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Antero Barbosa


 


Da tradução semântica ou o vôo dentro da asa


Leitura, parcialíssima, de “O Livro das Ignorãças” de Manoel de Barros
 

 



         1. Contaminações semânticas
 

Quando acordou sentiu que uma fronteira havia sido superada. Aquela relação física, a última delas, deixara por herança o domínio lúcido e intelegível das sensações.

Poderia agora reverter, mudar de ventre para costas, exercitar seu poder. Todo o jogo de forças e emoções, sua ausência forçada, sua negação pura, localizava-se agora noutro espaço: o mental. Nada mais se decidia na tesoura das pernas, no carreiro dos seios, no pão entreaberto da vulva.

Ainda que nesse sentido derramasse todas as aparências. Iludindo os comparsas. Que se renderiam aos volúveis gestos corporais, ao rouco compasso dos gemidos, à lagoa depositada no olhar, o grande logro.

Mas só na visão deles ainda permanecia a virgem. Porque ela estava definitivamente desvirginada. E desvirginizada. Para se ser virgem após as posses, não é correcto colar em cirurgia plástica o hímen: obrigatório seria anestesiar memórias, todas, dos actos sexuais.

 

Primeiro despropósito. Mas que nos remete desde já ao centro do livro em análise, “O Livro das Ignorãças”. Doravante, em regra, “O Livro”. E da (im)possibilidade da ignorância.

Ignorância entendida como pureza primórdia e original. Que, aliás, não nos parece ser o objecto perseguido.

Muitas vezes tem sido apontada em Manoel de Barros essa sedução edénica, mais do que isso, a paisagem iniciática do Génesis, mais ainda, o deflagrar do mundo sensível aposto no já desgastado começo do evangelista João: “No princípio era o verbo.” O próprio poeta insinua tal vocação, glosa as fontes, provoca a derivação. Lá está no presente livro: “De primeiro as coisas só davam aspecto / Não davam ideias. / A língua era incorporante.” (3.ª parte, VI – quando relevante, far-se-á a menção a cada uma das 3 partes do livro e à numeração do poema).

Segunda negação: muito menos se verifica o regresso a cânones de escritas próprios de infâncias literárias. Em todo o texto é afastada qualquer hipótese de tecido clássico, e muito menos arcaico. Veja-se este excerto:

Pois que mortal, homem, nasci,

O caminho da vida transporei.

Só sei do tempo em que vivi,

Do que falta correr, eu nada sei.
 

Este fragmento não é de Manoel de Barros, mas de Anacreonte, poeta da Grécia antiga. E não tem qualquer parentesco com os poemas de “O Livro”. De igual modo, não sobram coincidências com versículos bíblicos, apesar de versos como este: “O mundo meu é pequeno, Senhor.” Será inútil aqui procurar sentimentos pantanosos, próximos de piedades clemenciais ou de clemências piedosas.

Dando um salto da era primeva para a contemporânea, também não compensa o esforço de buscas neo-naturalistas ainda quando tal se aparente óbvio. Apesar de uma intimidade com o solo quase carnal, o sujo, o excremento não são mantidos em solidão, antes pela aposição do sublime se obtém a anulação do excesso (1.ª, XV). De tal forma que o poema que narra a evolução do vocábulo “concha” a “cona”, quando esta surge é ainda aquela que prevalece. Porque o objectivo, como explícito, é “dar equilíbrio” aos “blocos semânticos”. Também a labial busca de intervenção social ou de proletários apelos fica afastada: “… gostava de conversar com idiotas de estrada e maluquinhos de mosca.”

Com efeito, a obra que vamos tentando analisar surge já em plena época de germinação da metapoesia, “marca específica de um dos impulsos da literatura da modernidade”, como aponta e bem Ester Mian da Cruz em artigo publicado na Revista Universitária das Faculdades Toledo. E a mesma modernidade implantou desde os primórdios do século XX a racionalidade, expressa, por exemplo, no murro de Álvaro de Campos: “Merda, sou lúcido!”

Racionalidade que se mantém em “O Livro” ainda quando se ostenta o nódulo vivaz da automática escrita do surrealismo. “Estou atravessando um período de árvore” não releva de vocábulos pingados de subconscientes, antes traduz uma determinação ponderada e madura.

Toda a cosmogonia de “O Livro das Ignorãças” resulta de uma funda subversão semântica. Poder-se-ia ir buscar o pórtico a “Gramática Expositiva do Chão”: “O poeta é promíscuo de bichos, de vegetais, de pedras. Sua gramática se apoia em contaminações semânticas.”

E estas, as contaminações semânticas, ocorrem de inúmeras formas. Enumeraremos algumas.

Devemos iniciar essa exposição dando conta de intenções de carácter genérico. Mencionando a “espessura de gosma” adquirida pelo verbo, a importância da “parte selvagem” das palavras, o uso de “palavras que ainda não tenham idioma”, a “decomposição lírica”, as “frases que se iluminam pelo opaco” e, sobretudo, a “agramática” e a “ruptura com a normalidade”.

Afora todo este roteiro disperso na extensão dos textos, há um manual específico e concreto: os instrumentos de trabalho, as ferramentas estão em 3.ª, XII:

1 abridor de amanhecer

1 prego que farfalha

1 encolhedor de rios – e

1 esticador de horizontes.
 

Os princípios, as regras a saber, constam em 1.ª, I:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Porque é que as borboletas de tarjas vermelhas

têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência

num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega

mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro
 

E, por fim, em síntese, o programa: “Desaprender oito horas por dia …”

O surgimento do vocábulo “desaprender” nos leva a uma formulação muito frequente (e profícua) no texto: o uso do prefixo “des”. Do vendaval de ocorrências citam-se por mais expressivas: “desinventar”, “desagero”, “desmorrer”. Esta colagem, aparentemente comum, provoca um jogo semântico febril: o lexema entra em conflito, o sentido inverte, subverte, reverte, trambolha, como diz o autor o que dá prazer não é “a beleza das frases, mas a doença delas.” Não surpreende que a partir daqui, ou daí, o “des” e técnicas similares passasse a ser abusado por todo poeta, poetinha e poetastro.

Mas o choque verbal pode fazer-se pelo confronto dos vocábulos: “Ontem choveu no futuro.” Ou pelo “delírio frásico”: “Não tem altura o silêncio das pedras”, em que, nomeadamente, se confundem presença e ausência, atribuindo uma medida, a altura, ao silêncio quando, ao invés, esta é mensurável no seu inverso, o som. Ou, ainda, quando os vocábulos transitam de categoria morfológica: como salientado por Teotónio Marques Filho (em Por Trás das Letras) e Eustáquio Lagoeiro Castelo Branco (em Eduquenet), os substantivos transformam-se em verbos: “Quando o rio está começando um peixe, / Ele me coisa /Ele me rã / Ele me árvore.” Podemos nós acrescentar que também se verifica o inverso, isto é, o verbo mudado em substantivo: “Ocupo muito de mim com o meu desconhecer” (sublinhado nosso). E, ainda, que se pode extrair advérbio de adjectivo: “Enxergam tão pequeno que às vezes pensam que a gente é árvore”, em que se infere que “pequeno” significa obviamente “pouco”.

Outra das faces da contaminação semântica de que vimos tratando cifra-se na “invenção” de palavras: salienta-se, a título de exemplo, “insetoso”, em que uma vez mais fulguram intermitências morfológicas (o sufixo adjectival em cópula com o inseto); e “estórea”, terceira versão de um vocábulo que já foi “história” e “estória”.

Ainda neste âmbito, poderemos concluir que se oblitua, ou reverte, ou concatena a própria categoria narrativa, demudando o diálogo em monólogo, ou criando-se o monólogo dialogal: “Eu vim pra cá sem coleira, meu amo.” (2.ª, 1.2).

Atalhando, por eventual risco de náusea. De referir uma outra, absurda, linguagem, a “linguagem-pássaro” (3.ª, IV); também a conjuntura em que o ser deixou de o ser, nos casos em que o poema procura emprestado o ombro da prosa (3.ª, IV); e, ainda, o uso do refrão à distância, isto é, a repetição, sonante de versos, em poemas nada contíguos: “abençoado de garças” em 3.ª, IV, e no último poema desta secção “Auto Retrato Falado”, e “aromas de tomilhos dementam cigarras” em 3.ª, “Mundo Pequeno”, e, novamente, 3.ª, IV.

De referir, por fim e definitivamente, duas expressões posicionadas nos limites da escala:

A transparência da expressão pura, original, quase uma anti-semântica, em versos já assinalados:

De primeiro…

A língua era incorporante.
 

E a contaminação absoluta, a doença das palavras, a sua própria prostituição:

Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me

sinto como que desonrado…


         2. Da tradução semântica
 

No mundo de chão do índio americano, em que penetrou em florestas de mitos e lendas o vento do western, ficaram estilizados de pedra os nomes, quiméricos e chamativos, de alguns chefes indígenas.

Além da sedução de um ambiente em que os corpos são pinturas e a roupa é a própria pele, liberta, ficou o odorífero sabor dos nomes que esses cabecilhas ousaram. Citemos alguns. Corvo Pequeno, dos Arapahos; Nuvem Vermelha, dos Oglala Dakota; Cauda Pintada, dos Siox-Brulé; Nariz Romano, dos Cheyenne do Sul; Pássaro Saltador, dos Kiowa; Grande Touro Sentado, dos Siox.

Entre os cineastas que deram mãos a este tipo de magia, optámos por abordar o último grande épico da categoria, quando se julgava já o western sepulto tal como esses heróis: “Danças com Lobos”, dirigido e interpretado por Kevin Costner. É um exército que se resume a um só homem, o tenente John Dunbar, colocado em vigia junto a terrenos próximos dos Comanche. Das interligações humanas, quase sempre irrefragáveis, ficou o fumo da coorte de alguns personagens e seus nomes pintados. Além de Dez Ursos, o caudilho da tribo, guardamos outros índios destacados, designadamente Kickink Bird e Cabelo de Vento. Mas a alcunha é implacável para quem se aproxima: surpreendido em gestos aéreos perante o focinho do lobo, Dunbar passa a chamar-se Dança com Lobos; a rapariga raptada e encerrada no acampamento, e que borda amoroso par com o tenente, é apelidada de Faca em Punho; e até o próprio felino, mexido por gestos humanos do militar, é baptizado de Duas Meias.

Observe-se, nesta panóplia de nomes, que quase todos recorrem à cor, ao esquadro, ao som, ao mundo natural que mexe, sendo quase sempre pintalgados com recorrência à designação de animais. Selvagens por força de regra.

 

“O Livro das Ignorãças” busca, também, a enunciação de mundos submersos. Ou esbatidos. Ou tapados pela opacidade de escamas sucessivas.

Obtê-lo, atingir seu cerne, já vimos, é o exercício de um programa que entretece estratégias semânticas. Para poder limpar a poeira, afastar a sujidade, curar das contaminações, é forçoso, foi a opção, ensaiar uma espécie de tradução. Que é a técnica maior em jogo de forças com os tentáculos do texto.

Esta, a tradução, se processa de formas e fórmulas quase inumeráveis. Vamos esboçar algumas.

Começaremos por enunciar os actos de provocação. Provocação da natureza natural: “botar aflição nas pedras”; provocar a simetria: “Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o abstracto entre, amarre com arame”; provocar o conflito: “Nascera engrandecido de nadezas.”

Outro nódulo perceptível de tradução joga com o busto de personagens já desabituais de ficções romanceadas: o tempo e o espaço. É possível observar as estrias do devir das coisas: “Cresce destroço em minhas aparências.”; pode-se, ao invés, reter a imagem do efeito reflexo das coisas no tempo: “Um tordo atrasa o amanhecer em mim.” Ou surpreender o espaço contrastante: “Este ermo não tem nem cachorro de noite”: a apropriação de um local pela ausência de seres que outro caracterizam.

O autor recorre ao embuste de agarrar personagens brandonianas para lhes autorar poemas. E assim ressuma do solo da escrita o linguajar populesco, arcaico (2.ª, 1.2): “Eu hei de nome Apuleio.” Que, sublimada, esvoaça em linguagem-pássaro: “Anhumas premunem / mulheres grávidas, três dias antes do inturgescer.” Pela analogia, impossível se torna desrecordar Jorge de Sena e os “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena” inclusos em “Metamorfoses”. Embora nestas haja apenas efeito de ruído musical, ao contrário da transcrição anterior, traslada-se uma das quadras:

Que marinais sob tão pora luva

de esbranforida pela retinada

não dão volpúcia de imajar anteada

a que moltínea se adamenta ocuva?
 

Já que estamos em tempo de autores portugueses, retiremos alguns parágrafos ao capítulo VI de “Aparição”, romance de Vergílio Ferreira:

“- Também fiz outra experiência, senhor doutor.

- Que experiência?

- Bem… Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.

- Mastigar as palavras?

- Bem… É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas, ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada.”

 

Este excerto enquadra-se em teorias e teoremas existencialistas. Bem diferente é o uso de Manoel de Barros, mas decorre, também, da repetição: “Repetir, repetir – até ficar diferente. / Repetir é um dom do estilo.” Ou então: “Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.” Ou, ainda, a apologia da morte segura, em 3.ª, XIII, poema quase barroco em que se encastoam repetidos várias vezes os vocábulos “chão” e “olho”. (Cabe aqui um parêntesis. “O Livro das Ignorãças” atinge o tom lírico último: da poesia épica de primórdios e classicismos, à poesia confessional do “eu” em românticas conjunturas, à poesia de realismos vários do “é”, desagua agora o rio literário em poesia do nada, ou dos nadas. Além do aproveitamento de correntes literárias que caíram antes de maduras e da subversão de outras que se esgotaram, tópicos que ficaram já expressivamente exemplificados, atente-se na curiosidade de sermos forçados a invocar outras correntes que vivem quase exclusivamente de moldes atinentes à prosa: o neo-naturalismo e o existencialismo. Embora os poemas de “O Livro” não se afastem nunca de leitos fluviais que só ao poema dizem respeito).

A tradução exprime-se, ab initio, de forma verbal. E essa verbalidade faz-se de contiguidades: “Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem.”

Faz-se, também, provocando a inversão dos factores: “Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou / banho em cima.” Faz-se, ainda, trocando acção por omissão, ou revertendo esta naquela, na cena fabulosa dos lagartos curimpãpãs “ … que se deixam passar por cima como pedras. / Ao ponto que se deixam atravessar por caminhões.” Faz-se, ademais, recorrendo a figuras estilísticas em que, por aférese “de-comer” é = a “comer”, “órgão de ver” é = a “ver” ou visão, e, por síncope, “concha” é = a “cona”.

Faz-se, finalmente, de uma subterrânea mescla dos sentidos e seus órgãos que, transfigurados, se confundem e interpenetram:

O ocaso me ampliou para formiga.

Aqui no ermo estrela bota ovo.

Melhoro com meu olho o formato de um peixe.

………………………………………….

Quero apalpar o som das violetas.

Ajeito os ombros para entardecer.

………………………………………….

O infinito do escuro me perena.

 

Muita da intensidade das proposições de “O Livro” promove o homem animal, o homem vegetal, o homem árvore. Mas veja-se como o inverso surde e o bicho assume carácter humano: “O que jantava era bundas de gafanhoto …”

Mas a tradução assume o auge e a súmula quando esbarra em contaminações semânticas. E isso obriga a explicitar uma só palavra ou a sua desevolução recorrendo a várias ou muitas. Adoptando disposições de livros anteriores, coloquemos essa palavra ou expressão como título do poema e a tradução como o próprio poema (por vezes, o título é adaptado):

          Lentidão
(é um cágado que empurra estas distâncias?)
          Memória
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
         
Infância
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
        
Odisseia
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde
o mato e a fome tomavam conta das casas, dos
seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
         
Lembra-te, homem, que és pó
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu
olho tem escórias de árvore.
O chão tem gula de meu olho pelo mesmo motivo
que ele tem gula por pregos por latas por folhas.
A gula do chão vai comer o meu olho.

 

Mas, entenda-se, entendemos que a tradução mostra o gume da navalha quando se cinde numa única frase. Observem-se as imagens, apesar de prismáticas e subtis, límpidas. Em que “enseada” é, ou foi, destarte: “O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a / imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás / de casa.” E, gume e cume, “barranco” é “lugar onde o avestruz esbarra.”

E, voluntariamente e por círculo, esbarramos no início desta secção. E nos nomes índios.


         3. O voo dentro da asa
  

Os ovos, estes, conjugando a predominância dos que existem, são brancos. Na maioridade de seu perímetro e extensão. E no branco redondo, ou redondo branco, insinuam-se, desenham-se, rabeiam, rodopiam signos negros. São riscos, linhas riscadas, rabiscadas, alvéolos, esboços de teia, raízes, traçados de rio em mapa. Mas também pingos, pingas, borrões, bermas de mancha, minúsculos gomos geométricos.

Analisados um por um, visionados de relance, são todos rigorosamente iguais. Abraçado o exercício do pormenor, nem sequer microscópico, são absolutamente todos diferentes.
E, investigando, há-os que convocam afinal a cor beije, o castanho, o poro cinzento.

E afinal não se trata, pode não se tratar de riscos, que em casos avermelham e arribam à teia. São desenhos, impressionismos, abstracções, formigas, insectos. Espermatozóides.

Mas, sobretudo, hieróglifos. De aparência e valência. Aparentados a escritas orientais. Ou árabes. Em suma, escritas.

Colocado o pássaro sob pressão visual, o riscado na casca poderia ter sido executado com a pontiaguda cauda, recorrendo a tintas de bagas de sabugueiro maduríssimas. Ou de amora espicaçada. Também poderia ter sido instrumentalizada para o efeito a orla recortada das asas. E, principalmente, o agudo espeto do bico.

Mas sabemos que o ovo é germinado de interior. Fecundado de úteros. E ignoramos que movimentos, orgânicos ou mentais, possam interferir no bordado celular, de linhas, dos riscos riscados.

Apenas sabemos que a este pássaro o senso apelidou de escrevedeira. E que do latim o nome que veio foi de emberiza.

 

Das frases soltas do canoeiro inventado, que provocam e especificam a “ruptura com a normalidade” se diz que, ele, “voou fora da asa.” Ou seja, ascendeu à poesia. Porque, é dito também noutra área d’”O Livro” que “Poesia é voar fora da asa.”

A asa, casa do voo, ascende do ovo, ovo utiliza as letras de voo, mas é na asa que nos queremos quedar. Ousando um coágulo.

O voo fora da asa acontece duas vezes. Por obra do autor, exemplar solitário de um esquadrão tal como o tenente Dunbar de “Danças”, e do leitor, possuidor e proprietário da energia que pode despoletar assistindo a debandada frenética dos búfalos, letras tornados.

Porque da acção do voo, que é a poesia, resulta a condensação na página. Onde se deposita, sabiamente, a asa, recolhida e deitada, de vísceras, sobre o diagrama do alfabeto.

De facto, o que se passa em “O Livro das Ignorãças” é muito simplesmente a arte de surpreender o instante do voo. Derrotando-o no texto, organizando este com alimento de minas, abandonando-o na postura apta ao deflagrar.

Que assim fica armadilhado. Fazendo-nos regressar à metapoesia. Que exige a participação de um outro comparsa: o leitor. Na qualidade de co-autor.

Por isso, há poemas que não transportam à síntese e ao vazio. Erigindo na página aberta desenhos, múltiplos, e sons, e cores, uma sinestesia absoluta e caótica, de que se dá para exemplo esse fenomenal lugar do texto em que deslizam, fluviais, poemáticos lagartos curimpãpãs.

Que, assim desencadeados, os poemas nos mostram que não há enseada da ignorância. Ou, melhor, que a ignorância pode ser o caminho do conhecimento. Ou seja, o conhecimento propaga a ignorância. O conhecimento esbarra na ignorância. O conhecimento é a ignorância.

Porque a literatura, como toda a arte, ainda que bebendo em leitos e nascentes, aponta sempre para a foz do rio.

Traduzindo: as asas são múltiplas, três delas avantajadas e da imaginação: a imaginação do real, a imaginação da imaginação, a que se acrescenta predominante a imaginação da escrita. E esta é a asa que jaz derrubada na página, com o voo dentro. A palavra, que tudo encerra e oculta. E que se adentra como denso bosque. Bosque que nos permite regressar em definitivo ao espírito do autor e da suma ignorância: “entrar em estado de árvore.”

E assim se fecham asas e permanecem. E dentro delas se fecha o voo. E se encerra a mitologia de uma parábola permanente: o voo dentro da asa.


 



Manoel de Barros
Leia a obra de Manoel de Barros

 

 

 


 

28/12/2005