude propriamente à poesia, mas sim à dor que o poeta deveras 
            sente. Ou como se lê na esplêndida estrofe do autor: Finge tão 
            completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras 
            sente. Pois bem: se de fato a sente, essa dor, fingida ou não, é 
            algo real, pelo menos enquanto dor, mas pode não ser poesia. Essa 
            dor é, portanto, multitudinária, ou seja, de toda a humanidade. E se 
            o poeta estiver autenticamente antenado na dor dessa humanidade, 
            ainda que a finja sentir, sentindo-a, ela se torna concreta, 
            transformando-se então na dor que o poeta "deveras sente". Cumpre 
            aqui entender que o mesmo fingimento dói no poeta, pois tudo nele 
            sempre dói. E é através dessa dor, como já nos advertia Schopenhauer, 
            que se distende e aprofunda o conhecimento do mundo, desse mundo que 
            é vontade e representação. Quanto à outra parte de sua pergunta, 
            esclareço de pronto que, sem arte e técnica ou sem ofício e 
            artifício, não há poesia que se sustente, pois, neste caso, 
            estaríamos divorciando a forma do conteúdo quando se sabe que tanto 
            um quanto o outro são uma coisa só e, mais do que isso, inconsútil. 
            Sobre essa questão da indissociabilidade de forma e fundo, aliás, 
            recorro sempre a uma engenhosa proposição do poeta francês Pierre 
            Reverdy: se considerarmos um animal qualquer, por exemplo, a forma 
            seria o que nos mostra por fora a pele desse animal, enquanto o 
            conteúdo seria o que ela nos oculta, fenomenicamente, por dentro. O 
            conteúdo sem forma nada mais é, por conseguinte, do que uma 
            contradição em termos, uma falácia. E é no equilíbrio alcançado por 
            uma coisa e outra que se revela o grande poeta. Um dos equívocos da 
            poesia de participação social é justamente este: em nome de uma 
            utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí, 
            compromete-se toda a possibilidade de transmissão artística ou de 
            fruição do objeto estético. Enfim, se somos artistas, não podemos 
            jamais renunciar à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel 
            entre forma e fundo. 
 
 CA - Você tem, entre nós, lugar certo e 
            respeitável como um escritor que cultua a poesia e a tradução, 
            sobretudo a dos poetas franceses e italianos (e aqui estou pensando 
            em Baudelaire e Leopardi, por exemplo). Deve ou pode a poesia ser 
            traduzida?
 
 I J - Cultuo não apenas a poesia e a tradução de 
            poetas, mas também - e de forma contumaz - o ensaísmo e a crítica de 
            poesia, tanto assim que já publiquei seis coletâneas de ensaios e de 
            crítica literária. Aos poetas que traduzi e aos quais alude sua 
            pergunta, mais do que Leopardi, de quem verti apenas cinco poemas 
            para o português, gostaria aqui de referir-me, com maior razão, a 
            outros dois, T. S. Eliot e Dylan Thomas, cujas obras completas 
            também traduzi. Tanto esse ensaísmo quanto essas traduções respondem 
            às exigências de uma estratégia que desde sempre me impus, ou seja, 
            não restringir-me apenas a minha producão poética, mas, através do 
            que escreveram outros poetas em outras línguas, instrumentar-me cada 
            vez mais no que toca ao meu ofício. E não é pouco o que tenho 
            aprendido quer traduzindo, quer escrevendo ensaios sobre a poesia 
            alheia. A poesia pode e deve ser traduzida, sobretudo num país como 
            o nosso, constituído de uma população por assim dizer monoglota. 
            Quanto ao êxito dessa operação tradutória, quase sempre escasso por 
            ser a poesia amiúde intraduzível, diria eu que ele reside, acima de 
            tudo, numa sábia compreensão daquele princípio coleridgiano da "supension 
            of disbelief". Em outras palavras: cumpre generosamente acreditar, 
            graças a essa "suspensão da descrença", que um poema possa ser 
            traduzido, ainda que, em certos casos, não o devesse. E entenda-se 
            que qualquer tradutor deve ser definido como o homo ludens que nos 
            serve a poesia alheia do homo faber. No que respeita ao resgate de 
            um original poético, valeria ainda a pena recordar aqui uma 
            lucidíssima observação de Dante Milano no prefácio que escreveu à 
            sua lapidar tradução de três dos cantos do Inferno dantesco. Diz 
            ele: "Pode-se traduzir o que um poeta quis dizer, mas nunca o que 
            ele disse". Enfim - e se me faço entender pelos leitores de O Pão - 
            toda poesia é traduzível justamente por não sê-lo, o que levou Otto 
            Maria Carpeaux, quando escreveu sobre a minha tradução da poesia de 
            Eliot, a sublinhar que dela muitíssimo gostava exatamente por 
            tratar-se de uma tradução, e não do original. 
 
 CA - Há quem veja na tradução do poema uma 
            experiência que redunda, quase sempre, num pecado do tradutor ou num 
            ato de perdão do leitor menos exigente. Como vê a questão da 
            fidelidade formal versus a busca da imagem essencial diante do logro 
            original do poeta?
 
 I J - Tudo o que disse na resposta anterior caberia 
            como luva à sua nova pergunta. Não há nem o pecado do tradutor - 
            pelo menos quando é digno desse nome - por envolver-se num processo 
            legítimo de aproximação de um autor que escreve em outra língua, 
            como tampouco o perdão do leitor menos exigente e que, por sê-lo, 
            não está apto seja a perdoar, seja a repelir o que tem diante dos 
            olhos. Ocorre que somente poetas - e, de preferência, bons poetas - 
            devem arriscar-se a traduzir poetas. Caso contrário, a fidelidade 
            formal e a busca daquela imagem essencial a que você se refere 
            estariam desde logo irremediavelmente comprometidas. Veja-se , por 
            exemplo, o caso de Manuel Bandeira, que, no meu entender, é o maior 
            tradutor de poetas à língua portuguesa. E por que o foi? Porque era 
            o mais culto e bem instrumentado dentre todos os nossos poetas. 
            Quando traduzi Les Fleurs du Mal, de Baudelaire - aventura que se 
            estendeu por quase cinco anos -, mantive não apenas a métrica, mas 
            todos os esquemas rítmicos de que se valeu o poeta. O poema 
            baudelairiano é talvez o mais exato, orgânico e coeso exemplo de um 
            mecanismo de precisão, e o que mais nos surpreende é que, sob a 
            aparente frieza desse engenho, esplende a cada verso, a cada imagem, 
            a cada metáfora. Não foram poucas as vezes em que pensei em desistir 
            de traduzi-lo, no que fui impedido com veemência por Dante Milano, 
            ele próprio também tradutor de alguns poemas de Baudelaire e que me 
            julgava o único neste país a ser capaz de dar conta do recado. E da 
            mesma forma me senti quando enfrentei os textos de Eliot, Dylan 
            Thomas e Leopardi. Se cheguei, no caso específico de Les Fleurs du 
            Mal, a atingir aquela fidelidade formal a que se refere sua 
            pergunta, que o digam os críticos e leitores. De qualquer modo, a 
            repercussão foi extraordinária, e agora acaba de esgotar-se a sexta 
            edição da obra, já estando no prelo a sétima. E não deixa de ser 
            curioso que algumas pessoas, inclusive intelectuais de estirpe, vez 
            por outra me perguntam: O que levou a perder cinco anos de sua vida 
            com Baudelaire? Respondo sempre: Não perdi, ganhei. 
 
 CA - Nos últimos anos verificamos um crescente 
            interesse do público pela poesia, o que vem provocando um maior 
            respeito de nossos editores pelos poetas brasileiros. A que atribui 
            essa salutar mudança?
 
 I J - Essa mudança me parece estar relacionada não 
            apenas a um interesse maior do leitor pela boa poesia - e aqui cabe 
            salientar o papel decisivo que vêm representando, desde o início da 
            década de 1980, as traduções competentes de grandes poetas de outras 
            línguas -, mas igualmente a boa vontade e à consciência profissional 
            de certos editores que começaram a perceber que poesia também vende. 
            Lembro aqui - não em causa própria, mas como prova de um episódio 
            que acompanhei muito de perto -, o caso da edição brasileira de 
            minha tradução dos poemas de Eliot sob o título de T. S. Eliot. 
            Poesia (Nova Fronteira, 1981) e que, em apenas dois meses, vendeu 
            três edições, chegando mesmo na época a figurar na lista dos mais 
            vendidos de Veja e IstoÉ. Considerando-se que Eliot é um poeta 
            difícil, um indiscutível poeta de elite, essa vendagem foi, no 
            mínimo, assombrosa. E a obra está hoje na sexta edição, acompanhando 
            de perto a trajetória editorial de As Flores do Mal. Outro exemplo: 
            Poemas Reunidos: 1934-1953, de Dylan Thomas - poesia ainda mais 
            difícil do que a de Eliot do ponto de vista da língua e que também 
            traduzi integralmente para o nosso idioma -, foram lançados no final 
            de 1991 e, dois anos depois, a tiragem esgotou-se. E o mesmo, ou 
            quase o mesmo, vem ocorrendo com as traduções de outros grandes 
            poetas estrangeiros por Ivo Barroso, Jorge Wanderley, José Paulo 
            Paes, José LIno Grünewald, Augusto e Haroldo de Campos, Paulo 
            Vizioli, Abgar Renault, Leonardo Fróes, Idealma Ribeiro de Farias, 
            Aíla de Oliveira Gomes e outros intelectuais de indiscutível 
            calibre. Dá-se hoje, na literatura brasileira, um fenômeno 
            semelhante àquele que se verificou nas literaturas alemã e russa, 
            cujo amadurecimento e esplendor devem muito às traduções que ali se 
            fizeram dos clássicos durante o século XIX. Por outro lado, alguns 
            poetas brasileiros - Manuel de Barros, Ferreira Gullar, João Cabral 
            de Melo Neto, Adélia Prado e Affonso Romano de Sant'Anna, para 
            ficarmos apenas com os vivos -, continuam a vender bem. Cito aqui 
            até mesmo o meu próprio caso: publicado em novembro de 1994, A 
            Sagração dos Ossos, que no ano seguinte recebeu o Prêmio Nacional de 
            Poesia do Pen Club do Brasil e o Prêmio Jabuti, havia vendido até o 
            fim de 1996 cerca de 1 mil 300 exemplares, o que considero um 
            espanto. E há outra coisa: o nível geral da poesia que hoje se 
            escreve no Brasil é muito bom, como atestam as últimas obras de 
            poetas jovens ou não. É o caso, por exemplo, de Alexei Bueno, Bruno 
            Toletino, Adriano Espínola, Floriano Martins, Luciano Maia, Leonardo 
            Fróes, Waly Salomão, Alberto da Cunha Melo, César Leal, Weydson 
            Barros Leal, Donizete Galvão, Carlito Azevedo, José Alcides Pinto, 
            Francisco Carvalho, Ruy Espinheira Filho, Dora Ferreira da Silva e 
            tantos outros que aqui involuntariamente omito, pelo que de imediato 
            me escuso. E é claro que os editores estão atentos ao fenômeno, 
            resultando daí o respeito que passaram a ter por nossos poetas. 
            Agora é torcer para que essa onda não se desmanche na praia. 
 
 CA - O homem percorreu entre o grafismo sobre 
            a pedra e a utilização do papiro e do pergaminho um longo caminho 
            até chegar ao papel. No entanto, parece que outras formas 
            incorporaram-se à vida do homem moderno. Quais os efeitos produzidos 
            pelas novas técnicas de comunicação visual em relação à literatura 
            produzida através do livro tradicional?
 
 I J - Se desconsiderarmos o ludismo do grafismo de 
            experiências lingüísticamente suicidas e idiotas, como o foram - e, 
            infelizmente, ainda o são - as do concretismo e da poesia práxis, 
            arrisco-me aqui a dizer que foram poucos e mesmo insignificantes os 
            efeitos produzidos por essas novas técnicas. Muito a propósito, 
            advirto para o fato de que existe hoje, na poesia brasileira, uma 
            tendência de retorno àquela herança literária que o mundo ocidental 
            recebeu desde Homero e Virgílio, àquilo que Eliot, em seu conhecido 
            ensaio Tradição e Talento Individual, sabiamente definiu como o 
            continuum de um fenômeno de cultura que não pode e não deve ser 
            esquecido. Apesar de ter sido crucial para todos nós, que nos 
            formamos à sua sombra, o Modernismo de 1922 incorreu na tolice de 
            desprezar o que o passado e a tradição nos ensinam. O passado só 
            morre quando é passadista. Mas em que medida Virgílio, Horácio, 
            Dante, Petrarca, Leopardi, Novalis, Hölderlin, Goethe, Donne, 
            Shakespeare ou Camões podem ser identificados com o passado, se 
            constituem a mais grandiosa e orgânica lição de permanência? O que 
            morre são as fôrmas - que, aliás, já nascem mortas - e não as 
            formas. O que há de velho, por exemplo, no cultivo de formas como o 
            soneto, a balada, o rondó ou a sextina, se impregnadas das 
            exigências de nosso tempo e de nossa visão moderna do mundo? Poetas 
            como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, 
            Américo Facó, Joaquim Cardozo, Dante Milano, entre outros, 
            fartaram-se de fazê-lo. E por isso não foram modernos? Foram-no. E 
            digo mais: talvez até moderníssimo ou, pelo menos, muito mais 
            modernos do que poetas que, por incompetência e ignorância, 
            dedicaram-se a escrever versos que certa vez Paulo Mendes Campos, 
            entre irônico e perspicaz, definiu como modernérrimos, corroborando 
            o que pouco antes, aliás, dissera Mário de Andrade com relação ao 
            relaxamento formal de Vinicius de Morais em seus dois primeiros 
            volumes de poemas. Essas novas técnicas de que fala sua pergunta 
            romperam, na grande maioria dos casos, os limites extremos do 
            sistema da língua e nada mais fizeram do que engendrar signos 
            cadavericamente lingüísticos. 
 
 CA - Qual o futuro ou perspectiva da poesia 
            brasileira na passagem desse milênio?
 
 I J - Penso que são grandes e até venturosas as 
            perspectivas da poesia brasileira nessa virada de milênio. Temos 
            bons poetas, alguns muito jovens, ainda em fase de formação e 
            amadurecimento, mas que, pelo que já nos mostraram, se fizeram 
            dignos de nossa confiança e do nosso aplauso. Vamos apostar neles e 
            dar-lhes o crédito que merecem. O grande desafio da poesia 
            brasileira não reside tanto no que ela própria produz, mas na 
            barreira da língua, nesse medonho e absurdo gueto em que sempre se 
            confinou o português, o que não deixa de causar certo estupor 
            porque, além de ser uma língua de cultura, é a sexta mais falada no 
            mundo, somando hoje um contingente de cerca de 200 milhões de 
            pessoas, das quais quase 160 milhões vivem no Brasil, um país jovem 
            e de pouca tradição. É preciso resgatar o nosso idioma desse gueto. 
            Que se traduzam mais nossos poetas para outras línguas. Eu mesmo 
            estou hoje traduzido para o espanhol, o francês, o inglês, o alemão, 
            o italiano, o dinamarquês e até o chinês. Mas não basta: é preciso 
            que essas traduções se multipliquem e passem a circular mais, 
            intensamente na Europa e nos Estados Unidos. A poesia brasileira de 
            hoje é muito superior à que se escreve em língua inglesa, francesa, 
            espanhola, italiana e alemã, e isso sem considerarmos aqui o que se 
            produz em Portugal. Nesse sentido, não podemos deixar sem registro o 
            lúcido trabalho que vem realizando entre nós e no exterior a revista 
            Poesia Sempre, criada por Affonso Romano de Sant'Anna quando 
            presidente da Biblioteca Nacional e que chega agora ao seu oitavo 
            número, dedicado à moderna poesia israelense. Affonso foi em má hora 
            exonerado do cargo pelo atual governo, mas a revista com a qual ele 
            sonhou, agora sob minha responsabilidade, como editor-executivo, e a 
            de Antônio Carlos Secchin, o atual editor geral e um dos mais 
            notáveis nomes de nossa crítica literária, não haverá de morrer na 
            praia, apesar das muitas e terríveis dificuldades que se nos 
            deparam. A divulgação da poesia brasileira no exterior depende muito 
            desse ousado e ambicioso projeto que Secchin e eu nos comprometemos 
            a levar até onde nos for possível. É através dele que talvez se 
            possa sair do gueto a que me referi, e a boa poesia que hoje se 
            escreve neste país o merece. Que Deus e o diabo nos permitam honrar 
            a palavra que empenhamos.      
       
            Leia obra poética de Ivan Junqueira |