The Gates of Dawn, Herbert Draper, UK, 1863-1920

 

 

 

 

 

 

 

Astrid Cabral


 

Primazia do mundo interior (prefácio)

 

O que ressalta, à primeira leitura de Lição de vida, é a profunda preocupação moral que move a pena de seu autor, Hélion Póvoa. No mundo contemporâneo, marcado pela emergência de valores materialistas e mercantilistas, estes poemas representam um baluarte de resistência contra a progressiva demolição dos princípios éticos cristãos de nossa sociedade. Refletem seus versos forte compromisso com o ideal humanista, para muitos obsoleto, mas que precisa ser resgatado e cultivado com a maior urgência, se quisermos afastar o risco da selvageria urbana do pós-moderno.

Com a vida inteira dedicada à ciência, através da pesquisa e de sua aplicação no campo da medicina, Hélion Póvoa refreou os dons poéticos, só se entregando a eles tardiamente, no que se irmana a antecendentes ilustres como o poeta português Antônio Gedeão e, entre nós, o bardo cearense Soares Feitosa. Por outro lado, esse rico encontro da ação com a contemplação, da ciência com a arte poética, conta com a precedência de Pedro Nava cuja memória H.P. homenageia em dois textos, e que, além de nosso maior memorialista, foi também reconhecido como poeta por Manuel Bandeira. Não se pode deixar de lembrar aqui o maior representante dessa dupla vocação: o poeta/médico Jorge de Lima, que nos legou obra de imensa riqueza e extrema genialidade, ainda por ser devidamente reverenciada.

Em 1982, ao proferir em versos o discurso de posse na Academia Nacional de Medicina, Hélion Póvoa inaugura solenemente o percurso literário ao declarar a decisão de se entregar também à poesia, até então sufocada pela intensa vida profissional. A partir de 84, começa a publicar sua obra poética, em que Lição de vida figura como quarto livro.

Reiterando a linha do anterior Missão na terra , e em total coerência com o título, Lição de vida apresenta-nos uma poesia de cunho magistral. Isso decorre, primeiro pelo registro lingüístico culto, revestido de solenidade ex-cátedra, mas que ao mesmo tempo guarda a clareza referencial sem concessões a elipses, enigmas e ambigüidades, tudo que poderia gerar hermetismo e impedir a comunicação. Em seguida, pela adoção de uma perspectiva com distanciamento ao tratar dos temas. Assim sendo, com exclusão de uns poucos poemas onde se permite revelar a experiência pessoal (penso especialmente naqueles em que discorre sobre o território doméstico em Botafogo, alude ao diabetes, ou deixa vazar a fé religiosa através de orações), Hélion Póvoa define e disserta sobre assuntos tomados de forma geral e abstrata. Por isso mesmo observa-se em seu texto a restrita freqüência da primeira pessoa do singular, típica do “eu” lírico e válvula dos transbordamentos emotivos. Há, sim, a preferência pelo pronome na forma plural, já que o “nós” escapa ao individualismo e amplia a referência, alcançando a humanidade inteira, graças à omissão de um sujeito coletivo não explícito. Prevalece nos poemas o discurso em 3ª pessoa, decorrente da objetividade científica compatível com o pensamento raciocinante, seguido pela enunciação em 2ª pessoa, requerida pelo tom persuasório e sapiencial dos conselhos.

Hélion Póvoa elabora uma poesia centrada na análise e celebração da natureza humana. Envereda de maneira reflexiva pelo arco-íris da realidade psicológica, passando também, em menor escala, pelo campo biológico. Neste, seus poemas valem-se da linguagem característica da área médica, de que o autor extrai efeitos originais de ordem fônica, utilizando com ironia raras palavras proparoxítonas, que nos remetem ao poeta Augusto dos Anjos com seu vocabulário surpreendemente inovador para a época. Outros vestígios da vivência médica podem ser detectados em algumas imagens baseadas em semelhanças anatômicas, como a do ódio comparado ao câncer e a da mente fanática que se contrai como pupila sob o efeito da luz.

No entanto, o olhar poético de Hélion Póvoa dirige-se preferencialmente para a interioridade. É a imensa gama de sentimentos positivos e negativos, a dinâmica do que se convencionou chamar de alma, que ocupa sua atenção, levando-o à análise e ao canto. A simples relação dos títulos das composições já nos evidencia tal preferência temática: tranqüilidade, amor, amizade, felicidade, humildade, angústia, sofrimento, liberdade, raiva, medo, frustração, gratidão.

 

Conforme expressa de modo eloqüente:
“Ninguém encontra um retiro integral
Mais perfeito que o interior de sua alma”

 

Para H.P. o interior humano é “maior que o céu” e tal antropocentrismo explica, a meu ver, o ofuscamento da paisagem e a percepção do mundo exterior pouco enfática em seu texto. Com exceção do poema “Pássaros em Botafogo”, a natureza do não-eu só comparece em função coadjuvante de metáfora. Leia-se o belo poema “Chuva no mar”, em que o poeta não focaliza nem a chuva nem o mar, valendo-se de ambos, ao mesmo tempo em que consola um amigo querido, para mostrar-lhe o contraste existencial entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Mesmo a presença dos pássaros, no mencionado poema, impressiona H.P. sem impacto, isto é, através do canto, fragmento parcial da realidade daqueles seres, pois despojado do visual de forma e cor, do tátil das plumas, enfim, de qualquer concretude. As “abelhinhas”, não são a rigor abelhinhas, mas apenas o nome simbólico de uma instituição beneficente. No poema que abre e intitula o livro, a borboleta a romper a duras penas o casulo, mais que o instante fenomenológico do pequeno animal afirmando a sobrevivência, é o exemplo do sofrimento humano que conduz à elevação espiritual. O mesmo processo da natureza exterior tomada secundariamente, como demonstração de uma realidade íntima superior, ocorre com a coruja, símbolo da sabedoria inerente ao silêncio.

Não surpreende que Lição de vida esteja povoado de anjos, esses seres alados cuja existência incorpórea ocupa os redutos da imaginação, sem conseguir roçar nossos cinco sentidos. Vê-se pois que o manancial criador de Hélion Póvoa jorra, não das sensações causadas pela observação do mundo imediato circunstante, porém do abstrato mundo das idéias. Platão em vez de Aristóteles. A preferência pelo conceitual aparece nítida nos versos de “Discurso”:

 

“Jamais terá sucesso um orador,
Cuja palavra for sobremaneira
Maior que idéias em seu esplendor!”

 

A fascinação pelo conceito leva o autor a priorizar as idéias sobre a palavra. Daí talvez a ausência de inquietação formal na fatura dos versos que seguem a tradição, embora o faça com notável liberdade, tanto assim que os decassílabos são pouco ortodoxos e exibem flutuação métrica e acentual.

Lição de vida distingue-se sobremaneira pelo aspecto sapiencial vinculado à pregação ocidental bíblica. É a problemática ética que sobrepuja a estética. O poeta está devotado ao crescimento do espírito, pois o grande valor existencial reside na “bravura interna”. Graças à intensa religiosidade, que desponta em inúmeros poemas, o autor não questiona nem se rebela com a impotência humana diante da dor. Para ele, esta parece ser “a via da verdade”. Apoiado na sólida fé da existência de Deus, na esperança de redenção pós-morte, pode afirmar:

 

“ A dor é o fogo que nos leva ao céu”

 

A terceira virtude teologal, a caridade, comparece na forma do amor cristão:

 

“O princípio que de modo singelo
nos redime e nos reconcilia com a vida”

 

Estamos, portanto, diante de um livro de surpreendente elevação moral, um livro necessário por nos reintroduzir num mundo sacralizado, hoje em vias de se extinguir, mundo onde os valores nascem da aspiração ao divino e no qual os homens se acreditam feitos à imagem de Deus.
 

 

Leia Helion Póvoa


Leia Astrid Cabral


 

 

 

 

 

14.09.2005